terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Louva-a-deus

 


O louva-a-deus pousou numa folha que se agita. O vento sopra e dizem que é advento. Sou mais crente da sacralidade de ventos do que de adventos e coloco mais fé na Natureza do que nos homens, ainda que esses homens sejam profetas. Mesmo assim, quando o vento sopra e mo dizem – que é advento – toda a minha formação de berço começa, aos poucos, a agitar-se no meu peito pagão.

 

Há gente que louva a deus. Escrevendo deus com maiúscula, como se fosse uno. Mas é nas filas para as lojas do centro comercial que se celebra a dádiva. Com sacos amontoados entre mãos, dividindo o peso. Dois sacos de um lado, dois sacos do outro e o peso da alma a meio. É tempo de ter as mãos cheias. Demasiado cheias para se unir em oração ou para dar carinho ou para estender moeda que sirva de esmola a alguém que tem fome.

 

O prazer divino do nascimento do senhor – palavra que frequentemente também escrevem em maiúscula – é celebrada na mesa da consoada, com o recheio de prateleiras integrais do supermercado. Não falta o bacalhau – cujo preço, já ridículo, sobe sempre – nem a couve portuguesa – que, entretanto, já esgotou vinte vezes numa estratégia comercial que continua a funcionar ao final de anos e anos de uso – nem as cinco variedades de bolo – incluindo aquela que sobra sempre porque ninguém gosta de fruta cristalizada… mas é tradição – e ainda o pão e a broa e o vinho e o sumo e as bebidas digestivas.


Pela casa, começam a nascer homens de vermelho. Um deles dependura-se na inexistente chaminé da manjedoura e ameaça cair em cima do burro com o peso obeso do seu corpo de plástico. Lança-se a discussão irada sobre quem vai pôr o menino nas palhinhas e quando. Até que alguém ganha a discussão. E ninguém se fala durante três dias. Oportuno, até, esse silêncio familiar, para que se escutem melhor as canções de Natal que já passam na rádio, criando introspeção sobre temas tão importantes e pertinentes como a pessoa que deitou fora um coração no ano passado ou o facto de um Pai Natal voyeurista estar a vir para a cidade.

 

Há gente que louva a deus. Não falta ouvi-las louvar, na fila das compras. “Oh meu deus” isto; “Oh meu deus”, aquilo. Frase que precede ou é dita a par, frequentemente, com o seu ódio a macerar pelos outros. As pessoas detestam-se. Com toda a paz e amor do mundo, encafuam-se no mesmo espaço para tentarem ocupá-lo, conquistadoras implacáveis da última caixa de bombons ou do “eu sou primeiro” quando cruzam a linha de chegada da sua corrida pelos corredores e atingem a caixa em simultâneo.

 

O vento sopra e dizem que é advento. O vento arrasta as folhas e o advento arrasta a fé. Ambas de rojo pelo chão e muito mal tratadas. Antes que o advento acabe, os católicos terão certamente cedido a pelo menos quatro dos pecados mortais. Mas está tudo bem. É tempo de introspeção. De olhar para dentro. Essa coisa tantas vezes egoísta de ver o eu, sem se ver além de nós.


Algures, na mesma planta, muito menos consciente de si e muito mais consciente dos ventos, o louva-a-deus deixa-se mover na dança da brisa e camufla-se, verde com verde. Pausadamente convivendo com a realidade da vida, sem corridas nem pressas. Observando a Terra que gira e a noite que cai e o dia que nasce. E, como ele, nas minhas passagens junto às lojas sob as luzes de Natal que custam milhões de euros ao país, eu camuflo-me e vou reparando nos músicos desesperados e nos pedintes famintos que estendem a mão, ignorados como se fossem parte da paisagem.

 

O vento sopra e dizem que é advento. Sinto-me como a folha e a fé. Um bocadinho de rojo no chão. O meu Sol renasce no primeiro dia de Inverno. Penso que quero levantar-me cedo para o ver nascer. Sem sacos, sem luzes, sem bagagem e sem discussões.

 

Paro para escutar o violinista de rua durante alguns minutos, debaixo da estrela de luz. Deixo cair uma moeda a seus pés e vejo que ele me sorri, enquanto sigo com o vento.

 

O vento está frio. O advento está mais.


Marina Ferraz



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1 comentário:

  1. Tão verdade... Consumismo disfarçado de fé,vestido de festa.

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