terça-feira, 29 de maio de 2018

Deixa rolar



Eu disse-lhe o que sentia. Este desespero de água que criava pressão no meu peito. A forma como parecia que mil punhais me afligiam, sempre pelas costas, tentando fazer buracos no centro das asas negras. O modo como continuava a tropeçar nos meus próprios pés. E como queria, sem conseguir, o tanto que desejo dar um passo. Atrás.

E ela olhou nos meus olhos. E disse. Deixa rolar.

Contei-lhe que me alicias para o abismo das memórias. Mesmo sem fazeres coisa alguma. E que, olhando para ti, encontro o som mudo da moeda de ouro que lancei ao lago na minha infância. Falei da mutilação. Essa que faço ao coração, cortando pedaços a sangue frio, avançando cegamente, tentando arrancar aquele pedaço que te abriga. E como corto sempre ao lado da fluidez do teu ser, que continua a contornar os limites agudos da lâmina e permanecem intactos no meu coração flagelado.

E ela olhou nos meus olhos. E disse. Deixa rolar.

Tentei explicar. A minha alma tem cores e espaços de vazio, que encaixam nos teus. Como se a tua existência fizesse da minha algo que mereça ser. E a minha passagem pelo mundo fosse melhor nos buraquinhos das tuas pegadas. E disse que aprendi a ser feliz com pouco. E que não fui feliz quando tinha tudo. Porque ser feliz era uma aprendizagem que me tinha tardado. Disse-lho assim: descobri que ser feliz era uma escolha quando já não tinha motivos para ser feliz e, quando os tinha, desdenhei na felicidade, com as mãos cheias de ouro e sem notar. E agora? O que faço agora com a felicidade, se ao escolhê-la de manhã sorrio às paredes e danço com o ar e a poeira?

E ela olhou nos meus olhos. E disse. Deixa rolar.

As palavras criavam abismos entre nós. E ela foi. Fiquei eu, com a felicidade escolhida no vazio. E a dor no peito que sorri. Ouvi-lhe o conselho. Deixei rolar.

E rolou. Rolaram. Lágrimas pelo meu rosto. E só.




*Imagem de Yuki Yuri




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