terça-feira, 18 de novembro de 2025

Normalecer

 Imagem gerada pela I.A.


Algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. Eu não. Ler e escrever são, para mim, formas de fugir da normativa normalizada normalmente imposta.

 

Talvez alguns consigam olhar uma folha em branco e desligar a mente no discorrer de palavras. Talvez alguns consigam ler um livro e desligar o sensor que os liga ao circunstancial momento do mundo. Eu rasgo as mãos e sinto as vértebras dos segundos quando a caneta desliza no caderno, quando os dedos pressionam as teclas do computador, quando um autor diz nas linhas e nas entrelinhas, nas palavras e nas entrepalavras o tanto que eu queria expressar (e nem sempre consigo).

 

A literatura – minha e dos outros – é uma câmara sadomasoquista na qual entro já à espera de sentir. Depois, o meu cérebro autista faz o seu bom trabalho de remistura, sentindo-o demais, E é uma sensação de rasgão interno em cada virar de folha. E é uma sensação de cegueira em cada acender da tela. E é um desnorteio na imprevisibilidade das palavras que me saltam do estômago, como se vomitasse para o papel o espaço que fica entre cada fio do pelo da gata que, entretanto, aterrou ao meu colo.

 

O devaneio vem. É, simultaneamente, apagão e o acender de todas as luzes do mundo. Não vejo muito, mas sei demais. Eis a visão que falta aos que, alegadamente, são normais: a de dentro. Nesse queimar dos olhos, posso garantir que vejo o rosto da fome e do frio, as mãos encardidas da guerra e do tormento, o arrastar de gentes ao bel-prazer de chefes – uns de Estado, outros de atestado, outros de atentado. Vejo o fechar da boca das mulheres e o abrir involuntário da vulva. Vejo o maltratar das crianças. Vejo o maltratar das crianças por outras crianças. Tenho a minha alma arrancada – talvez como os dedos do menino de Cinfães – presa na porta que dá para a Liberdade.

 

Algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. É tarde para mim. Eu nasci louca. Ler e escrever é fuga, porque as palavras saem por vias que enganam o corpo calado, de lábios colados um ao outro, e ele não dá conta que se está a entregar às vergastadas dos outros.

 

Enfim, algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. Eu escrevo para não normalecer. Essa normalidade dormente, padronizada e triste que é âncora e, por sê-lo, nos afunda mais e mais na água turva do momento.

 

Eu escrevo para ser louca, mesmo. Talvez não seja bom ser-se louco. Mas – olhando em volta – é melhor do que a alternativa. Os normais estão a destruir o mundo.


Marina Ferraz



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terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os vossos temas

Imagem gerada pela I.A.

  (Este texto foi criado com base em sugestões temáticas de leitores. Foram-me dados os seguintes temas para este texto:- as cores do outono - o poder do ódio na política moderna - outra lição de gramática - onde está o sabor da doçura - transhumanismo - como esquecer alguém que se ama – Yule)


Surpreendo-me sempre com as cores de outono e o ódio. As cores do outono porque transformam o cenário num outro, tão raro. O ódio porque transforma o cenário num outro, tão comum. Por entre o acender precoce das luzes de Natal, com o aproximar das promessas sempre incumpridas de paz da época festiva – que saudades ficam dos tempos em que se lhe chamava Yule! – os gritos e ofensas cobrem até a voz da Mariah Carey, que – pobre coitada – já anda desde 1994 a mendigar a mesma prenda, sem que ninguém tenha a benevolência de lha dar.

O ódio não é apenas arremessado nas ruas e nas filas dos supermercados. Passa em horário nobre e tem um canal que o patrocina com as cores da bandeira. 

Surpreendida pela inevitabilidade da degradação do homem, dou por mim a pensar no transhumanismo. Na invasão da máquina, no uso do digital, na forma como se cultiva a esperança de um homem sem doença, sem envelhecimento, sem morte. Um homem melhor que o homem. Um homem cibernético, híbrido, eterno. Assusto-me com a ideia de um homem além de si mesmo, e mais ainda com a ideia do homem sem morte. Fico a desejar que se descubra antes onde está o sabor da doçura. Porque nunca o fim pareceu destino mais doce.

Olhando o país e o mundo, o poder do ódio na política moderna, a facilidade com a qual todos nos tornamos escravos ou despojo fácil de substituir, dou por mim a pensar que o maior problema dos Estados é serem (má) figura paterna. Um Estado-mãe não destilaria ódio nenhum. Vá, venham agora os puristas exigir-me outra lição de gramática sobre a dupla negativa... não quero saber! Não destilaria ódio nenhum! Repito-o. A repetição é um recurso estilístico forte e que defenderei até à morte (se o transhumanismo não me roubar a esperança de morrer um dia). Mas, voltando ao Estado-mãe. Não creio que houvesse uma descarga de ódios se isto sucedesse. A mulher é dotada, sempre o achei, de um amor inerente à condição. Como se viesse dos ovários, do clitóris, do útero... vejo pela minha própria mãe! Nunca a vi distinguir pessoas por nacionalidade, sexo, género, profissão, cor de pele, sotaque ou outro critério semelhante. Vejo-a a olhar para as pessoas como se fossem pessoas, guardando apenas um lugar de depreciação e antipatia para com aqueles que não lhe devolvem os Tupperwares. 

No palanque dos sapientes doutores de fatinho, um conjunto de pessoas que nem sabe o que é reservar comida em Tupperwares, come caviar e vomita sentenças. Perguntaram-me recentemente como esquecer alguém que se ama. E eu, que afirmei não ter respostas – tenho 12 anos consecutivos de motivos a confirmar a minha absoluta inutilidade no que às questões da superação diz respeito – posso no entanto apontar os nossos governantes, que tanto afirmam amar Portugal, como exemplo perfeito de alguém que esquece depressa e eficazmente o que diz amar.

Lá fora, a árvore tem as folhas pintadas de vermelho. Não é a primeira vez, mas é como se fosse. Cada outono é o meu primeiro outono. Olho para elas com o mesmo brilho no olhar. Quero que a paz do Yule se acenda com as luzes que já ponteiam os centros comerciais. Quero esquecer o ódio que grita e converte e alastra, qual pandemia sem expetativa de cura. Quero apagar esse ódio e voltar a conhecer o sabor da doçura... Mas, lá está, querer não é poder. Ao menos, a Mariah Carey – também fã da repetição – ensina-nos isso todos os anos... e olhem que ela só quer uma coisa!

 Marina Ferraz



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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Pronomes pessoais átonos

 

Imagem gerada pela I.A.

Explicar os pronomes pessoais átonos – ou mais especificamente a sua colocação na frase, antes ou depois do verbo – deve ser das tarefas mais inglórias para qualquer pessoa que trabalhe como mentora nas áreas do domínio linguístico. Desde logo, para quem integrou os processos da linguagem de forma imediata, estes pronomes autocolocam-se no local devido, de forma intuitiva, o que é o primeiro passo para ninguém se lembrar da regra gramatical em si. E, depois, quando existem dois verbos a regra é flexível e podemos optar pelas opções mais formais ou pelas mais naturais, dando-nos a desconfiança de que os linguistas que definiram a questão já iam, por esta fase do processo, muito entrados no mundo da embriaguez. Então, na minha perceção, a melhor forma de explicar tudo isto, já depois de se ter falado da posição do verbo na frase e das palavras-chave – como não, já, ainda, também, que, quem, quando, onde, se, porque, como, enquanto... – e se de ter mencionado os nomes “ênclise” e “próclise” que, para efeitos práticos servem para... rigorosamente nada... o melhor é exemplificar com noções próximas, atuais e que sejam claras.

 

Por exemplo: Quando nos dignamos a sair de casa para ir votar, leva-nos algum laivo de esperança de que o vencedor das eleições nos possa ajudar (neste caso também poderia ser ajudar-nos) a ter uma vida melhor. Cada pessoa quer olhar-se como modelo na construção de um futuro que nos leve a melhor rumo.

No entanto, depois de contados os votos é impossível evitar um foda-se (que também poderia ser um que se foda). Ficamos todos com a clara certeza de que, para além de um SNS a autodestruir-se, de uma economia a degradar-se e de um futuro a impossibilitar-se, temos ainda de gerir um sistema ditatorial que, claramente, está a instalar-se (também poderia ser se está a instalar).

 

Li, algures por esse mundo das redes sociais e sem referência à autoria, que “as pessoas se preocupam muito com a sua aparência e nada com o seu caráter”. A frase estava Inglês, mas deixo a tradução – que não se perca um bom exemplo do uso de pronomes átonos! E eu penso que talvez, justamente por ter sido difícil perceber todas as regras de colocação pronominal, muitas pessoas não tenham decorado bem, também, os próprios pronomes e, na lista de me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, lhes, tenham simplesmente ficado pelo me. O que me interessa. O que me convém. O que me vantagem. Não é raro ouvi-lo: voto nele porque diz a verdade e me entende! Porque vai expulsar A, B e C, e isso me dará uma melhor vida. Porque vai acabar com a gatunagem e me pode ajudar a subir na vida (também possível seria pode ajudar-me).

 

Seguindo-lhes o exemplo, posso dizer que isto me parece um bocadinho limitado. Parece-me, na verdade, que isto nos vai levar para o tempo da outra senhora.

 

O IMPA deu, para hoje, um Alerta Laranja, que já vem, penso, um bocadinho fora de época. Essa tempestade já está a causar danos no país faz um tempo. Isto é o que os acontecimentos atuais nos dizem. Os políticos, esses, dizem-nos outra coisa...

 Marina Ferraz



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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Autoridade (de boa saúde)

 

Trecho retirado do site da Renascença

Surgiu a ideia de que o Instituto Nacional de Emergência Médica – INEM – mudaria de nome, a 3 de novembro, para Autoridade Nacional de Emergência Médica – ANEM. Embora, aparentemente, fossem fake news, gostei de pensar, numa nota mais otimista, que se tratasse de um serviço trans, que finalmente queria assumir uma identidade mais feminina, dinâmica e ativa. Foi difícil, claro, já que Portugal raramente deu a alguém razões para encarar com positivismo o que quer que seja. Mas fez sentido, mesmo assim, a afinal imaginária alteração, uma vez que o instituto parece avançar para a autofágica extinção por incapacidade acompanhar os tempos despóticos que se vão instalando.

 

Claro que é possível ter pensamentos... se não “positivos”, ao menos pejados de sentido de humor. ANEM, penso, talvez fosse o nome ideal para uma entidade do Ministério da Saúde há muito ANEMica e que opera como se não houvesse um único cérebro envolvido no processo, qual ANEMona.

 

Além disso, sendo uma autoridade, seria mais simples justificar as sirenes, o nascimento das criancinhas em andamento, os atrasos, a falta de pessoal. Afinal, autoridade é o direito legalmente estabelecido de se fazer obedecer... e se algo assim acontecesse seria por haver a autorização para que o fosse. Não precisaríamos mais de questionar a competência, o conhecimento, a sabedoria, a divindade das medidas de ação emergencial. Seriam, afinal, autoridade... lá saberiam o que estavam a fazer!

 

A bordo das ambulâncias do INEM – paz à sua alma, com ou sem mudança de nome – acredito também que muitas pessoas têm vindo a sugerir esta mudança de nomenclatura, dizendo AMEN no fim das orações... que mais temível do que a doença ou a gravidez é o cuidado da emergência médica a caminho do hospital e a receção do SNS à chegada. Eu sei que AMEN e ANEM não são a mesma coisa... mas no meio da confusão, ruído de sirenes, buzinadelas, colher da água na via, toque monocórdico de rodas no alcatrão é provável que até o auxiliar menos disléxico escutasse incorretamente. Deixo a sugestão para que se avance com a mudança do nome... e com a mudança da oração, para acompanhar. Perdoai-nos as nossas doenças, assim como nós perdoamos a quem mal nos tem atendido, não nos deixai cair em enfermidade mas livrai-nos do SNS. ANEM.

 

Oremos, irmãos... e esperemos a ação divina de um deus qualquer. Provavelmente chegará antes da ambulância, da nossa senha nas urgências ou da consulta indispensável que pode salvar-nos a vida. O corpo está condenado, salve-se a alma!

 

Eu, por mim, vou continuar na crença de “café nos salva”. Café para tolerar a mudança de nome. O desmentido da mudança de nome. O facto de haver uma conversa sobre o nome quando tudo o que está relacionado com a saúde em Portugal não está de boa saúde... Mantenho-me na ideia de “café nos salva”. Apesar de, confesso, doer um bocadinho estar bem acordada a assistir a tudo o que acontece em Portugal.


 Marina Ferraz



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terça-feira, 21 de outubro de 2025

Serviço

 

Imagem gerada pela I.A.

Este texto é para os bajuladores, os que lambem botas, os que repetem expressões corteses. Sim, senhor doutor. Com certeza, sua excelência. Os que invertem a ordem temporal da vida. Considere que está feito. Os que enaltecem até o discurso mais vago e asnático com um sorriso e um não teria dito melhor, senhor. É para todos os que dão o passo extra para garantir a satisfação dos patrões. Eu sei que é o nosso aniversário, querida, mas o senhor doutor precisa de mim. É para todos os que apontam elogiadores cumprimentos à sua própria pessoa. É desta matéria que se fazem os heróis. É para todos os que, com o seu serviço, garantem que a roda continua a girar nos padrões da normalidade, muito dentro do status quo, sem agitações, complicações e outras coisas terminadas em ões que possam, de alguma forma, comprometer a política e a economia.

 

Embalados em promessas e eternamente atrás do momento da figura, admiro-vos o truque da perseguição da cenoura. Certo é que os burros do circo fazem o mesmo. Mas, neste caso, posso asseverar (porque já o vi) que ao fim de umas quantas voltas, lhes é feita a deliciosa vontade. Não sendo o vosso caso, apraz-me congratular-vos pela persistência de sempre darem tudo a troco de nada.

 

Consistentemente focados na mesma ideia de um dia vir a ser a excelência, o doutor, o senhor doutor, o herói, se levantam do vosso colchão velho, da vossa casa húmida, com a vossa renda astronómica, para entrar no carro velho (ou cujas prestações estarão pagas daqui a dez anos) para enfrentar o trânsito caótico e ter o café pronto quando o motorista deixar o senhor doutor à porta, fora da hora de ponta, evidentemente. Importa estar a tempo de abrir a porta para proteger sua excelência de eventuais bactérias que residam no manípulo onde toda a gente mexe. Manipuladores – esta é uma regra de serviço – não devem tocar em maçanetas, manetes ou manípulos, apenas na manipulação e de forma dissimulada! De que outra forma vos convenceriam a seguir na horda dos aduladores? De que outra forma teriam a saúde e o tempo necessário para garantir ao rico o que é do rico e ao pobre o que é do pobre?

 

É apenas serviço! Dizem. Mas, por vezes, ser servil é apenas uma forma de ser vil, mas sem espaço. Porque não se iludam. Não há espaço para vocês, apenas para o uso que vos é dado. Um dia serão só pobres tão pobres como os outros pobres, mas mais erodidos da usança.

 

É apenas serviço! Dizem.

Amanhã, nos dias dos senhores doutores excelências não será preciso abrir portas. Elas estarão trancadas e nós estaremos à chuva, a mendigar a cenoura que não há, enquanto eles se banqueteiam com o fruto do nosso trabalho.

 

É apenas serviço! Dizem.

É.

Para citar o passado, que tanto usam por medida, permitam que vos cite as sábias palavras da minha avó sempre que eu fazia asneira:

 

Mas que lindo serviço!


 Marina Ferraz



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terça-feira, 14 de outubro de 2025

Coleção Outono/Inverno

 

Imagem do jornal Expresso

Senhoras e senhores, acaba de sair a nova coleção Outono/Inverno. A tendência é clara para todos os que, sendo fãs de moda, não querem correr risco de andarem por aí, por exemplo, envergando cravos vermelhos. Tão 1974!... Não! Assentemos os pés em 2025, com todo o seu imenso potencial.

 

Este ano, enfrentamos a festa do padrão laranja e rosa. Para quem julga que isto imita o antigo padrão, considerem a mudança na estampa: um pouco mais de cor-de-laranja e uma tonalidade alaranjada mais coligada, mais escurinha, com nuances que puxam um pouco mais para azul do que para vermelho. O rosa, ainda ocupando parte significativa do padrão, vai matizado, mais forte em alguns locais e mais pálido noutros, notando-se na sua composição também outras cores, algumas das quais podem criar um artístico sentido de incompatibilidade. Além das tonalidades principais, temos também o azul. Muito ocasional e disperso, mas ponteando aqui e ali as arestas do preenchimento de tons fortes que já mencionámos. E, claro, temos ocasionais manchas rubras, para dar aos espíritos rebeldes e selvagens alguma margem de alento.

 

As texturas do ano são o veludo, as redes e os folhos, uma nostalgia retro que assume também o toque clássico da suave da malha larga e da renda aberta. Assim se eterniza a promessa de suavidade de tempos passados, de forma reinventada e moderna, com texturados abismos que remetem para a condição atual da desesperada pessoa comum do século XXI, disposta a enfrentar o desconforto com um sorriso.

 

Inspirado no azul ponteado e disperso do padrão deste Outono/Inverno, surge também uma tendência de inegável valor: a fragrância. Um borrifo dos perfumes perfeitos para esta estação levam-nos a aromas fortes e intensos, de tendência acre, cítrica, picante, com laivos adocicados e sedutores. Notas que nos remetem para a nostalgia das gavetas das avós e tias em que todas as peças traziam consigo o antigamente e toda a sua naftálica e bafienta tradição.

 

A peça mais emblemática das passerelles, no entanto, foi, sem dúvida, o protetor de pescoço em couro, feminino e estético, cobrindo dos ombros ao nariz. Este modelo de inspiração vintage é uma tendência que já marca presença em revistas, jornais e canais televisivos de renome, sendo peça popular para vestir às discrepantes comentaristas de esquerda, que antes entravam de cravo ao peito, num completo desrespeito pela moda.

 

No que diz respeito aos acessórios é ainda preciso salientar o cinto e as malas minimalistas. Os cintos da nova coleção vêm com um maior número de furos, já preparados para serem apertados ao limite ao longo dos próximos meses, e as pequenas e decorativas carteiras são ideais para quem costuma transportar o mínimo.

 

Em suma, encontramos detalhes vintage e retro nesta nova e ousada coleção, que se unem ao minimalismo nas tonalidades de laranja, rosa, vermelho e azul.

 

Influencers e especialistas preveem já que a tendência se acentue, e que as próximas coleções tenham mais estética do que ética e que a ditadura da moda possa transformar-se na moda da ditadura.


 Marina Ferraz



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terça-feira, 7 de outubro de 2025

Funcionários

 

Imagem gerada por I.A.

Não entendo. E não sei se me faço entender. Por isso, vá... vou largar a literatura por dois minutitos e tentar explicar como se fossemos todos crianças prestes a pôr os dedos na tomada.

 

Imaginemos alguns cenários.

 

Uma funcionária de limpeza é contratada para tratar da higiene de um apartamento. Uma vez contratada, ela inicia – não de forma momentânea e num ímpeto, mas de forma coordenada e regular – o roubo de objetos de maior ou menor valor a todos os residentes do referido imóvel. Os patrões despedem a funcionária porque não querem pagar a quem os assalta.

 

Numa loja de centro comercial um trabalhador é contratado. Vai trabalhar nos dias em que lhe apetece, nos outros não vai. Não apresenta justificação e nem sente que precise de se justificar. Nas horas vagas diz que é a única razão pela qual a loja continua a ter clientes. O patrão despede-o por justa causa porque não quer continuar a pagar ao funcionário sem saber com o que pode contar.

 

Numa redação é contratado um jornalista para fazer as reportagens que lhe são incumbidas. Todos os dias este jornalista decide escrever sobre assuntos diferentes daqueles que lhe são encomendados, com base nos seus gostos e interesses pessoais. O chefe de redação reporta a situação. O jornalista acaba por ser dispensado por incumprimento das suas funções.

 

Um motorista é contratado para entregar encomendas ao domicílio. Em vez disso, começa a utilizar para fins pessoais a carrinha da empresa e, se acaso a entrega é comida, aproveita para lanchar... Adivinhemos... é despedido...

 

Em comum todas estas situações têm o seguinte: os funcionários não cumpriram o que deles era esperado. Dirão, provavelmente, que o despedimento faz sentido. Que não estavam à altura do serviço, que eram desonestos, que não tinham responsabilidade ou seriedade... Toda a gente o vê. Toda a gente entende. Toda a gente se indigna com estas situações e as critica habilmente, destacando que “basta ter bom senso”. Até que... o dinheiro é o nosso e os funcionários pagos com o nosso dinheiro usam fato e gravata e se sentam no pódio parlamentar.

 

Aí, que roubem. Que faltem. Que usem os meios públicos para interesses pessoais. Que evitem os temas de maior importância para cumprirem a sua própria agenda... Façam o que quiserem...

 

O povo olha para o Estado com a soberania que a velha senhora lhe quis dar, como se estivessem acima do proletariado e quase tivessem bênção divina. Mas o dinheiro que lhes paga o salário é o nosso... e, pergunto eu, do alto do meu ponto de vista,... isso não faz deles os nossos funcionários?

 

Se fosse a funcionária da limpeza, o motorista, o jardineiro, a babysitter, o jornalista, o varredor de ruas, o empregado de balcão não o toleraríamos... alguém me explique assim, de forma simples e básica, como se eu tivesse três anos, esta falta de indignação.

 

A política é uma tomada em que continuamos passivamente a enfiar os dedos. O choque é de quem o faz e de quem assiste.

 

E ainda somos nós a pagar a conta da eletricidade.


Marina Ferraz



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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Dos clichés...

 


Pessoas que nos marcam não morrem. É cliché. Eu sei. Mas gosto deste.

 

Podem vir dizer-me quantas vezes quiserem os outros clichés e negarei cada um. Com o tempo tudo se esquece. Nada resiste ao tempo. O tempo cura tudo.

 

Quem procura a cura talvez se identifique.... e eu entendo. Há, talvez, um esmorecer da intensidade do sofrimento, uma habituação à presença da saudade que deixam os ausentes. A pouco e pouco, o tempo leva a voz e o cheiro, torna-se mais ténue o memorar da expressão dos olhos onde morava a alma. Mas não acredito que tudo se esquece. Não preciso de cura. E sei que resiste ao tempo: o amor, os gestos perpetuados em quem fica, as ideias repetidas de forma leve e quotidiana. Não existe agente erosivo que transforme isto em poeira.

 

Pessoas que nos marcam não morrem. Talvez ninguém morra. Gosto de pensar que toda a gente deixa no mundo uma marca indelével na passagem. E, hoje, no dia do idoso, no dia que marca o adormecimento de um homem que precisou de nascer para eu viesse a nascer também, eu trago nas mãos e por dentro muito mais do que a memória.

 

Poderia falar-vos, é claro, da pessoa que me viu entrar pela sala, cheia de emoção, no alto dos meus maduros 6 anos, ainda sem saber escrever bem as vogais e dizendo avô, avô, já sei o que quero ser quando for grande! Quero ser escritora. Podia dizer-vos que ele ergueu os olhos do romance da Agatha Christie, que afastou o cigarro com leveza e que me disse – melhor conselho de sempre! – então, escreve. Ou podia falar-vos do dominó, do gelado no murinho, dos filmes ao domingo à tarde, do chocolate quente, da piza caseira, do trajeto entre a cozinha e o quarto com o copo de água, do whiskey, das vindimas, da barraca na praia, do boné e do olhar meigo. Podia dizer tantas, tantas coisas.

 

Eu trago a memória. Mas a memória não importa. Importa que a memória não vem só. Traz consigo o amor. Todo o amor. Esse sentimento resiliente que, depois de 19 anos, não atenuou. E o amor torna-me grata pela saudade. Esse sentir a falta que é gesto de gratidão à vida por me ter permitido tê-lo de mão na minha, escutar as suas palavras, partilhar cada momento.

 

Não gosto da ideia de que o tempo cura tudo. Eu não preciso que o tempo me cure do amor. Levo-o comigo. Pretendo continuar a levá-lo comigo, mesmo quando isso assustar os outros. Porque o amor não é um erro. E senti-lo não é fraqueza. E cuidá-lo, mesmo na ausência, não é delírio, nem ilusão... Pessoas que nos marcam não morrem. Abençoado cliché, este que me conforta no luto da vida, fazendo-me ver além da capa exígua do visível.

 

 

Hoje, neste aniversário da tua ida, é como se aqui estivesses. Corro para ti e digo. Avô, avô, quero ser escritora. E tu respondes. Escreve. E ainda é o melhor conselho do mundo, porque me colocas na mão o amor indestrutível que trago comigo.

 

No reencontro, avô, devolverei esta tua parte para novamente a partilharmos. Até lá, resguardo-a dos outros clichés. E escrevo. Porque me disseste para o fazer... porque cabia o mundo todo nas tuas palavras... e, vê lá bem, a eternidade.

Marina Ferraz



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terça-feira, 23 de setembro de 2025

Paracetamol: uma solução

 

Imagem retirada do Pixabay

Diretamente da América para os meus ouvidos. A solução. A resposta. O milagre. Queridos colegas, amigos, conhecidos e desconhecidos neurodivergentes... não procurem mais! Estamos salvos. Curados. No futuro seremos tão neurotípicos que, se o eu de hoje olhasse para o eu de amanhã, o acharia profundamente chato e ridiculamente padronizado.

 

É só... aguardem: deixar de tomar ben-u-ron!

 

Elementar, meu caro Watson. Se aumenta a venda de paracetamol e aumenta o número de crianças diagnosticadas com autismo... o paracetamol causa o autismo. Estudos para quê?

 

Escutemos com assombro e resignação, admirando as maravilhas do endeusado conhecimento-novo da ciência da falácia. Celebremos. É a maravilha do pensamento lógico: No inverno vendem-se mais mantas. No inverno chove mais. Logo a venda de mantas provoca tempestades!

 

No envolvente abraço de uma exaustão difícil de explicar – estive com pessoas – enquanto repito, ao jantar, todos os outros jantares da semana – e estranho qualquer textura que não seja concordante com a habitual – e vou sentindo – com todos os excessos – o bom e o mau do dia, repetindo todos os diálogos que tive no último mês para ter a certeza de que percebi bem tudo o que se está a passar na confusão atípica da minha vida, apercebo-me de que não é apenas um oceano de água que me separa desta notícia, mas um oceano de lucidez.

 

Lembro as palavras de Beauvoir: Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. E eu, que mulher me tornei, autista já era... e, mesmo assim, só soube que era autista depois de me saber mulher. Tenho vivido na luta para aprender a viver com sê-lo. Autista e mulher. Num mundo que é preconceituoso e agreste para ambas as categorias e as obriga a viver atrás de uma máscara socialmente conveniente para não incomodar os outros.

 

E, afinal, era só evitar o ben-u-ron. Era só a minha mãe ter evitado o ben-u-ron. Era só...

 

Aprendi a neurotípica ironia. E uso-a com a minha máscara de fora. E com os meus dedos solitários, que embatem no teclado com a força que gostariam de imprimir, de palma estendida, no rosto de alguns génios-de-esgoto. Esses, que apresentam o teofânico potencial de um solução para o autismo, livre e liberta de quaisquer estudos científicos que a comprovem.

 

Responsavelmente baseando-se em nada, o presidente americano trouxe assim a boa-nova. A solução que ninguém procurava. A resposta à pergunta que ninguém fez. O milagre da transformação de falácia em conclusão. Era mais fã do tempo em que transformavam água em vinho (mesmo que isso não seja grande milagre, se considerarmos que 85% a 90% do vinho é água). Este é um milagre da lavra da América que é grande outra vez. Grandemente imbecil. E os ofendidos podem agora dizer que um homem não é uma nação. Não é... mas quem é que o pôs lá?...

 

Seja como for, já sabemos. Futuramente, menos paracetamol se quisermos uma geração com uma organização cerebral normativa... só temos de ir perguntar à mãe do senhor-do-pódio o que é que a mãe dele tomou. Para que não seja uma geração à sua imagem. De gente sem cérebro...

 

É que o cérebro do autista é diferente... mas, pelos menos, temos um!


Marina Ferraz



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terça-feira, 16 de setembro de 2025

A ministra

Imagem gerada por IA

 

Inteligência artificial. Eis um tema no qual a minha opinião – valha-me, pelo menos, a santa consistência – nunca mudou. Parece-me uma péssima ideia, baseada no otimismo tosco de quem dormiu nas aulas de História. Acho que o risco que traz é maior do que os benefícios... ainda que os benefícios – já o sabemos de cor – possam ser todos muito válidos e relevantes.

 

Atrás das invenções e avanços, entendam, está a figura imperfeita do homem. Esse ser incorrigível que já subverteu demasiados “milagres” para os transformar em novos níveis de inferno. Lembremos que a energia nuclear visava a energia limpa e não a militarização. O mesmo dizemos dos drones, do GPS, dos fertilizantes químicos, ou da tecnologia espacial, hoje tão profícua no lançamento de mísseis balísticos intercontinentais... Isto, claro, para não falar na esperança médica na engenharia genética, na biotecnologia, na impressão 3D... tantos exemplos que enumerá-los daria, por si, um artigo vasto.

 

O ser humano tem a capacidade e o dom de perverter tudo o que podia representar progresso, de o transformar numa arma capaz de destronar até as poucas alegrias que ainda sobram. O homem atrás da máquina não é feito da esperança que a criou. O homem é, por vezes, naturalmente inteligente, a ponto de esconder o quão artificial é nos seus intentos.

 

Tenho observado os efeitos dantescos da normalização do uso da inteligência artificial. Talvez um pouco mais por senti-los na pele. De um momento para o outro – que devagarinho não foi! – reduziu o fluxo de trabalho e o quanto os clientes se dispõem a pagar por ele. Acusações do uso indevido das novas tecnologias surgem do nada. Desconfiança de responsáveis e clientes aumenta. Fala-se de que a inteligência artificial é, agora, artista. Escreve, compõe, pinta... Escapa a quem o diz que a arte é processo e não produto. Quanto se perderá – pergunto – se a arte perder a alma? Se o artista deixar de existir para colocar nela o pó dourado das suas lágrimas e dos seus esforços e do seu olhar sobre o mundo?

 

A minha opinião nunca mudou. Acho que, num mundo cada vez menos humano, caminhamos – irreversivelmente – para a nossa própria destruição. A minha opinião nunca mudou. Mas, há cerca de uma semana, tremeu... Tremeu por isto: A Albânia nomeou recentemente Diella, uma ministra gerada por inteligência artificial. Esta falsa ministra – não confundir com as ministras falsas – faz parte do novo executivo nacional albanês e pretende-se, com a sua integração, garantir que os contratos públicos estão livres de corrupção. Ora. Primeira reação. Pensei que era fake news, essa outra praga do nosso quotidiano, através da qual, de repente, imaginamos o Presidente da República a provar um cheeseburger numa visita oficial ao estrangeiro ou temos imigrantes a receber subsídios milionários... Depois, encontrando a mesma informação em incontáveis sites noticiosos de alegado prestígio e seriedade – foco no alegado – resignei-me com a veracidade da notícia. E sorri...

 

Depois de sei lá quantas notícias de estudantes que usaram esta tecnologia para não aprender nada. Depois de sei lá quantos artistas a queixarem-se de como se sentem roubados na sua arte. Depois de sei lá quantos dias a desesperar porque o trabalho não chega e nos estamos a descobrir substituíveis... Finalmente uma área de integração da inteligência artificial que pode oferecer alguma utilidade efetiva ao mundo. Na política, qualquer forma de inteligência é bem-vinda. Na política, julgo... pior do que está, não fica.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de setembro de 2025

Apostasia


Imagem do Pixabay


Há 36 anos alguém me regou. A água que me regava dizia-me para crescer em Deus. Nesse dia, sem que dissesse palavra, afirmaram com convicção que eu seria sua filha, que estaria nas suas mãos. Mais tarde descobriria que Deus me fez. Que Deus tudo podia. Que Deus está em toda a parte e tudo sabe.

 

As afirmações sem espaço de discussão calaram – quantas vezes à pressa – as perguntas que eu tinha. Que mãos moldaram e cozeram o meu barro? E, se foram as de Deus, porque era eu um ser imperfeito e diferente, andando pelos corredores da vida com medo da próxima agressão? Se Deus tudo sabe, para quê as confissões? Se Deus está em toda a parte e tudo pode... porque não trava o sofrimento, a guerra, a fome...?

 

A Igreja – e nunca Deus – estendeu mil vezes as mãos pedintes aos pobres, exibindo o ouro das suas ostentações enquanto sorvia o seu pouco. A Igreja – e nunca Deus – ofereceu-me a sentença, dizendo que, faça o que fizer, sou pecadora... Talvez, olhando agora, tenham sido mais honestos do que aqueles que me maltratavam sem que eu soubesse porquê. Engoli a primeira hóstia depois de engolir muitas homilias. Mas não foi nas palavras de párocos e beatos que encontrei fé... encontrei-a nas ruas, nas florestas, nos livros. No mar, que falava comigo. Na voz da minha avó – reflexo de bondade – mas ainda assim condenada, como eu, ao rótulo pecador.

 

Com passinhos pequeninos, fui apresentando as perguntas. Com rugidos gigantes, foram tentando calar-me. E a alma, que sabia onde tinha a sua fé, foi-me levando aos bocadinhos até aos santuários feitos de pinheiros vivos, de rios, de correntes, de brisa, de sol e lua. Pagã nos olhos de Deus e dos Deuses, deixei assim a pecadora que fui na infância e rumei a destinos sem pecado.


Numa tarde de verão – deste verão, que agora dá um último respiro – sentei-me durante uma hora na paróquia onde, faz hoje precisamente 36 anos, me regaram. Entreguei a carta que me divorcia da decisão dos outros. Agradeci os ensinamentos bonitos – também os houve – que ficaram entre os rótulos e as penitências. Falei sobre a diferença entre a religião e a fé de forma clara e indiscutível. Falei dos crimes cometidos pelos homens em nome de Deus e do desacordo face à expiação. Das passagens bíblicas que condenam o incondenável. Dos perigos de se dar a outra face... mais agora, num mundo que não cansa de atacar. Nem por uma vez tentaram desafiar a minha decisão. Entrei pecadora sem crer no pecado e católica sem crer em Deus. Saí pagã, como já era, crendo na Natureza. Saí apóstata e infiel nos olhos de alguém.

 

Atravessando a igreja, à saída – a mesma em que entrei para que me regassem – vi Cristo, seminu e crucificado, como sempre. Desejei-lhe uma Natureza viva, lá por onde andar, agradeci novamente, porque a sua filosofia de bondade tem valor. Depois, disse baixinho: Perdoai-lhes, que sabem exatamente o que fazem.

 

Lá fora, o sol brilhava. O dia estava quente. Tinham-me regado. E eu cresci. As minhas raízes estão firmes no solo. Sou filha de Mãe e Pai, de Avó e Avô, do Sol e da Lua, da Água e do Fogo, da Terra e do Ar. Há um mundo inteiro à espera de ser melhor. E eu tenho fé...

Marina Ferraz



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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Mau tempo

 


Hoje está mau tempo. Foi assim que ela começou a conversa. É assim que se começam as conversas quando não há assunto. É assim que se faz um alinhavo no silêncio, com um fio muito lasso de préstimo, para que não pareça que o espaço entre nós e o outro é um rasgão. E eu, que podia ter cordialmente seguido os ensinamentos arcaicos do politicamente correto. Eu, que podia ter olhado pela janela para me resignar com as nuvens densas que povoavam o céu. Eu, que podia ter-me limitado a dizer algo breve e concordante – de facto, está – ou até acrescentado algo que permitisse o decurso da conversa – penso que acabou o Verão... – olhei-a, em vez disso, com os olhos muito cansados, sem me importar com a meteorologia. E disse: já não é de agora.

 

Está tempo de guerra. Está tempo de preconceito. Está tempo de se temer a rua. Está tempo de se temer o futuro. Está tempo de se temer. Metade do nevoeiro é smog. A escuridão do céu tem fumos e desesperos. A chuva é lágrima. Cai e não rega senão as desilusões. Apontam as temperaturas no mapa do país, para que possamos prever os desabamentos de terra e as outras desgraças que virão de arrasto no rescaldo do incêndio que o dinheiro ateou. Está tempo de dar mais a quem tem demais. Está tempo de tirar a quem não tem para que esses tenham. Está tempo de olhar o abismo com desejo. Está tempo de saltar sem dúvidas. Está tempo de embater no solo para constatar que doía mais antes do salto. Está tempo de quebrarmos os ossos e de dilacerarmos a carne, antes que alguém o faça por nós. Está tempo de se roerem as gentes até ao tutano da sua sanidade. Está tempo de condenar a arte que pinta com sangue as verdades do tempo. Não me importa muito se é o tempo da toalha estendida na areia ou o tempo da gabardine. Está mau tempo. E já não me lembro da última vez em que o tempo estava bom.

 

Claramente, a senhora que não gostava de nuvens também não gostou da resposta. Talvez por descobrir que trago uma nuvem sobre a cabeça, de onde chovem ocasionais verdades. Talvez porque tenha conseguido escudar-se da ruindade dos tempos até hoje.

 

Uma nuvem afasta-se para que um raio de sol rasgue o manto cinzento e alumie a rua. Talvez o tempo melhore. Ouço-a dizer a alguém. Ainda bem que não mo disse a mim. Honestamente -  teria eu respondido – duvido!


Marina Ferraz



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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A escola

 

Imagem retirada do Pixabay

Quando eu andava no colégio, aprendemos a relacionar a Irmã Bom Pastor mais com os doces do que com as hóstias. A simpática freira vestia sempre um sorriso juntamente com o hábito e ganhava a simpatia de todos com facilidade, falando mais da Terra do que do Céu, e mais da culinária do que de Deus. Ninguém duvida que acreditasse num senhor-com-maiúscula, nem que orasse ou se confessasse regularmente. Mas, talvez por ser criança, lembro-me mais dela na cozinha do que na capela. Tinha mão de anjo para a gastronomia. Operava milagres diversos, incluindo o da multiplicação de crianças na fila do recreio para os bolinhos ainda mornos, sendo o bolo de chocolate um dos favoritos, vendido na salinha debaixo das escadas, junto à copa.

Chegada a nossa vez e oferecidos alguns escudos, escutávamos a pergunta com ou sem açúcar. E não, não era sobre a confeção do bolinho de chocolate que se falava – que tinha açúcar era certo - mas sobre o açúcar branco refinado que, a gosto, punham ou não sobre o mesmo.

 

Hoje, seria impensável dar a uma criança – ou até vender numa escola – os bolos da Irmã Bom Pastor. Para começar porque trouxe do colégio um texto mais importante do que qualquer evangelho – a receita do bolo – e sei bem a quantidade de açúcar que leva, a medida do óleo e como pode ofender todos os que não podem e não querem consumir glúten. E, depois, porque a lei, entretanto, fez questão de aplicar normas muito estritas sobre os produtos que podem ser vendidos, e duvido que as delícias caseiras de uma simpática idosa seguissem todos os padrões exigidos pela brigada do saudável.

 

Hoje fiz esse bolo. Partilhei-o com quem, como eu, ignora as normas e restrições que o mundo tem vindo a impor de forma exponencial e hostil. Ainda há pouco, apeteceu-me uma fatia, que aqueci e cobri de açúcar, buscando na memória o sorriso doce da senhora de hábito que, por hábito, frequentava a copa. O chocolate misturou-se com o açúcar e colou-me perguntas aos dentes. Perguntas sobre a razão que nos leva a negar deliciosos prazeres às crianças, para evitar que sofram de diabetes, mas continuamos a dar-lhes um mundo que lhes confere stress, ansiedade, depressão, burnout, distúrbios do sono, distúrbios alimentares, dependência digital e, em muitos casos, vontade de não estar vivo... Parece que, de súbito, se serve apenas uma saudável falta de futuro nas escolas.

 

Devia ir lavar os dentes. O açúcar faz cáries e as perguntas fazem azia. Não entendo nada disto. Mas, mais uma vez, quando eu andava no colégio também se ensinava a desenhar e não a desdenhar... e... olhemos o mundo!


Marina Ferraz




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