terça-feira, 10 de outubro de 2023

Não se nota

 

 Fotografia de Analua Zoé


Ainda bem que não se nota. Diriam alguns. Mas nota. Talvez não se note no rosto. Nem no corpo. Para os olhos e ouvidos mais desatentos (hoje, quase todos!), talvez seja até subtil no vestuário e na forma de falar. Mas está lá. Revela-se em muitos quase-nadas. E sim. Nota-se.

 

 

Quieta no meu canto. Sem incomodar ninguém. Deixando-me ficar longe do barulho ensurdecedor e estridente dos apitos e das bolas a baterem contra o metal das redes de proteção da escola. Amplificados sei-lá-eu quantas vezes na minha cabeça. Às vezes, ainda me aninho a recordar-me menina. Aninho-me na menina. Preciso da menina para me lembrar de que o corpo que cresce ainda arrasta os mesmos desafios.

 

Ser autista quando não se nota é um bocadinho como tentar construir castelos de cartas – em modo tarefa – durante o furacão. Ter de construir os castelos de cartas. Sentir que se precisa de construir os castelos de cartas. E ninguém venha dizer que construí-los de pouco serve. E ninguém venha dizer o que quer que seja. Não vamos ouvir.

 

É um querer estar sozinho sem querer estar só. Um querer estar entre paredes mais calmas, silenciosas e seguras, sonhando aventuras de permeio. Um querer sair, mas não querer lidar com o estímulo constante. Um precisar de desligar os sons dos shoppings, dos parques, dos sinos de igreja. Um precisar de avaliar ementas de restaurantes com base na textura dos alimentos e ser picuinhas com os níveis de cozedura da carne e dos vegetais. Um ser-se GPSo-dependente, porque se torna fácil a sensação de desorientação, seja no centro de Lisboa ou dentro do Colombo. Sabem os Deuses quantas vezes já me perdi dentro do Colombo e até em centros comerciais mais pequenos. Um viajar e voltar com o desequilíbrio da rotina quebrada. O estar em casa e precisar que as coisas estejam no-seu-lugar. Um precisar do café logo de manhã, não porque é café, mas porque é ritual. Um querer vestir roupa quase igual todos os dias, e ter peças repetidas em cor-e-tudo, porque há algo de cómodo na ideia dessa nossa camuflagem.

 

Mas não é só nisso. É numa estranheza social. Numa forma de falar esquisita. Numa estrutura e encadeamento de ideias própria. Num ler de situações diferente. Num ter atitudes de momento sem filtro. No fluir de palavras sem contenção. Numa defesa permanente e constante do eu. No rosto inexpressivo em momentos de alegria, de espanto, de infelicidade, de tudo... ou na expressão quase-excessiva perante coisas simples e aparentemente pouco relevantes. Numa passividade ou numa explosão agressiva de verbetes menos aclamados na língua portuguesa. Tem tantas formas quanto pessoas, expressa-se sempre de forma diferente. Está em tudo. E, dizem: não se nota.

 

Nesse autismo que “não se nota”, onde parece tudo muito mundano e simples de entender, simples de aceitar, reside um pequeno-grande problema. Esse de se dizer: são pequenas coisas. Porque não são. São pequenas-grandes coisas. Principalmente quando se espera que haja uma mudança. Uma adaptação. Um ajuste. Quando se espera que a química do cérebro subitamente mude com um cerebrus reparo ou os pozinhos mágicos da Sininho.

 

Não se nota. Ainda bem que não se nota. Diriam alguns. Mas nota. Talvez não se note no rosto. Nem no corpo. Para os olhos e ouvidos mais desatentos (hoje, quase todos!), talvez seja até subtil no vestuário e na forma de falar. Mas está lá. Revela-se em muitos quase-nadas. E sim. Nota-se. Nota-se e afeta o dia. Pior, afeta o dia de maneiras muito diferentes para cada pessoa no vastíssimo espetro autista.

 

Assim ou assado, o facto é que ser autista quando não se nota é um bocadinho como tentar construir castelos de cartas – em modo tarefa – durante o furacão. É um equilíbrio muito instável. Uma necessidade de rotina e linearidade num mundo que nunca avançou com tanta rapidez, trazendo desconfortos novos mudança-a-mudança, numa constante inconstância que piora tudo.

O meu castelo cartas nem sempre aguenta os ventos fortes e os abalos do mundo. O meu castelo de cartas sou eu. E, por vezes, não é preciso que tentem – que queiram – apanhar-me do chão. Principalmente é preciso que não o façam dizendo que não se nota. Dizer que não se nota, como se fosse um elogio, é o mesmo que dizer que notar-se seria problema. E esse problema existe. Mas não é meu. É de uma sociedade de hiper-informada desinformação, onde toda a gente sabe o que é o blockchain e sabe qual foi o último iPhone a sair para o mercado, mas ainda se acha que um autista é um ser com um QI acima da média, incapaz de interagir e cuja neurodiferença se nota à distância. De um mundo onde se fala de inclusão, mas se reduz isso aos tons da pele, nacionalidades, géneros e sexualidades, facilmente esquecendo as deficiências, neurodiferenças e outros... A inclusão que se vende não é para todos... e o problema não é de quem alegadamente tem um problema. O problema é um mundo que ainda elogia dizendo que “não se nota”.

 

Este texto é o mais um castelo de cartas no tufão. Provavelmente a cair pela milésima vez hoje. Não faz mal. Dizem. Não se nota.


Mas sim: nota-se. Só não é evidente.

 

Vou ali beber o meu café ritual. Vestir a minha roupa preta. Ligar o GPS para chegar ao ginásio onde já vou há 3 anos. Esquecer-me de responder (ou ouvir) quem fala comigo, por estar em modo tarefa numa máquina qualquer. Escolher o chuveiro do canto, mesmo que todos os outros estejam vagos. E continuar esta vasta lista até me deitar, logo, na única posição confortável que tenho para adormecer.

 

Ainda bem que não se nota...

 

... a dormir não se nota.


Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Anónimo18:44

    E um mundo terribel,onde tudos vivemos segregados según o cor da pele ,ideias,país do nascimento ,etc .Tudo e clasificado e guardado.Voce' escreve o que as demais pessoas pensamos, Obrigado,Marina!

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