terça-feira, 12 de março de 2013

O último capítulo



"Quero tornar-me igual aos homens que não acreditam em encantos e que não escrevem versos. Vou queimar todos os meus livros..."
Sophia de Mello Breyner in "A fada Oriana"



Um dia, a inspiração não veio para me encantar as noites. Abandonou em mim a poetisa. Libertou-me da amargura das palavras. A sua ausência ecoou em folhas brancas. E as corujas cantaram, noite fora, uma balada de decepção.
Um dia, a inspiração não veio construir castelos nas nuvens do meu pensamento. E o luar ondeou nas águas bravas do oceano distante, à medida que eu pousava a caneta e a vontade de viver.
Um dia, a inspiração deixou-me sozinha com as paredes nuas da casa. Na solidão inquebrável de uma eternidade vazia. E eu olhei, desesperada, para as folhas escritas de outrora. Pudessem elas ser novas companhias ou eternas companheiras de viagem.
No dia em que a inspiração não veio, falei sozinha, com os meus botões. E aguardei respostas às perguntas, como se os objectos do quarto pudessem animar-se e falar comigo sobre as maravilhas do mundo. Mas a única resposta foi o silêncio. Um silêncio sem amores nem magia. Um silêncio claro e inquebrável, de sabor azedo e aroma pestilento. O silêncio magoou-me no dia em que a inspiração não veio.
Dizem pelas ruas que os poetas são loucos. Loucos disfarçados de videntes cegos, que conhecessem as profundezas de cada ser humano. Loucos disfarçados de artistas que pintam com rimas as auroras mais belas da existência do mundo. No dia em que a inspiração não veio, eu não fui poeta mas apenas loucura. E, imersa nas lagoas da insanidade, dei por mim a rasgar as folhas velhas, como se quisesse soltar as palavras, tomá-las em mim, possuí-las outra vez.
Um dia a inspiração não veio. E eu pensei, entre paredes nuas e objectos inanimados que podia agora viver uma vida. Uma vida sem a maldição de saber dizer exactamente o que está errado dentro da minha alma e dos corações alheios. Pensei, na loucura de um riso desvairado, que talvez pudesse viver o que escrevia, conhecer os sentimentos descritos, as pessoas inventadas nos meus mil romances. Então, no dia em que a inspiração não veio, pousei a caneta e fechei os olhos, num suspiro alegre. O suspiro que acabaria por ser o último dos meus suspiros. Porque, um dia, a inspiração não veio e, ao pousar a caneta, eu suspirei e morri.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

6 comentários:

  1. Bolas... deixaste-me um nó na garganta. É lindo de morrer! No dia em que a inspiração não veio, o poeta está morto. E essa frase pode significar tanto.....
    Beijinhos e parabéns mais uma vez pelas palavras que articulas em Frases de uma Vida!

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  2. Está para vir o dia que um texto teu não me toque profundamente...Maravilhoso...
    Teresa Carvalho

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  3. Tânia13:29

    Acho que qualquer escritor se identifica e já passou por isto. Se realmente é verdade que não andas inspirada, espero que passe depressa, para podermos ter cada vez mais e melhores textos teus. ;)

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  4. Jennyfer Aguillar17:35

    O texto é incrível,como todos que fazes,me identifiquei e este texto tocou-me de uma maneira especial.
    Parabéns querida amiga :D
    Beijinhos Jenny ♥

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  5. CLAUDETE18:31

    INCRIVEL MAGNIFICO MAS FEZ ME LEMBRAR O MESMO TALVEZ PARECIDO ACONTECEU COMIGO RASGUEI PUS FOGO EM VARIOS ESBOÇOS PLANILIHAS CADERNOS JA AMARELADOS PELO TEMPO.... MAS B NAQUELE MOMENTO NASCEU NOVA FAZE EM MINHA VIDA QUE SERIA A ETERNA... AGREDITO QUE AGORA ESTAS SAINDO DO SONHO PARA A REAL PARABENS TEUS ESCRITOS TEUS TEXTOS SAO INCRIVEIS E ES O POETA DA SAUDADE HOJE MESMO COMECEI A ESCREVER UM TEXTO

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  6. Mirian Cris*15:37

    Mto lindo.
    gostei!
    Estas de parabéns!

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