terça-feira, 2 de agosto de 2022

Cativo

 Fotografia de Rui Barroso Photography*
*esta imagem integra o projeto fotográfico "TCHOVA XITA DUMA".


Por favor, mucunha[1]. Levanta essa câmara. Os olhos que te vertem são lente isolada. E o mundo não sabe. Por favor, mucunha. Leva-nos contigo nessa viagem.

 

A tchova é insuficiente. Transporta produtos e gente. Transporta o empoado da História e da cultura. Mas falta-lhe o espaço para carregar também as estórias. As estórias da gente. As estórias contadas em silêncio, de pé na terra batida, a machambar[2], a vender mercancia e almas na beira da estrada, correndo as carreiros na busca de um futuro qualquer...

Temos força, mucunha. Não tomes o pedido por incapacidade ou desazo. Não tomes o pedido por fragilidade ou fraqueza. Vê. Estes braços carregam futuros, como as mulheres carregam filhos. Mas há o ir e o voltar e o ser da terra que nos cultiva gente.

Estendo-te a mão aberta. Sou eterno cativo desta terra seca. Livre dos tempos escravos. Preso à ancestralidade do que me dita o preço da lonjura. Peço-te atenção. Como quem pede chuva para regar o solo. E ofereço-te o sol, no riso de uma criança. A felicidade, compreende, é uma segunda pele sobre a pele, quando nela se traz apenas roupa rasgada e sonhos nado-mortos. E a criança ri. Por favor, mucunha. Levanta essa câmara. Eterniza esse riso. É nele que nos mora a esperança.

Existe muito nos sons das ruas. Um pôr-de-vida estendido da realidade nua até à celebração dos dias. Verás como somos a massa do concreto que edifica nações. Mas há tanto céu aberto. E tanta terra infértil. E tantos homens tristes. E tanto muana[3] que nunca conhecerá as possibilidades da vida simples.

Levamos o mundo. Nos braços. Sobre os ombros. Sobre as cabeças. Literalmente. O seu peso não é apenas físico, concreto... mas alegoria. Antes de sermos livres, fomos escravos. Antes de sermos gente, fomos colonos. E, agora, somos sobra do correr do tempo. O madoda[4] lembra. Lembrando, recorda-nos. Somos gente livre e capaz. Tchova Xita Duma.

Por favor, mucunha. Levanta essa câmara. Melhor é que se disparem câmaras do que armas. Melhor é que se levem memórias do que salvatérios. Leva-nos contigo, nessa viagem. Leva, nela, a imagem eternamente jovem das nossas crianças. Transporta os seus sorrisos. E toda a sua esperança. E toda a esperança que nos são...

Há muito amanhã no hoje que se cultiva, machambando. E todo o amanhã que carregas cabe na imagem que fica atrás do tempo cativo. Mas cativa-o. Para recordares as mães que carregam futuro às costas. E as mulheres que carregam futuro sobre as cabeças. E os homens que o levam dos campos às estradas, e das estradas à cidade, e da cidade ao sonho. E as crianças, que o abraçam num companheirismo leve e lento e cheio de compassos.

As estórias cativas. Leva-as nessa viagem. A tua máquina e a tua memória são a tchova que transporta a nossa alma. Os teus olhos, que te vertem, regam a esperança de que o mundo venha a saber... Khanimambu[5]. Agora, deixa que o mundo saiba – nessa tua lente-olhar - o que nenhuma imagem poderia dizer... mesmo gritando.


 Marina Ferraz



[1] Homem Branco

[2] Cultivar terreno (normalmente do setor familiar)

[3] Rapaz

[4] Ancião

[5] Obrigado





Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!


Sem comentários:

Enviar um comentário