terça-feira, 9 de agosto de 2022

Bolas!...

 



Bolas! É preciso deixar cair. E eu, que sou tão boa a deixar cair, não gosto nada. Mas é preciso. Porque é na queda que o voo é mais livre. E é na perda que o encontro é mais iminente. E é nesse largar que se encontram as coisas que merecem ser agarradas junto ao peito. E mesmo essas precisam de ter o espaço para a queda... não convém agarrar, aprisionando... é um agarrar q.b., como diz nas receitas que levam cominhos. Nada nem ninguém é nosso. O espaço da queda é essencial. Bolas! Crescer ensina lições mais difíceis de aceitar do que de entender!

 

 

Duas mãos esquerdas. Aparentemente furadas. É isso que sinto que tenho quando me atiram as bolas, para que as agarre. Duas mãos inúteis.

 

Claro que depressa me lembro que estas mãos embalaram os meus sobrinhos. E que escreveram poemas. E que se deram a amigos em momentos de crise. E que carregam sacos com o dobro do meu peso. E que subiram paredes de escalada (frequentemente sem corda). E que viraram páginas de livros. E que foram amantes sábias do meu próprio corpo. E donas de todos os carinhos que se querem distribuir pela pele alheia daqueles que entram nos confins da nossa alma.

 

Ali, no entanto, a tentar agarrar bolas que caíam sucessiva e insistentemente no chão, as minhas mãos pareciam inúteis. E isso fez-me rir.

 

Sou naturalmente desastrada, mas aprendo depressa. Aprendi a adaptar-me com os tropeços da vida, porque nunca pude fazer outra coisa. Uma bola no chão. Duas. Três. De repente apanhar uma e mesmo assim deixá-la cair. E fazê-la rolar pelo chão por acertar nela ao lançar a mão para a apanhar. E correr atrás dela como um ser-arraçado-de-poodle na praia. E, depois, de repente, ter a memória corporal a funcionar sozinha, entendendo o esquema incompreensível. Agarrar uma. Duas. Três. Tornar a queda-e-apanha de bolas mais ocasional e espaçada no tempo. E pensar no quanto caio, como as bolas, tantas vezes. No quanto me agarro, como às bolas, tantas vezes. E em como a memória corporal não chega ao coração... nunca.

 

O meu coração não cai sempre. Mas quando cai, cai. Não se limita a cair. Esbardalha-se. Cai com estilo. Esparramando-se totalmente nos afetos, completamente ciente dos riscos e, mesmo assim... bolas!

 

O riso pendura-se no canto do lábio. Corro atrás da serenidade e da paz de agarrar os pedaços de mim que têm pouca vontade de ser meus. A felicidade derruba-me. E eu levanto-me, com todas as frases racionais que conheço, apenas para as deixar cair e estilhaçar num olhar. Bolas, bolas, bolas...

 

A descoordenação das duas mãos esquerdas chega ao coração. Tento explicar-lhe que ele é inútil e que, ao contrário das mãos, não se adapta nem aprende. E ele sussurra, lá do seu retumbar louco: É preciso deixar cair. E o problema é esse. Explico-lhe. Eu sou boa a deixar cair...mas não gosto nada.

 

É preciso. Ele diz-me que é na queda que o voo é mais livre, o encontro mais iminente, que é nesse gesto que se encontram as coisas que merecem ser agarradas junto ao peito... Acrescenta, sábio, que o espaço da queda é essencial. E eu sinto vontade de o apertar, como se o estrangulasse. Bolas! Quando é que ele se tornou filósofo e quem é que o promoveu a adulto? Crescer ensina lições mais difíceis de aceitar do que de entender!

 

Dou por mim ali. A ouvir o coração e a tentar agarrar bolas. E as bolas caem no chão. E, quando dou por mim, estou a rir. Estamos a rir. E caem-me as incertezas, os medos, as dúvidas, tudo no chão, lado a lado com as bolas, à medida que as minhas mãos inúteis procuram outras formas de utilidade e me fazem sentir feliz.

 

Bolas! O corpo adapta-se ao gesto repetitivo. Mas a alma não... Vou sempre cair. Penso. E, de lá de dentro, ouço a sabedoria ecoar: Ainda bem... porque é preciso deixar cair!


 Marina Ferraz





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