terça-feira, 7 de agosto de 2012

Já chega, princesa



Já chega, princesa. Deixa os sapatos na escada mesmo e não fiques à espera que tos levem à porta, com um anel de noivado. Despe esse vestido que te prende os movimentos e não te deixa respirar. Solta os cabelos. Vai correr. Fugir da suposta perfeição do teu rosto pálido e da luz inigualável dos fios dourados que te adornam a face, onde os olhos azuis como safiras refletem o céu e os lábios escarlates têm a pureza das pétalas de rosa. Tens de fugir. Fugir do que te fizeram os teus antepassados e do que te fazem os teus companheiros de viagem, neste tempo sem finais felizes.
Precisas de entender: dentro de ti há mais do que cabelos louros ou olhos azuis. Tu sabes. Tu pensas. Tu acreditas. E é maravilhoso. Porque tu podes ser quem tu quiseres, sem seguir as normas que te impõem.
Há mundos além do teu mundo e amores além do teu amor. Não queiras vergar-te aos pés de ninguém. De costas direitas e de rosto erguido. De braços cruzados sobre o peito. De sobrolho franzido. Pedindo explicações. Podes fazê-lo. Não sejas somente o reflexo das amarras invisíveis desse reino sem magia. Sê quem tu quiseres. A menina pacata ou a aventureira sem medos. A esposa calada ou a mulher rebelde. Ninguém pode ditar quem deves ser. Por isso sê-lo. Sê quem tu quiseres.
Mas, primeiro, larga essa rigidez. Solta o corpete. Liberta-te da obediência cega. Foge e olha em redor. Vê o que não te deixaram ver. Entende que te cegaram. Compreende! Ninguém vai viver a tua vida. Ninguém pode exigir que vivas um destino predefinido.
Já chega, princesa. Chega de ensinares às crianças que o amor é a meta e o casamento a recompensa. Chega de sorrisos em vestidos brancos e de bebés com cheiro a caramelo, em roupinhas azuis e cor-de-rosa. Diz-lhes a verdade. A verdade sobre como o amor tem altos e baixos, sobre como o casamento é um contrato num papel que não define sentimentos, sobre como perdes noites em claro sem dormir para cuidar dessas crianças. Diz-lhes que, por vezes, desejavas ter tido melhor sorte, a sorte de te bastares.
Já chega, princesa. Chega de destinos pré-feitos, de roupas que te prendem e te limitam, de meias palavras, ditas com doçura. Cria o teu destino. Segue o teu caminho. Entende: não há nada de mal com o amor, ou o casamento ou a maternidade. Mas, se for esse o caminho, que o seja porque o queres e não porque o achas mais certo.
Já chega, princesa. Já chega de seres chamada de princesa. Segue o teu caminho e sê mulher!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 31 de julho de 2012

O teu nome



O oceano ecoa o teu nome. Pedi o silêncio, para poder dormir esta noite. Mas ele ecoa o teu nome na rebentação das ondas. Chama por ti. Acorda-me os sentidos.
Não lhe bastou o que nos fez. Não lhe bastou atirar-me para os teus braços e colar os meus lábios aos teus, destruindo tudo o que eu levara tanto tempo a construir. Não lhe bastou condenar-me outra vez, com esse encanto devoto de um amor sem retorno. Ele ecoa o teu nome em cada onda que rebenta na areia húmida da praia.
Dou por mim a culpar o mar. Quem mais teria culpa da minha infelicidade? Quem mais poderia ter enfeitiçado a minha alma? E surge o som da calúnia nos meus lábios pagãos, que amam a água. Como pode o meu mar ter-me traído?
O oceano ecoa o teu nome na noite. E o seu som chega até mim tal como música. Cada acorde com a naturalidade corrente de um sem fim de saudosas ilusões. Durmo, sim. De lágrimas nos olhos e desespero no peito. Com o teu nome nos ouvidos e no coração.
E, a cada onda, sinto no meu peito o desapego da realidade e o desejo cada vez mais forte de me afogar no mar salgado das minhas lágrimas. Ouço o mar chamar por ti. E sei que é ilusão. Ainda assim, quero viver de ilusões ou não viver de todo.
O oceano ecoa o teu nome. E sou eu que lhe respondo, tentando fazê-lo entender que não podes ouvi-lo, da mesma forma que não podes ouvir os gritos desesperados da minha alma. E o mar chora comigo. Lágrimas de sal. Lágrimas de saudade. E eu tento consolá-lo com palavras vãs.
O oceano chama por ti. Ecoa o teu nome por entre o negrume da noite. Dormir e sonhar. Afogar-me nesse mar e morrer com o teu nome nos lábios que sorriem. O oceano ecoa o teu nome e não o ouves. Mas eu ouço-o e invento palavras para que ele te perdoe. E, de alguma maneira, embora chame desesperadamente por ti, o mar perdoa-te todas as noites, exactamente como a minha alma aprendeu a perdoar-te todos os dias, sem sequer entender porquê...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 24 de julho de 2012

Gaveta de sonhos



Não. Não é pelas coisas que eu quero. Não acalentas as minhas esperanças e não constróis os meus sonhos. Na verdade, por vezes, és o primeiro a destruir tudo aquilo que eu teria desejado para mim. Mas está tudo bem. Nunca fui tão feliz.
Aprendi a ser feliz contigo. Com os teus olhos tristes, atirados para trás da máscara eterna do riso e da alegria. Aprendi a ser feliz com o teu toque dançado, que fazia valsas pela minha pele e me tartamudeava melodias mudas aos ouvidos. Aprendi a amar no desapego do inevitável.
Não foi nem nunca há-de ser pelas coisas que eu quero. Eu quero o que fica além do horizonte. Quero ter a altura das estrelas, a profundidade dos oceanos, a luz do sol. Não podes. Ninguém poderia, ainda que tentasse, dar-me tudo aquilo que eu quero. Eu quero depender de mim. Eu quero a liberdade. Eu quero a independência da fuga e a constância de não haver rotina.
Paris. Cairo. Edimburgo. Londres. Toulouse. Salem. Minas Gerais. Eu quero conhecer o Mundo. Quero conhecer as pessoas do Mundo. Quero escrever. Quero ter asas nas mãos fechadas ao redor de uma caneta. Quero conhecer a imensidão de um amor maior do que o tempo. Quero ver tudo. Sentir tudo. Saber tudo. Por isso não... não é pelas coisas que eu quero. É pelo nada...
O nada é assim: feito de tudo o que eu nunca quis. Feito de coisas pelas quais não teria dado um passo. Criado no negrume de coisas que podiam ser-me indiferentes ou das quais, simplesmente, teria dito não gostar. E tu acalentas esse nada. Contigo, não preciso de conhecer o Mundo. Contigo, não preciso de conhecer as pessoas do Mundo. Contigo, não preciso de fazer da caneta a minha amiga de todas as horas nem de desejar viver um romance de cinema. Contigo, o sonho sonhado morre. Contigo, a vida começa a virar um sonho.
Não. Não é pelas coisas que quero. Qualquer um podia entrar na gaveta dos meus sonhos de criança e brindar-me com mil promessas de perfeição. Mas tu entendes a simplicidade dos espaços brancos da gaveta. E ensinas-me a ver, nesses espaços, as pessoas e os mundos que ficam perto de mim. E, quando me apercebo, não quero ser livre. Quero ser prisioneira dos teus braços, depender de ti, precisar da tua protecção. Quando me apercebo, quero a rotina. Uma rotina de dias que comecem nos teus braços e acabem nos teus braços, venha o que vier pelo meio.
Não. Não é pelas coisas que eu quero. É porque és o único que me faz querer coisas que eu não sabia que queria. É porque és o único que me faz desejar ficar em vez de fugir. É porque me mostras que o sonho e a realidade se podem unir num momento maravilhoso chamado vida.
Por isso, entende, és tu. Não pelas coisas que sonhei ou quis. Não porque ache que possas dar-mas ou que mas queiras dar. É simplesmente porque, olhando para um futuro onde tu estejas, acordo do meu sonho e nunca fui tão feliz.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de julho de 2012

Medo



Se me perguntarem qual o meu maior medo não saberei dizer. A vida não me criou na coragem e o mundo não me aclamou heroína. Sou humana. Sabem os Deuses quantos medos me correm nas veias. Mas, se me perguntarem do que mais tenho medo, não saberei dizer.
Acho que tenho medo de ter medo. Medo de não saber enfrentar de cabeça erguida o que quer que venha. Tenho medo do silêncio e do esquecimento. Tenho medo que a vida me ponha à prova nos vales da solidão e eu não saiba bastar-me.
Às vezes é assim. Não importa se o mundo nos puxa e nos mói. Não sabemos. E é nessa inconsciência que a loucura ganha raízes, nos perfura a alma e nos corrói os sonhos até não sermos mais do despojos de tudo o que poderíamos ter sido. E, por isso, também tenho medo de não saber...
Não deixar nenhuma rua por trilhar, nenhuma pedra da calçada sem pegadas, nenhum vinho sem prova, nenhum sonho por realizar, nenhum amor por viver. Queremos tanto. Somos tão plenos de desejos. O medo é natural. É-nos inato como uma respiração. Todos nós temos medo de acordar um dia no Outono dos tempos para descobrir que deitámos fora as oportunidades do mundo. A plenitude está nisso mesmo: no desejo e na falha e em todas as coisas que ficam de permeio.
Não sei do que mais tenho medo. Posso enumerar os meus amores na singularidade e contar os amigos pelos dedos das mãos. Mas não posso dizer que medos me assombram sem despertar outros fantasmas, de temores que foram e de temores que estão por devir.
Venha o que vier... tenho medo. Tenho medo mas sou forte. E, quando o medo me assombrar, sei que hei-de arranjar maneira de sobreviver.
Mas sobreviver é pouco. Não é? Acordar de manhã e rastejar até à morte. Sobreviver é não viver de todo. E também tenho medo disso. Medo de sobreviver a uma vida sem vida. Medo de acordar de manhã a esperar a noite e de acordar um dia a desejar que a morte me tome nos braços.
Não sei do que tenho mais medo. Mas não preciso de saber. O medo é apenas uma barreira em nós. Há-de estar sempre presente. Mas vale a pena construir degraus de sonhos e superar as barreiras. Vale a pena desistir da sobrevivência fria e procurar um pouco de fogo em nós.
Não é o medo que nos define. Não é o medo que nos move. A maior expressão da coragem está em erguer a cabeça e admitir que tememos tudo mas que, mesmo assim, não desistimos de nada.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 10 de julho de 2012

Nada nem ninguém



Com as mãos coladas ao teu rosto e os olhos perdidos nos teus. O meu coração grita e eu sussurro. "Nada nem ninguém, acredita em mim, nada nem ninguém". E tu ouves, sorris... mas não acreditas. Os teus olhos brilham das lágrimas contidas e o rosto pálido ruboriza. "Nada nem ninguém", repito.
Tu e eu. Nascemos das improbabilidades, tu e eu. Filhos de céus e amantes do mar. Fomos criados para sermos tudo menos um do outro. E, no entanto, as minhas mãos têm o tamanho certo para segurar as tuas. Os meus lábios o formato certo para encaixarem nos teus. Contra tudo e todos, encontrámo-nos.
E, de mãos fechadas ao redor do teu rosto, tento que compreendas. "Nada nem ninguém!" Mas tu tens medo que eu esteja errada. Tens medo que eles ganhem essa batalha sem sentido. E semeias o medo no meu peito. Não quero perder-te.
Eu ouço as vozes. Elas dizem que não posso estar contigo. Elas dizem que pertences a outras gentes, a outros mundos que não o meu. Mas o meu coração fala mais alto e a sua voz é mais pura. Tão pura que me sai por entre os lábios e te promete que nada nem ninguém nos pode roubar um do outro.
Por momentos, queria ser poeta. As palavras fogem no vento e restam as minhas mãos cheias de ti e os meus lábios cheios de promessas mudas. Demorei a encontrar-te nos espinhos da vida. Não podem roubar-te de mim. Quero dizer que te amo. Quero dizer que a lua é nossa guardiã e que, de alguma forma, tudo ficará bem. Mas as palavras fogem-me e eles continuam a falar. E tu ouves o que eles dizem. Acreditas. Quem me dera que acreditasses antes em mim.
O nosso amor é a expressão concreta da felicidade. Mas eles invejam-nos e atacam-nos. Não nos compreendem. E nós somos fortes juntos mas eles são mais do que nós e não dormem, não comem, não sonham. Por favor... sonha tu, comigo!
"Nada nem ninguém, nunca!". As palavras, repetidas até à exaustão perdem a força nos teus olhos descrentes. Então, os meus lábios perdem a força de falar e encostam-se aos teus, com ternura. Um beijo quente e leve, cheio de tudo o que as palavras não dizem.
E afastas-me. O teu olhar brilha levemente, enquanto me passas a mão pelos cabelos revoltos. "Nada nem ninguém", repetes. E, de súbito, descubro que é verdade. Descubro que tu sabes que é verdade. E, nesse segundo, não há nada mais certo: podemos lutar contra tudo e nada nem ninguém nos vai destruir. Eles podem ter todas as palavras do universo mas, tu e eu...  bem, nós temos o verbo amar.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 3 de julho de 2012

De olhos fechados



Quando fecho os olhos, eu vejo o mar. O horizonte. Os vales encantados da memória, onde floresce a ilusão de um amanhã mais puro. Quando fecho os olhos, eu ouço a voz das árvores. Vejo o sorriso das flores. Respiro melhor.
Quando fecho os olhos, eu vejo mais do que o mundo permite. Voo por céus de eternidade. Atiro-me de falésias de esperança. Corro sobre as nuvens mais altas.
Quando fecho os olhos, enrosco-me no teu abraço quente. Sinto o teu cheiro. O teu sabor. A tua insanidade e a tua força. Quando fecho os olhos, sou tua. Tu és meu. Juntos somos donos do para sempre e filhos de uma Natureza divina.
Abrir os olhos é morrer. Morrer no horizonte cinzento de uma estrada de alcatrão. Morrer na cidade pardacenta. Morrer na voz de quem não entende porque roubaram a voz de quem sabe melhor. Abrir os olhos é estar sozinha. É estares longe. É não sermos nada nem de ninguém.
Vou fechar os olhos. Correr por esse prado verde, onde as flores silvestres começam a nascer sob as gotas do orvalho da manhã. Vou seguir o rio. Vou dar-me a beber à poesia.
Vou abrir as asas. As minhas asas de veludo negro. As minhas asas de imensidão. Vou voar no céu azul-escuro do fim da tarde. Vou passear sobre o arco-íris.
Quando fecho os olhos sou a pessoa mais simples de todas. Ando descalça sobre a relva e sob a chuva. Rodopio loucamente no desapego do óbvio. Rio às gargalhadas, até a barriga doer e os olhos lacrimejarem. Sou tão feliz, quando fecho os olhos.
Então, não tenho medo da morte. Gosto da vida que tenho no fechar dos olhos. Quando me canso do mundo. Quando me canso de esperar que o mundo se torne outra coisa ou que seja melhor. E morrer é fechar os olhos de vez.
Quando fecho os olhos, eu vejo a vida que não tive. A vida que nunca vou ter. Não é o tempo nem o local para se ser um servo da Natureza. Para se ser um filho do divino. Para se ter uma fé inabalável no amor. Nasci no sitio errado para ter os olhos abertos. Nasci no tempo errado para admitir o que encontro quando os fecho.
E quem me entende? Quem pode entender que falo com plantas e espero amores perdidos? Quem pode entender que me ria das certezas dos que se afogam em teorias comprovadas? Quem pode entender que eu acredite no invisível, no indizível, no inadmissível e não consiga ter fé na ciência?
Quando fecho os olhos, entro num mundo de magia. Pode não ser real. Mas é real para mim e isso basta. Chegará o dia de fechar os olhos de vez. Nesse dia riam comigo. Nesse dia festejem. É de olhos fechados que sei ser feliz. Foi de olhos fechados que aprendi que a cegueira é uma doença para quem acredita que ter os olhos abertos é o mesmo que não acreditar em nada. Foi de olhos fechados que aprendi a ver...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 26 de junho de 2012

O sentir das folhas brancas




Eu escrevo para pessoas de coração partido. Não porque tenha o meu coração destroçado mas porque sei como dói ter um coração quebrado e não sentir que alguém entenda.
Escrever é mesmo assim. É escolher viver de sentimentos, sejam eles quais forem. É oferecer a alma ao povo. É estropiar sentidos e espetar punhais de passado, vez após vez, no centro da ferida sarada.
E é verdade. Às vezes as palavras magoam. É uma escolha. É uma decisão que tomei cedo e por mim mesma. E, entre dias melhores e dias piores, é nessa decisão que encontro a força porque não acredito num mundo sem poesia.
Vou alimentar-me da minha dor. Vou alimentar-me dela enquanto não puder alimentar-me da minha felicidade, de uma forma tão pura e constante. É assim que sobrevive a escrita. Foi assim que se inventou a poesia. Foi assim que o mundo aprendeu a girar sobre si mesmo.
Vou alimentar-me da noite enquanto não houver dia e da escuridão enquanto não houver luz. Vou venerar a Lua e o Sol. Vou fazer vénias às estrelas e chamar a Natureza para me abraçar os medos. Vou alimentar-me dos medos, também. Vou retirar deles a força enquanto não houver paz. Vou viver uma morte sem vida neste caminho sem regra tomado pelo meu coração.
Nem todos podemos viver nos campos da vitória. Nem todos podemos procurar apenas o melhor da nossa alma. Escrever é aceitar o que existe. Viver a dor e a saudade. Viver a ternura e o carinho. Viver a mágoa e a desolação. Viver a alegria e o contentamento. Escrever é aceitar cada sentimento como igual e beber dele cada palavra.
Então, durante muito tempo, talvez até para sempre, vou alimentar-me da minha dor e da minha felicidade ou do meu sentimento, seja ele qual for. Por vezes, vão elogiar-me. Outras, vão criticar-me. Por vezes, vão atirar-me pedras e palavras duras. Mas está tudo bem. Porque, no fim, resta a consciência límpida, a decência e a paz de saber que não preciso de me alimentar da dor dos outros.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet 

terça-feira, 19 de junho de 2012

Filha da Noite



Também sou filha da noite. Sombra de estrelas e irmã dos ventos. Serva das marés e cortesã das horas. Vivo no cativeiro da Terra, humildemente acorrentada às maravilhas do mundo e às vontades insaciáveis do meu coração.
Ouve  e vê com cuidado. Ouve mesmo esse silêncio que julgas despojado de tudo. Vê mesmo esse espaço desfeito onde nada se ergue e nada se assume. O vazio é apenas feito de imaginação mortal. Vivemos rodeados de tanto quanto nos cabe nos sonhos. Somos apenas cegos e surdos. Incapacitados pelos olhos cheios de ciência e as mãos fechadas em redor de teorias.
Também sou filha das trevas. E são as trevas que trago no meu olhar despido de luz. Mas, não duvides: ainda amo o sol. Amo-o como se ama alguém  muito querido que sabemos que não podemos ter. Na certeza insensata de que estaremos sempre no outro extremo da vida. Na saudade que vem da consciência de que toda a luz tem sombra.
Não tenhas medo! Faço parte da escuridão e corro com os ventos, atiço as marés e transformo segundos em anos que não passam, que congelam e permanecem. Mas estou aqui e também sou menina. Também sou criança. Também sou tua... E morreria para que não tivesses medo de nada. Morreria para que fosses feliz.
Sim. É verdade. Eu sou o que fica sombrio atrás do brilho de uma estrela. Sou o que fica invisível depois da onda ter rebentado na praia. Sou o que desvanecesse no ar quando a brisa sopra, no último rasgo de sol. Sou o que fica esquecido por entre memórias que se esbatem e o rosto que se perde na multidão que percorre as ruas.
Também sou filha da noite e irmã dos ventos e serva das marés. Mas, na maioria dos dias, sou apenas uma rapariga. Uma rapariga quebrada e indolente, apaixonada por uma luz que se afasta um pouco mais a cada segundo. E o Inverno brota-me no peito, acorrenta-me ao gelo dos sentidos e torna-me escrava do meu amor.
Sou filha da noite mas não lhe pertenço. Não sou dela e não sou minha. Vivo cativa, escravizada, de rojo aos pés do amor. Pertenço ao meu coração. Pertenço ao sentir insensato que me corre nas veias. E estou só... porque nenhum vento e nenhuma maré assume o negrume da dor que trago no peito. O negrume que vence a noite e as trevas... e onde não há luz nem sombra... mas apenas solidão.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 12 de junho de 2012

Impossíveis



Ela fez o impossível. Acordou. Acordou na madrugada pardacenta de uma noite que ainda não vira o fim. Chamou a alma e a dor. Disse-lhes "bom dia" com desapego. Desceu as escadas, bebeu um café forte e outro mais forte a seguir. E abriu os olhos à vida, num espreguiçar guloso de quem deseja mais uns minutos de cama.
Ela fez o impossível. Agarrou nas folhas rabiscadas da sebenta. Atirou os livros gastos do uso para dentro da mala. Foi para o canto mais longínquo da casa trabalhar. Pousou os olhos nas coisas, levou a mão à caneta e simplesmente fingiu que o mundo acabava ali. Que começava nas frases mais simples e se estendia às definições mais difíceis de encaixar na mente.
Ela fez o impossível. Passou as mãos nos cabelos, confusa, e prendeu-os, aproveitando cada movimento para libertar os músculos tensos das muitas noites de insónia. Respirou fundo. Ouviu o silêncio e cansou-se dele com a facilidade óbvia de quem tem muito para fazer.
Ela fez o impossível. Comeu à mesa. Falou de trivialidades. Fingiu que se importava com o estado do tempo ou do país. Fingiu que queria saber qual o estado do seu signo para aquele dia. Riu de uma piada que não tinha piada alguma.
Ela fez o impossível. Trabalhou a tarde toda e noite fora. Enquanto as estrelas caíam e a lua descia no horizonte alado de um mar que ficava à distância do esquecimento. Ignorou o mundo. Ignorou a rua, onde ocasionalmente passava gente, falando alto ou uma ambulância com o tom de aviso.
Ela fez o impossível. Fechou os livros e subiu as escadas e caiu na cama. Fechou os olhos, despediu-se da dor e da alma, com um "boa noite" ternurento. Sabia melhor do que ninguém que diria "bom dia" alguns minutos depois.
Ela fez o impossível. Muitas vezes. Por tempo demais. Mas era insuportável continuar. Então ela esboçou um sorriso de lágrimas nos olhos e pensou nele, enquanto a solidão pesava e a saudade lhe acarinhava o rosto que humedecia. Pensou nele e nos motivos que tinham feito da sua vida um quase-nada que todos invejavam. Pensou nele e deixou escapar, no tom de uma oração, um "amo-te" gaguejado e entrecortado no choro.
A insónia chegou, por fim. Lavou-lhe o cansaço com as lágrimas e não a deixou dormir até chegar a alvorada. Então, ela fez o impossível: acordou de um sono por dormir na madrugada pardacenta de uma noite que ainda não vira o fim. E começou mais uma jornada de impossibilidades. Lutando contra os pensamentos e contra o tempo e contra a vida.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


terça-feira, 5 de junho de 2012

Ficar bem



Não! Não te preocupes! Eu vou ficar bem. O mundo vai ruir e o chão que me apoia os pés vai ceder. Os céus vão quebrar e as florestas de sonho vão ficar secas. Os sonhos vão deixar-me sozinha por uns tempos. Mas eu vou ficar bem. Não precisas de te preocupar...
As coisas más acontecem. Nascem das frestinhas de incerteza que sempre existem nas madeiras sólidas nas quais se constroem as esperanças. E crescem com o tempo, como se ansiassem por se tornar pequenas maldições do quotidiano. Elas acontecem a toda a gente. Mesmo às melhores pessoas. Mesmo às piores. Ninguém está livre da dor. Ninguém está livre dos contratempos. Sofrer é o único direito verdadeiramente universal.
Mas eu vou ficar bem! Vou ficar bem porque quando não houver chão, vai haver asas. Porque as asas são feitas de amor. E tudo é mais fraco do que o amor: mesmo o céu, mesmo o mundo, mesmo os sonhos. Então, eu vou ficar bem! Porque amo o suficiente e tenho as asas negras abertas.
O mundo vai ruir. Eu vou chorar. Eu vou gritar. Eu vou cair um pouco antes de me lembrar que o chão cedeu mas o céu existe. E, eventualmente, eu vou superar. Porque nenhuma destruição é mais forte do que a vontade de construir novamente. Porque nenhum mal é mais forte do que a minha alma. Porque os chãos ressurgem e os sonhos regressam. Porque amo e o amor nunca é ruína. Porque eu quero ser feliz!
Então, não te preocupes. Vai ficar tudo bem. Mesmo que, pelo caminho, eu sofra muito. Mesmo que, até encontrar a felicidade, eu tenha de abraçar a dor como minha igual e recebê-la no meu peito, com ternura. Quando tudo acabar, eu vou ficar bem. E, mesmo se esse dia tardar, eu não vou perder a esperança. Hei-de ser feliz, nem que o seja somente quando, num último suspiro, a morte me tomar nos braços e me fechar os olhos para o mundo que ruiu e as esperanças vãs que me marcaram a vida.
Não te preocupes. Eu vou ficar bem...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet