terça-feira, 23 de maio de 2023

Na reserva

 

Fotografia de Ricardo Torb 

Andamos todos com a luz de reserva acesa. E as de emergência também. Já ninguém está simplesmente bem. Então, dizemos todos que estamos. Não é mentira. É só porque o modo de poupança de energia nos implora para não explicarmos que temos as luzes todas do painel a piscar.

 

 

Eu falo do verbo amar. E mantenho tudo o que sempre disse. Pobre do Amor e de todas as conjugações do verbo que o diz... Tratam-no mal. Mas, entendam, eu não acho que as pessoas não sabem amar os outros porque são cruéis ou levianas. Talvez algumas sejam. Mas acho que as pessoas usam mal o verbo porque para amar é preciso conhecer o Amor e para conhecer o Amor é preciso amar-se. É um conceito bastante evidente: não posso dar esmola se não tiver dinheiro. Não posso dar tranquilidade se não tiver paz. Como haveria de poder dar amor se não me amasse?

 

A estrada que seguimos, usando o corpo feito veículo, é uma estrada com muitos buracos e muito poucas estações de serviço. Fazemos a estrada a cantar a canção da rádio-mental onde insistimos em dizer, em forma de discos pedidos, que nos amamos. Mas o Amor que sentimos por nós mesmos não é (só) essa coisa de ir atrás do que queremos e de mandar um beijinho ao espelho ou de nos aceitarmos plenamente com todas as nossas capacidades, virtudes, defeitos e falhas. Amar, também no que nos diz respeito, é cuidarmo-nos. E é preciso muito para que nos cuidemos.

 

De refeições onde a nutrição é perto de inexistente, a dias onde o tempo é plenamente ocupado por trabalho e ecrãs luminosos. Dos vícios alimentados quotidianamente – drogas várias que são álcool e ópio, mas também nicotina, cafeína, açúcar ou outros venenos legais. A destruição do eu é um hábito rotineiro e quotidiano. Temos formas muito cáusticas de nos amar. Se é que sequer nos amamos.

 

Nas ruas, eu levo as olheiras. Debaixo de três camadas de camuflagem líquida – em tom porcellain, nº10 – de corretor. Mas levo. Olheiras. Tenho a luz de reserva acesa e já me acendeu a luz de bateria, de perigo, de alternador, de motor e de falta de óleo. Até a chavinha a dizer que é tempo de me levar à inspeção e revisão já aparece quando o despertador toca. E aqui estou. A escrever este texto, entre um texto e outro, com um café na mão e a tentar ocultar o cansaço com um muffin de chocolate...

 

Se fosse o meu carro, iria à bomba de gasolina para o atestar. Provavelmente com combustível aditivado para que ele ficasse bem nutrido. Se fosse o meu carro, iria ao mecânico com medo que o motor gripasse. Chamaria a ajuda, na forma de reboque, porque a bateria já não é suficiente. Mas não é o meu carro. Sou eu. Numa estrada com muitos buracos e muito poucas estações de serviço, onde o que me vai valendo é levar gente boa no lugar do pendura.

 

 

Andamos todos com a luz de reserva acesa. E as de emergência também. Já ninguém está simplesmente bem. Temos as luzes todas do painel a piscar. Talvez devêssemos ter para connosco o cuidado que temos com os nossos amigos de quatro rodas (ou duas) e ter cuidado com a manutenção do eu. Uma coisa é certa, não vai sair um modelo novo para comprarmos a prestações. Pagaremos apenas as prestações de um corpo que soma quilómetros. Prestações cada vez mais caras, que bem sabemos que as taxas de juro andam assim!

 

 

Estou no volante da minha vida e acho que estou a aprender a conduzir um bocadinho melhor. Mas vou como vai o mundo. Com as luzes todas acesas. Porque mesmo consciente de tudo isto, ainda só aprendi parcialmente a desacelerar. Vou indo a ca-Fé. Dizendo: seja o que os Deuses quiserem e tomara que o motor não gripe. A companhia na viagem é o que me vai valendo!


   Marina Ferraz




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