terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Pessimismo

 


“Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo.”

- José Saramago

 


Não creio que a felicidade volte.

 

Esta foi a frase que ela disse, fechando a porta e apagando as luzes. Colando páginas antigas de jornal nas janelas e arrastando-se até ao sofá, onde se escondeu sob a manta velha.

 

Tinha as mãos geladas e o gato miava. Ouvia-se o som do pensamento errante, quando pressionava as tábuas soltas do soalho humedecido. Os espelhos refletiam sonhos que nunca se tinham concretizado. E a figura itinerante da mágoa insistia em sentar-se na poltrona mais cómoda, olhando para ela, com desprazer impresso nas rugas ocasionais que a eternidade causara.

 

Lá fora, prostituíam a palavra amor e faziam autos de fé à liberdade. Os olhos eram cúmplices da língua que não tinha pudor na denúncia. O ódio patrulhava a cidade, levando mais depressa a mão às armas do que ao sentido de empatia.

 

Pediam a toda a gente que pagasse com cartão, para evitar que o dinheiro sujo contaminasse as mãos cansadas dos escravos. Mas o único cartão que a maioria das pessoas tinha era aquele que puxava para os becos escuros, para encontrar abrigo e dormir mais quente.

 

Ela tinha sorte porque tinha um teto. O teto protegia-a de inimigos visíveis e invisíveis, como um deus sem religião, que só cedia quando a chuva caía durante mais de meia hora seguida.

 

Não creio que a felicidade volte.

 

Repetiu, com a voz abafada pela manta, que tentava colmatar a temperatura constantemente gélida, que vinha da rua e da casa e da alma, encontrando-se toda na pele que, insistentemente, não aquecia.

 

A figura atroz da mágoa que se sentava na poltrona, agitou-se levemente e ofereceu-lhe concordância em silêncio. O gato miava.

 

Lá fora, o som das sirenes ajudava a ocultar o som que o estômago vazio das pessoas fazia. Já não se alimentavam de comida e de esperança há muito tempo. Quase desde o tempo em que ainda sobrava, nelas, esperança de que a carta fundamental fosse fundamentalmente resistente a qualquer vírus de tirania.

 

O som das sirenes também lhe escondia os sons orgânicos. Mas lembrava-lhe a morte dos pais. Dois tiros certeiros, por saírem na hora errada, do dia errado, por uma necessidade qualquer.

 

Já lhe tinham cortado a eletricidade há alguns meses, por falta de pagamento. Mas, para abafar aquele som terrível, de sirene e desgosto a sinalizar o deserto das ruas, ligou o rádio a pilhas para buscar conforto.

 

Claro: a música era coisa rara. A cultura fora a primeira a cair quando todas as estruturas tinham abanado. Os artistas tinham sido os primeiros a dar o peito às balas e a pintar as ruas de vermelho. E ela tinha saudades da música e do teatro e da poesia.

 

Estática interrompia a voz do jornalista que anunciava uma nova vaga de doenças e terminava com mensagens de esperança sobre um amanhã melhor. A mágoa levantou-se da poltrona, rindo e saiu, deixando a porta aberta.

 

As sirenes estavam mais próximas. Entraram com o vento. E ela deixou que a porta assim ficasse, escancarada, deixando entrar sons e sonhos e saudade de tempos que a memória já apagava.

 

O frio enregelante arrepiava-a. O gato que miava fugiu. Ela destapou-se. E repetiu:

 

Não creio que a felicidade volte.


Marina Ferraz



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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Rotina

 

 Fotografia de Rui Barroso


O despertador toca. Ritmadamente. Arrancando-nos do sonho pesado e do sono leve, onde continuamos a contemplar, com a mesma desatenção, o impossível. Na ânsia de desligá-lo, há o rebolar sobre o próprio corpo, o esquecer de que o travão humano e cálido que povoava a cama é, hoje, apenas uma botija de água quente (agora morna), a separar-nos do precipício no fim do colchão. Há a queda. Nada de espalhafatoso. O pé chega antes das costas, sustenta o peso. Mas o chão, húmido e frio, como o resto da casa, lembra-nos de que a hora de levantar é essencial para que se pague a conta da luz, já astronómica, mesmo sem desumificadores e sistemas de aquecimento.

 

Quem nos manda ficar em casa talvez não o saiba, nas suas casas com ar condicionado e soalho térmico radiante, salamandrazinha de pellets e lareira com recuperador. Mas, para a maioria dos seres humanos, as casas são mesmo assim. Calor não é conforto a que todos tenham acesso.

 

Da lavagem do rosto à higiene matinal, com a gata a pedir atenção e um sol envergonhado a espreitar pela janela com o cuidado de não entrar, por temer que, se entrar, não possa sair mais; e até ao primeiro café do dia: luxo imprescindível no começo destes tempos sem rua.

 

A rotina faz-se no trabalho e na arrumação sucessiva do que está desarrumado e do que pode ser reorganizado. E, depois, faz-se no acumular de novos trabalhos e no deixar que tudo se desalinhe novamente. É preciso que haja algo para fazer. Se não houver, corremos o risco de que o corpo parado seja invadido pelo frio que o rodeia. E, como toda a gente sabe, quando o corpo enregela fica só o pensamento. Quente e ativo, o pensamento leva-nos com facilidade a lugares de tristeza e revolta.

 

De repente, no sedentarismo de um sofá, somos engolidos pelos sonhos que não cumprimos, pelas más decisões que tomámos, pelas preocupações que acumulam sobre o lugar para onde as coisas caminham nestas ruas desertas de gente e de sentido. Tentamos distrair-nos. Contamos os carneiros nas redes sociais. Um, dois, três. O frio deles deve ser melhor do que o nosso. Pensamos. Pensamos mas já nem dizemos. Há uma mudez inerente ao desassossego. Adianta de pouco ter vontade de falar quando se está só.

 

Salta, das notificações das notícias, a ideia de que mudaram as restrições e que devemos cumpri-las para nos protegermos. O pensamento continua a fazer jornadas de 24 horas por dia e 7 dias por semana. Serve sinapses a postigo e traz sempre conclusões no pires, de oferta. Não tem cafeína mas oferece insónias gratuitas que nos obrigam a colocar novamente o despertador para que consigamos sair da cama no dia seguinte, para viver mais um dia frio. Esse pensamento não é contra estar em casa – onde, aliás, sempre gostou de estar – nem tem como intuito pôr o corpo que povoa ou os demais em risco. Mas é um pensamento tão livre, que permite excursões alargadas a todos os monumentos das arestas e defeitos e falhas tectónicas de nós, da nossa casa, da nossa sociedade, do nosso planeta.

 

O problema não é a casa. O problema nunca foi a casa. O problema é que, em casa, é mais difícil fugir da sala de tortura que todos temos dentro de nós.

 

O despertador toca.

 

Desligo o despertador.

 

Tiro um café.

 

Estou cansada. Doem-me as costas. Tenho frio. É só de mim ou este Inverno está mesmo muito frio?!

 

Enquanto bebo o café, penso que gostaria de aproveitar o sol num jardim qualquer. Salta das notificações das notícias que eu sou a causa de todos os males do mundo.


Marina Ferraz



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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A pessoa que me salvou a vida

 


Ela não era nada de especial. Ou, na verdade, talvez fosse. Diziam que era. Mas de forma condescendente. Especial nunca significava especial. Especial significava muitas coisas. Difícil, diferente, estranha. Especial era a palavra condescendentemente colocada na frase, por aqueles - tão poucos - que se preocupavam com a ideia de não a ferir.

 

Aos meus olhos, ela não era nada de especial. Baixinha, gorducha, de cabelos desgrenhados. Sempre agarrada a cadernos cujas capas rasgavam do uso excessivo. Sempre agarrada a canetas cuja tinta durava dois dias. Com os fones nos ouvidos e baladas fora de moda aos berros. Atenta às letras e desatenta das pessoas. Com medo de abrir a boca em público, nem que fosse apenas para pedir um hambúrguer ou uma colher para comer o pastel de nata como as crianças.

 

Ela não era nada de especial. Se não sabiam dela, o mais provável era que estivesse na biblioteca. A apaixonar-se pelos livros e o xadrez e os rapazes que também se escondiam entre aquelas prateleiras literárias. De forma leve e fugaz, nem sequer sabia o que era o amor... mas construía, sobre ele, narrativas épicas que tomavam contornos muito mais maduros do que os seus anos de idade.

 

Não sendo especial, ela era excessiva. Arrastava muitas histórias sobre os ombros. Tantas que eram mais do que as que tinha vivido. O horizonte das pedras do chão era-lhe familiar como o mar é familiar ao sol que se queda no fim da tarde. Mas cada pedra tinha uma história só sua. E, se não tinha, ela inventava-a. Acreditava que todas as coisas deviam ter um nome, uma narrativa, uma vida. Até as suas cicatrizes tinham nome e história. Algumas - que amava – trazia da infância. Outras - que apagaria com facilidade, caso tal chance lhe fosse dada – eram já fruto de uma juventude onde a sanidade se tornava discutível. Gostasse delas ou não, dava-lhes nomes, história e razão; deixando-se riscar por elas com a mesma facilidade com a qual tatuava cadernos com palavras.

 

Essa menina não gostava do reflexo do espelho. Mesmo assim, ainda o preferia ao reflexo da sociedade. Temia que o mundo estivesse a seguir os passos da decadência e que, um dia, viesse uma guerra ou - pior - uma ditadura. Preocupada com essas questões, chamaram-lhe várias vezes desequilibrada e louca. Ou especial. Mas nunca no bom sentido.

 

Dizia que não se importava com as críticas. Era mentira. Ela importava-se. Mas não se importava – nunca se importou - o suficiente para mudar. E, com uma força inexplicável, foi uma muralha firme face a todos os ventos e marés, face a todas as adversidades.

 

Não mudar e não querer mudar é, aos meus olhos, o que a tornou especial. Não na medida da condescendência mas na da comparação efetiva com o que é normativo, regular, medíocre e banal. Os meus olhos, que a fixavam a partir da superfície espelhada do vidro, passaram de ver a menina gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado, para ver uma imagem de força intemporal. Assistir ao embate que a colocava só contra o mundo, as pessoas e os outros, fossem eles quem fossem, foi limpando a imagem pouco clara que dela eu tinha e fazendo dela uma espécie de heroína só minha, sem banda desenhada que a apresentasse ao mundo.

 

Pego na fotografia. O corpo que pega na fotografia é magro e tem o cabelo esticado. Usa saltos altos, às vezes, e maquilha-se com frequência. Esse corpo pega na fotografia. É quando ele lhe pega que eu a vejo. Gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado. Os meus olhos maquilhados brilham um bocadinho a olhar para ela e mostram-na a alguém, que me pergunta se tenho vergonha.

 

Encolho os ombros. Não. Não há vergonha que possa ter-se da pessoa cujas pernas trilharam o meu caminho. Nem vergonha que possa nascer das mãos que se deformaram para me fazer cumprir o sonho. Nem vergonha que possa existir sobre quem, com uma fé maior do que a divina, decidiu acreditar no amor e na sua própria essência, mesmo quando a vida, na sua crueldade, punha falésias à frente dos pés, no caminho dos espinhos secos. Esta pessoa, concluo, foi quem me fez quem sou. Esta pessoa salvou-me a vida.

 

Devo-lhe tudo o que sou. A essa menina gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado. Penso que, de alguma forma, se ela não tem algo de especial, ninguém tem.


Marina Ferraz



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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A conversa

 

Fotografia de TanteTati


Sentei o meu coração no degrau. Obstinado e rebelde, todo cheio de frases feitas, anarquistas e insubordinadas, ele agastou-se, enterrando a face nas mãos e começou a contra-argumentação antes mesmo de ouvir o argumento, soltando um imaturo “tu não mandas em mim”.

 

Suspirei, engolindo a realidade que conheço bem. Essa de que não, não mando. Nem nele nem em todos os seus trabalhos de artesanato, onde o nó é dado no final de cada ponto, sempre com uma mestria digna dos melhores criadores. Mas não lho disse. Ainda trazia, suponho, aquela esperança irrazoável, despropositada e pouco sã de que, com a intenção certa e uma dose coerente de argumentos, um dia ele pudesse ouvir-me.

 

Não podes preocupar-te tanto com os problemas dos outros. Disse-lhe. Nem com os do mundo. Nem dar-te tanto. Nem amar tanto. Tudo isso é um caminho para a dor.

 

Assobiou para o lado. Trazia ventos frios do Norte com essa respiração que era trejeito de linguagem antiga, com uma etimologia muito própria. E repetiu, sem precisar de mais: “tu não mandas em mim”.

 

Tentei explicar-lhe. Sabes quando a televisão está ligada? Aquela pontada que sentes, feito corte na carne, ao ver ditaduras nascer de normas e pessoas cegas que a aceitam? Aquele remoer que sai das vozes de quem se diz sem teto, sem comida, sem futuro; que ecoa e faz danos nas tuas paredes arteriais? Aquela sensação de sufoco, que dá ferroadas sempre que assistes à morte prematura de alguém que não aguentou mais? Não é a televisão que te fere mas a tua teimosia. Não podes preocupar-te tanto com os problemas do mundo.

 

Respondeu-me. “Tu não mandas em mim”.

 

E, insistente, continuei. Ou aquela sensação de responsabilidade, que te acelera e mói, sempre que alguém que conheces te telefona, pedindo o teu conselho ou a tua ajuda. Já pensaste que poderias ser mais calmo, mais leve, se não obrigasses as mãos a clicar no verde incandescente, se não obrigasses as pernas a caminhar na direção dos problemas, se não fizesses com que toda a tristeza se embebesse nos poros da pele? Não digo que não te preocupes... Mas preocupa-te menos!

 

Respondeu-me. “Tu não mandas em mim”.

 

E, ignorando-o, continuei. Mesmo o amor. Vê bem: estás fora de época. Já ninguém é assim. As estações mudam e as pessoas também. Achas sensato o desenvolvimento desses sentimentos perpétuos em tempos de efemeridade? As pessoas chegam e vão. E tu ficas, com uma dose igual de amor por elas, estejam ou não. Sofres a saudade e a solidão com a mesma dose de desejo pelo bem-estar dos outros. E ainda te dizes feliz por essa felicidade que não te pertence. Também tens direito a ela, sabias? Podias amar menos, dar-te menos, aceitar menos e ser feliz com isso. A tua felicidade também importa. Ama menos.

 

Pensei que me respondesse. Assim. “Tu não mandas em mim”. Mas irritou-se. Levantou-se do degrau onde o sentara. Com uma força desumana, pôs as mãos nos meus ombros e obrigou-me a tomar-lhe o lugar, naquele pedaço de escada fria e marmórea, ladeado de paredes lisas e geladas.

 

Minha menina – começou – sentir dói. Dói como estar vivo deve doer. Porque o mundo é amargo e as pessoas sofrem e o amor, às vezes, magoa. Mas é a inquietude que te faz estender a mão aos outros. E é a mágoa que te faz querer plantar sorrisos. E é o amor que te leva até aos locais que são negados aos pobres de espírito. Por isso, lamento, vou sentir. Vou sentir tão plenamente que, em alguns dias, vais querer morrer. Tão plenamente que, em alguns dias, vais querer ser eterna. Tão plenamente como me apetecer.

 

Olhou-me ali. Derrotada, sentada no degrau, e olhou para mim, com um ar insolente. Antes de retornar ao meu peito ergueu-me o rosto, olhou-me nos olhos e acrescentou: “Além disso, tu não mandas em mim”.


Marina Ferraz



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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Balanço

 


 

Oscila. É mesmo assim. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontece e mãos que não largam as cordas.

 

Balanço.

 

Mãos ocasionais nas costas. Que empurram. Que elevam. Ou magoam. Ou derrubam.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

 

Despedi-me do negro dos tetos e das paredes húmidas. Do ninho. Dos pequenos mamíferos que roíam rodapés. Havia paredes com o meu nome ao largo dos eucaliptos. Mandei abaixo paredes e selei portas. Pintei tudo de branco e descobri o covil que havia de ser um lar. Lá, onde lendas urbanas aterram, de asas abertas; abri os meus próprios trilhos. 

Era uma emoção que me desabotoava o mundo ao mesmo tempo que o mundo encerrava com o aviso de uma pandemia. E havia um pouco de ruído interno nos meus órgãos, ao assinar o papel que firmava de meu aquele pequeno espaço de vista verde. Sim. Havia. Ruído. Soava. Bem dentro dos pulmões.

 

Não era Covid. Era só emoção.

 

O cheiro da tinta e os móveis amontoados junto à parede. Salas inteiras de narrativa fílmica. Gente que trazia promessas, junto com almas pardacentas, desamor e palavras moles. Segredos dispersos que me drenavam a conta bancária e a sanidade mental. O retorno inesperado do desalento, sob o teto onde, tantos anos anntes, a depressão nascera. E o pré-aviso do adeus, adiado com pedidos e orações e justificado em muitas horas de mãos agarradinhas, junto à almofada, contando histórias que já tinham sido contadas. Todas as noites. Todas. Menos uma. Aquela onde as estrelas caíram junto ao lago e as apanhei, para as guardar nos bolsos. Meses de clausura no inferno e uma noite de paraíso cantando na voz das constelações. Um aperto dentro do peito, que ora doía, ora vibrava.

 

Não era Covid. Era só expetativa.

 

O retorno. Três pinheiros sediados na frente da marquise adornada com esperanças infundadas. A incapacidade de gerir a caruma acumulada nos anos e o salto para a atividade física como se ela fosse um templo. O culto da arte do não pensar. E o pensamento que me perseguia, quando eu corria à velocidade de 7.4 com inclinação 2. 

O pensamento apanha-nos sempre. Mas a caruma é mais leve quando o passo é apressado, ainda que, de repente, na corrida contra as marés do tempo, nos encontremos com a realidade da respiração difícil. Não conseguir respirar. Ou conseguir… mas a custo.

 

Não era Covid. Era só motivação.

 

O adeus. Aquele. O do pré-aviso já feito. Frio incontrolável de mãos pousadas no medo que se eterniza quando se eterniza também a história do amor pela incapacidade de criação de histórias que se acrescentem às demais. O tempo esgota.

E o vazio. E a solidão. E a perda. E o luto. E trazermos 90 anos de histórias connosco, tentando encaixá-las à força nos nossos 31, como se coubessem, para que não morram também.

Uma dor que pontua o peito. Mas que se estende até todas as frestas, arestas e superfícies do eu, até não haver parte sadia em nós.

 

Não era Covid. Era só saudade.

 

A noite. Um coração que acelera. Justificativas no fundo do copo do vinho quente, que se bebe. Palavras caladas num espaço deserto que é meu. Palavras em catadupa, a pintalgar os meus poemas, que ninguém entende. E ainda bem. Cartas viradas, sem remetente. Querido futuro…

O tempo dos lírios. Um frio invernal nas minhas noites quentes. E, algures, uma respiração que falha. Descompassa. Explode. Uma respiração que falha.

 

Não é Covid. Garanto. Não é.

 

É o balanço. Constante. Oscila. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontecia e mãos que não largavam as cordas. A escolha entre o medo e o céu.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

Largo.

 

Agora largo. Não sei se com fé nas asas ou na maciez do solo.

 

Sustenho a respiração.

 

Não é Covid. É esperança no futuro.


Marina Ferraz



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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Poemas paridos

 



Eu não nasci. Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Monstro. A minha mãe não sabia que, no parto, expelia para o mundo um ser diferente. Até o meu pai, que vê defeito em tudo, me achou perfeitinha. Tinha os dedinhos todos nas mãos e os dedinhos todos nos pés.

 

Longe deles, esses seres que me fizeram entre luz e trevas, estava a compreensão de que, dentro do meu cérebro pequeno e ainda subdesenvolvido, as correntes elétricas passariam de forma distinta, em tempestades agrestes de relâmpago e trovão simultâneos. Longe da mente desses amantes que me geraram numa noite de outono, estava a compreensão de que eu não poderia ser, em pleno, uma menina como as outras. Essas que nasciam, como as pessoas e que diziam ter nascido ao longo de toda a vida, nessa condição de gente.

 

Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Como sou bicho - monstro - eu fui parida. Vim ao mundo a ferros e colei a placenta da minha mãe à carne. Esvaiu-se em sangue, tolerando a dor do inimaginável para me ter. Sentiu o peso anémico do mundo nas pernas. E o peso desesperado da insónia quando, durante meses me carregou sobre o peito, para que dormisse. Eu fui a primeira força imobilizadora que ela conheceu. Uma espécie de paralisia do sono muito própria, com tentáculos manipuladores construídos de choro e birra.

 

A minha mãe foi, não duvido nem por um instante, a primeira vítima do monstro que eu sou. Mas também foi uma das tutoras mais presentes em todos os momentos da minha vida e, nas lides do amor, o perdão é fácil. Criou-me, sem rancor pela dor causada no parto e foi sem rancor que me acompanhou na minha própria mágoa, quando em menina, jovem e adulta continuei a ser monstro.

 

Os meus horizontes sempre foram demasiado distantes. As minhas estradas demasiado longas. As minhas pernas demasiado curtas. E a minha mente demasiado. Toda feita de excessos, eu agucei a lâmina dos meus dedos, cortando aqui e ali tudo o que me parecia errado, até não haver mais nada que se cortasse senão o vazio e a solidão que, por serem cortantes, não podem cortar-se.

 

Eu não nasci. Em alguns dias gostava de ter nascido. Como nascem as pessoas que só querem abrir os pulmões, respirar, seguir atrás das outras, casar, ter filhos, ter netos, morrer tranquilas e acreditar numa vida eterna. Mas eu não nasci. E também não verguei. Selvagem, louca, cheia de vazios, eu fui sempre a manchinha persistente no cristal. O traço fora de contexto. A linha sem sentido do poema. O acorde desafinado da canção.

 

Nunca desejei o mal e sempre soube bem quem queria ser. Mas o universo tinha outro plano para mim. Este. De me prender à racionalidade, ao raciocínio e às folhas de papel.

 

Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Tornam-me os dias difíceis de aceitar e deixam-me afundar no meu mar de emoções pouco sadias. Há quem conte conquistas, eu conto textos. Há quem conte amores, eu conto histórias de gente que feri. Há quem conte que nasceu.

 

Eu não nasci. O mundo pariu-me. E não me pariu simplesmente, embora me tenha parido só. Pariu-me para causar sofrimento. Pariu-me para ser monstro e disse-mo, colocando-me no ventre da minha mãe e fazendo dela a primeira vítima do meu caos.

 

O mundo pariu-me para causar sofrimento e tenho medo dos passos que dou fora das linhas coordenadamente alinhadas da tela do computador. Porque quando o mundo me pariu para causar sofrimento, não se lembrou do papel imenso do amor. Não se lembrou de que a bondade é aço. Não se lembrou de que o perdão é espada. O mundo pariu-me. Mas quem me criou não foi o mundo. Foi a minha mãe. E ela criou-me para amar.

 

Então, ainda que tenha sido parida e condenada a ser caos num mundo confuso, continuei a usar a bandeira do amor. Um amor caótico e obscuro, onde multiplico todos os nadas do mundo por infinitos de mim, sempre com resultados nulos.

 

Faço-me mãe nas folhas. Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Rasgam-me por dentro, como em tempos eu fiz. Dormem no meu peito, provocando-me insónias. São incompreendidas pelo mundo, embora a olho nu sejam palavras normais. Entendo a dor da minha mãe e o seu amor, olhando os meus versos. Entendo como é possível que, olhando para mim, ela não encontre os traços bravios que me fazem monstro. Também os meus poemas paridos me parecem exemplares. Quando olho os meus poemas paridos, eles nunca parecem paridos. Parecem simplesmente poemas. Parecem simplesmente meus.

 

E não são.


Marina Ferraz



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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Promoção da Semana

 

 Fotografia de Michael Gaida


Eu já fui uma dessas pessoas. Dessas que acompanham folhetos e promoções. Que visitam sites de antevisão. Que elaboram listas de dois quilómetros, catalogadas por hipermercado e secção, definindo a rota dentro e entre estabelecimentos, de forma a garantir a eficácia e a economia máxima.

 

A poupança acontece.

 

À medida que os super e hipermercados, com os seus preços inflacionados somam os lucros de milhões, nós congratulamo-nos pelos vinte ou trinta euros que poupámos. Ou que teríamos poupado – eventualmente – se não os tivéssemos gasto no combustível enquanto dirigíamos de um centro comercial para o próximo.

 

A poupança acontece.

 

Por acontecer, eu já fui uma dessas pessoas que faz do linear uma trincheira e que desenha círculos em torno das imagens promocionais mais apelativas. Eu já fui uma dessas pessoas que sabe em que dia começa a promoção, em que dia termina e qual o melhor dia para ir às compras considerando os folhetos, os cupões, os talões, as mensagens, os emails e a ofertas especiais de aniversário da marca, do meu aniversário, do Natal, do Ano Novo, do Dia da Mãe, do Pai, do Primo, do Vizinho e do Estranho Que Podemos Vir a Conhecer Daqui a Uma Década.

 

Já fui uma dessas pessoas que conhece as datas das sextas-feiras mais negras e das segundas-feiras mais digitais e dos finais de semana mais cor-de-rosa.

 

A poupança acontece.

 

Carrinhos cheios de produtos carregam-se em sacos. Riscam-se, aqui e ali, produtos listados. Discute-se sobre se devemos levar o produto com o melhor preço, o produto com a melhor relação de qualidade-preço, o produto com a melhor relação de quantidade-preço ou o produto com a melhor relação de vida saudável-preço.

 

De repente, tudo é um mar de dúvidas que se estendem até à caixa para o feliz momento da poupança, que afinal não é tão feliz, quando nos apercebemos de que o gasto é efetivo e a necessidade pela maioria dos produtos que fazem “bip” nas mãos da fatigada operadora de caixa são desnecessários.

 

Olha-se o talão, à espera de ver validado o sentimento. Esse. O da economia. Recebe-se dele, com maior agrado, o valor que deveríamos ter pago e onde a soma comprova que tudo valeu a pena. E, vejam bem! Saíram novos talões para que voltemos a poupar depois. Vejam bem! Ainda por cima, também podemos poupar no combustível mais caro das gasolineiras mais caras, uns quantos cêntimos por litro!

 

O esforço empregue parece valer a pena. Cria-se um ciclo vicioso, que se estende, que se repete. Lista atrás de lista, sempre de olhos postos na ideia do gasto que não se quer ter. Sempre dizendo o mesmo:

 

A poupança acontece.

 

Sim. A poupança acontece. Mas é cara. O preço dela nunca baixa e não existe promoção que lhe valha. Custa tempo. Custa paz de espírito. Custa, em alguns casos, a vida.

 

Custa. A. Vida.

 

Deixei de estar disposta a pagar a vida pela poupança. Deixei-me de folhetos. Deixei-me de listas. Deixei-me de análises caóticas.

 

Quando largamos, é fácil compreender que não vale a pena. A nossa paz é um preço alto demais e nem a soma de todas as promoções anuais me paga os anos de vida perdidos no processo.

 

No folheto dos meus dias, a única promoção da semana que me interessa agora é ser feliz. A luta por essa felicidade implica não ser essa pessoa que fui. E, é certo: não fazer essa gestão de economias não é uma rotina que me poupe gastos, mas poupa-me o desgaste.

 

O preço da poupança é demasiado alto e não o quero pagar.

 

E sim, eu sei, há qualquer coisa em promoção algures que me faria poupar imenso. Sim, sim… eu conheço a história.

 

Mas, olhem, sabem que mais?! Não me digam. Poupem-me! Estou ocupada com a promoção do meu bem-estar.


Marina Ferraz



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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Colisão

 



 Fotografia de Analua Zoé


Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase dita, no rescaldo do dia que tinha passado, enquanto despia a pele e se deixava ser somente alma, no centro da sala fria.

 

Havia muitas histórias nas impressões digitais da pele que despia. Todas essas histórias, criadas pelo excesso, pareciam vazias quando o dia terminava e sobrava solidão. O excesso de amor, de desejo, de vontade de sorver o ar… tudo se transfigurava em vazio.

 

Por um lado, admitia: era bom ser alma! Chegar a casa, descalçar as normas sociais, despir a pele, atirar os órgãos para a cadeira da desarrumação… e deixar o silêncio inebriante regar as arestas tortas do pensamento. Por uns momentos. Antes de o silêncio gritar. Um grito agudo, cortante, compulsivo. Um grito que trazia vozes ancestrais dos tempos remotos do mundo, acordando ossos despidos que forram as capelas ermas e o chão das metrópoles.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que deixava de fazer sentido quando a pele, despida e largada num canto, servia apenas de brinquedo solto ao gato irrequieto, que preferia sempre mordiscar o mindinho da mão direita, vá-se lá saber porquê.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, ela fitava a cadeira e todos os seus órgãos vitais. O coração, meio apodrecido dos desgostos, era o eterno guerreiro que contava histórias aos outros, enquanto ela aproveitava a condição de ser livre. Nessa noite, a história que ele contava era bonita. Efémera. Mas bonita. Sobre copos de vinho quentes no Inverno quedado e olhos fechados no sentir de outras formas de calor. Nessa noite, a história que ele contava, fazia o cérebro contrafeito e irrequieto saltar da cadeira e correr de um lado para o outro, querendo encontrar a linha da meta para ter uma resposta concreta para todos os seus equívocos. E o fígado arrotava, levando a mão à boca e pedindo perdão pelo incómodo. E os pulmões bebiam das palavras do coração como se fossem ar. E um sistema digestivo inteiro revolvia, com fome de voltar ao passado.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, a alma sabia que despir-se de corpo era atroz. Os órgãos pareciam sempre meio perdidos, ainda que a pele se divertisse, estendendo o mindinho direito ao gato, que só parava de roê-lo quando a inquietude do cérebro chamava a sua atenção.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que, enquanto se secava, a alma repetia na sua cabeça e que a levava até ao tempo em que descobrira que a perfeição é tão imperfeita quanto a imperfeição é perfeita. Dependia das perguntas essenciais. Quem? Quando? Onde? Porquê?

 

Mas ela estava cansada. Cansada dos ponteiros. Cansada da solidão. Cansada do silêncio. Cansada do grito que ainda soava, desse silêncio só, todo cheio de promessas e de memórias.

 

Agarrou os órgãos um a um e vestiu a pele. Olhou ao espelho. Vestida de corpo não parecia uma alma que queria ser perfeita mas apenas humana. Uma camuflagem grosseira que lhe permitia sair à rua e fingir que era como os outros.

 

Despediu-se dos órgãos, para que adormecessem. E da pele, para que se acalmasse. E do gato, que continuava a tentar roer o mindinho direito, agora vestido e carnudo.

 

Com os vasos lacrimais perfeitamente encaixados nos olhos, culminando no espaço onde as pálpebras se encontram, chorou. Estava cansada. Tão, tão cansada. Da perfeição e do resto. Deixou a morte colidir com a vida. Deixou a vida colidir com a morte. Da colisão nasceu o caos imperfeito da noite.

 

Depositou-se, assim vestida de corpo, na alcova. Sonhou que era imperfeita e que, ainda assim, lhe queriam bem.

 

Acordaria na manhã seguinte. Para tentar ser perfeita. Outra vez.

 

Marina Ferraz



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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Louva-a-deus

 


O louva-a-deus pousou numa folha que se agita. O vento sopra e dizem que é advento. Sou mais crente da sacralidade de ventos do que de adventos e coloco mais fé na Natureza do que nos homens, ainda que esses homens sejam profetas. Mesmo assim, quando o vento sopra e mo dizem – que é advento – toda a minha formação de berço começa, aos poucos, a agitar-se no meu peito pagão.

 

Há gente que louva a deus. Escrevendo deus com maiúscula, como se fosse uno. Mas é nas filas para as lojas do centro comercial que se celebra a dádiva. Com sacos amontoados entre mãos, dividindo o peso. Dois sacos de um lado, dois sacos do outro e o peso da alma a meio. É tempo de ter as mãos cheias. Demasiado cheias para se unir em oração ou para dar carinho ou para estender moeda que sirva de esmola a alguém que tem fome.

 

O prazer divino do nascimento do senhor – palavra que frequentemente também escrevem em maiúscula – é celebrada na mesa da consoada, com o recheio de prateleiras integrais do supermercado. Não falta o bacalhau – cujo preço, já ridículo, sobe sempre – nem a couve portuguesa – que, entretanto, já esgotou vinte vezes numa estratégia comercial que continua a funcionar ao final de anos e anos de uso – nem as cinco variedades de bolo – incluindo aquela que sobra sempre porque ninguém gosta de fruta cristalizada… mas é tradição – e ainda o pão e a broa e o vinho e o sumo e as bebidas digestivas.


Pela casa, começam a nascer homens de vermelho. Um deles dependura-se na inexistente chaminé da manjedoura e ameaça cair em cima do burro com o peso obeso do seu corpo de plástico. Lança-se a discussão irada sobre quem vai pôr o menino nas palhinhas e quando. Até que alguém ganha a discussão. E ninguém se fala durante três dias. Oportuno, até, esse silêncio familiar, para que se escutem melhor as canções de Natal que já passam na rádio, criando introspeção sobre temas tão importantes e pertinentes como a pessoa que deitou fora um coração no ano passado ou o facto de um Pai Natal voyeurista estar a vir para a cidade.

 

Há gente que louva a deus. Não falta ouvi-las louvar, na fila das compras. “Oh meu deus” isto; “Oh meu deus”, aquilo. Frase que precede ou é dita a par, frequentemente, com o seu ódio a macerar pelos outros. As pessoas detestam-se. Com toda a paz e amor do mundo, encafuam-se no mesmo espaço para tentarem ocupá-lo, conquistadoras implacáveis da última caixa de bombons ou do “eu sou primeiro” quando cruzam a linha de chegada da sua corrida pelos corredores e atingem a caixa em simultâneo.

 

O vento sopra e dizem que é advento. O vento arrasta as folhas e o advento arrasta a fé. Ambas de rojo pelo chão e muito mal tratadas. Antes que o advento acabe, os católicos terão certamente cedido a pelo menos quatro dos pecados mortais. Mas está tudo bem. É tempo de introspeção. De olhar para dentro. Essa coisa tantas vezes egoísta de ver o eu, sem se ver além de nós.


Algures, na mesma planta, muito menos consciente de si e muito mais consciente dos ventos, o louva-a-deus deixa-se mover na dança da brisa e camufla-se, verde com verde. Pausadamente convivendo com a realidade da vida, sem corridas nem pressas. Observando a Terra que gira e a noite que cai e o dia que nasce. E, como ele, nas minhas passagens junto às lojas sob as luzes de Natal que custam milhões de euros ao país, eu camuflo-me e vou reparando nos músicos desesperados e nos pedintes famintos que estendem a mão, ignorados como se fossem parte da paisagem.

 

O vento sopra e dizem que é advento. Sinto-me como a folha e a fé. Um bocadinho de rojo no chão. O meu Sol renasce no primeiro dia de Inverno. Penso que quero levantar-me cedo para o ver nascer. Sem sacos, sem luzes, sem bagagem e sem discussões.

 

Paro para escutar o violinista de rua durante alguns minutos, debaixo da estrela de luz. Deixo cair uma moeda a seus pés e vejo que ele me sorri, enquanto sigo com o vento.

 

O vento está frio. O advento está mais.


Marina Ferraz



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terça-feira, 24 de novembro de 2020

A pessoa que eu quero ser

 



Uma coisa que nunca compreendi é a razão que leva as pessoas – podendo ser o que quiserem – a decidirem ser cruéis. Penso sempre que algo de muito errado terá certamente acontecido para que os corações ficassem frios, vazios de emoção ou empatia, levando consigo os traços de humanidade e substituindo-os por uma crueza que espelha a rispidez da vida e do mundo.

 

Tenho pena dessas pessoas. As que escolhem ser más. Tenho penas delas. Normalmente não lhes digo. Mas tenho. Tenho pena porque sei que existem eficazes estratégias entre os demónios do tempo, nos caminhos humanos, para azedar as palavras na boca e os gestos nas mãos. E a dor que se inflige ao outro é tantas vezes a nossa. E a ofensa que se diz ao outro é tantas vezes parte da nossa incapacidade de ver algo bom em nós; parte da nossa baixa autoestima.

 

Num momento ou outro, já todos fomos essa pessoa. Essa que - podendo ser o que quiser – decide ser cruel. Nem todos o fizemos de propósito. Alguns terão feito isto por inexperiência. Outros, por necessidade de retaliação. Outros ainda esqueceram, por segundos, que devem perguntar a si mesmos: quem é a pessoa que eu quero ser?

 

Muitas pessoas não sabem isto. Muitas pessoas não pensaram nisto. Na verdade, a maioria das pessoas – presas à noção de “personalidade” – discordará. Mas eu acho que a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. Há um momento, quando a consciência de estarmos vivos se abate sobre os nossos ombros, no qual o nosso papel secundário na determinação do “eu” desaparece, para dar lugar a um espaço onde somos mestres, protagonistas e artesãos da nossa própria conduta e da nossa própria forma de ser. Definimos quem queremos ser. E quem queremos ser importa porque pode mudar tudo, de um segundo para o outro.

 

Claro! A observação ajuda, mas não é tudo! O espírito crítico impera e o raciocínio treina-se. Olhar e pensar sobre o que se vê é tantas vezes o que nos transforma nessa pessoa que querermos ser. Tantas vezes, por olharmos para a crueldade vazia de quem podendo ser o que quiser escolhe mal, decidimos, antes de tudo, o que não queremos ser. E o resto constrói-se, peça a peça, gesto a gesto, palavra a palavra.

 

A pessoa que eu quero ser, por exemplo, é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou. Todos os dias, quando chego a casa, ela recebe-me à porta. Esfrega-se nas minhas pernas, feliz com o meu retorno. Ela não acha que eu a abandonei nem que fica aborrecida pela minha ausência: parece acreditar que todas as minhas saídas são imperativas e que ansiei tanto por voltar a vê-la como ela queria voltar a ver-me.

 

Acreditando que sou dedicada, a minha gata não leva a mal se eu a tiro do colo para pegar no computador e trabalhar. Em vez de mudar de divisão ou simplesmente me dar o habitual desprezo felino, ela deita-se ao meu lado e dorme, enquanto trabalho. Ela também acredita que eu sou afetuosa e meiga. Por isso, na primeira oportunidade, é no meu colo que se enrosca e dorme um pouco mais, com o motor ligado, a ronronar por horas a fio.

 

A minha gata acredita que eu sou generosa. Não encontra em mim traços somíticos. Não acha que sou egoísta. Então, mesmo quando estou a comer algo que ela adora – como frango, melão ou fiambre – ela limita-se a sentar e a esperar com uma calma nada típica de bicho que eu termine e lhe dê a sua parte.

 

À noite, quando se põe debaixo das roupas, encostada a mim, ela acredita que eu sou altruísta e que a cama foi especialmente feita a pensar nas duas. Nestes momentos, ela mostra-me que acha que eu sou humana e frágil e ensina-me que não existe nada de errado na fragilidade, encostando-se à minha barriga e aceitando os soluços do choro como se fossem naturais, enquanto se aninha mais e mais, confortando-me.

 

Não existe lugar para onde ela não me siga, esperando sempre o melhor de mim. E eu gosto dessa pessoa que ela acha que eu sou. Então, mesmo quando não estou com ela, é isso que eu tento ser. Presente e altruísta, meiga e humana, uma pessoa que retribui, que dá, que pensa nos outros e aceita os seus gestos de afago.

 

Se o sou todos os dias e em todos os momentos? É claro que não! Falhar faz parte de se ser humano. Mas a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. E tento carregar sempre comigo a pergunta. Quem é essa pessoa? Essa que eu quero ser? Faço a pergunta nas inspirações e tento expirar a resposta.

 

A pessoa que eu quero ser é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou.


Marina Ferraz



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