terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Poemas paridos

 



Eu não nasci. Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Monstro. A minha mãe não sabia que, no parto, expelia para o mundo um ser diferente. Até o meu pai, que vê defeito em tudo, me achou perfeitinha. Tinha os dedinhos todos nas mãos e os dedinhos todos nos pés.

 

Longe deles, esses seres que me fizeram entre luz e trevas, estava a compreensão de que, dentro do meu cérebro pequeno e ainda subdesenvolvido, as correntes elétricas passariam de forma distinta, em tempestades agrestes de relâmpago e trovão simultâneos. Longe da mente desses amantes que me geraram numa noite de outono, estava a compreensão de que eu não poderia ser, em pleno, uma menina como as outras. Essas que nasciam, como as pessoas e que diziam ter nascido ao longo de toda a vida, nessa condição de gente.

 

Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Como sou bicho - monstro - eu fui parida. Vim ao mundo a ferros e colei a placenta da minha mãe à carne. Esvaiu-se em sangue, tolerando a dor do inimaginável para me ter. Sentiu o peso anémico do mundo nas pernas. E o peso desesperado da insónia quando, durante meses me carregou sobre o peito, para que dormisse. Eu fui a primeira força imobilizadora que ela conheceu. Uma espécie de paralisia do sono muito própria, com tentáculos manipuladores construídos de choro e birra.

 

A minha mãe foi, não duvido nem por um instante, a primeira vítima do monstro que eu sou. Mas também foi uma das tutoras mais presentes em todos os momentos da minha vida e, nas lides do amor, o perdão é fácil. Criou-me, sem rancor pela dor causada no parto e foi sem rancor que me acompanhou na minha própria mágoa, quando em menina, jovem e adulta continuei a ser monstro.

 

Os meus horizontes sempre foram demasiado distantes. As minhas estradas demasiado longas. As minhas pernas demasiado curtas. E a minha mente demasiado. Toda feita de excessos, eu agucei a lâmina dos meus dedos, cortando aqui e ali tudo o que me parecia errado, até não haver mais nada que se cortasse senão o vazio e a solidão que, por serem cortantes, não podem cortar-se.

 

Eu não nasci. Em alguns dias gostava de ter nascido. Como nascem as pessoas que só querem abrir os pulmões, respirar, seguir atrás das outras, casar, ter filhos, ter netos, morrer tranquilas e acreditar numa vida eterna. Mas eu não nasci. E também não verguei. Selvagem, louca, cheia de vazios, eu fui sempre a manchinha persistente no cristal. O traço fora de contexto. A linha sem sentido do poema. O acorde desafinado da canção.

 

Nunca desejei o mal e sempre soube bem quem queria ser. Mas o universo tinha outro plano para mim. Este. De me prender à racionalidade, ao raciocínio e às folhas de papel.

 

Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Tornam-me os dias difíceis de aceitar e deixam-me afundar no meu mar de emoções pouco sadias. Há quem conte conquistas, eu conto textos. Há quem conte amores, eu conto histórias de gente que feri. Há quem conte que nasceu.

 

Eu não nasci. O mundo pariu-me. E não me pariu simplesmente, embora me tenha parido só. Pariu-me para causar sofrimento. Pariu-me para ser monstro e disse-mo, colocando-me no ventre da minha mãe e fazendo dela a primeira vítima do meu caos.

 

O mundo pariu-me para causar sofrimento e tenho medo dos passos que dou fora das linhas coordenadamente alinhadas da tela do computador. Porque quando o mundo me pariu para causar sofrimento, não se lembrou do papel imenso do amor. Não se lembrou de que a bondade é aço. Não se lembrou de que o perdão é espada. O mundo pariu-me. Mas quem me criou não foi o mundo. Foi a minha mãe. E ela criou-me para amar.

 

Então, ainda que tenha sido parida e condenada a ser caos num mundo confuso, continuei a usar a bandeira do amor. Um amor caótico e obscuro, onde multiplico todos os nadas do mundo por infinitos de mim, sempre com resultados nulos.

 

Faço-me mãe nas folhas. Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Rasgam-me por dentro, como em tempos eu fiz. Dormem no meu peito, provocando-me insónias. São incompreendidas pelo mundo, embora a olho nu sejam palavras normais. Entendo a dor da minha mãe e o seu amor, olhando os meus versos. Entendo como é possível que, olhando para mim, ela não encontre os traços bravios que me fazem monstro. Também os meus poemas paridos me parecem exemplares. Quando olho os meus poemas paridos, eles nunca parecem paridos. Parecem simplesmente poemas. Parecem simplesmente meus.

 

E não são.


Marina Ferraz



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