quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Dias


Persistência da Memória - Salvador Dali

Às vezes não há nada certo a dizer. As palavras ficam vazias de sentido. Dizem demais. Não dizem o suficiente. Não expressam o grito crescente ou o riso sonante que nos ecoa no peito.
A alegria e a tristeza. A bipolaridade de vivências terrenas que se entrecruzam em mil momentos, em mil presenças, em mil ausências, em mil sentidos.
Haverá sempre dias em que temos muito para dizer. E haverá tanto por ser dito no final desses dias. Tanto que as palavras não suportam na sua enorme e infinita pequenez.
Porque as palavras - por mais que as ame - serão sempre esse gigante mal tratado que se ergue e se aumenta e se anula. As palavras serão sempre essa magia pura e intocável.
Há dias em que temos tanto para dizer que nenhuma palavra basta. E, depois, há dias que falam por si, simplesmente porque não há palavras suficientes para exprimir o que temos para dizer... porque é impossível dizermos tudo aquilo que sentimos.



Marina Ferraz

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sobre a Vida


A vida é assim: feita de encontros e desencontros. Feita de eternidades efémeras e de efemeridades eternas. Feita de sorrisos e lágrimas e de lágrimas misturadas em risos de fazer doer a barriga.
A vida é assim: simples e difícil. Longa como a alma e curta como a existência. Feita de momentos irrepetíveis e do desejo intenso de repetir momentos que nem existiram ainda.
A vida é assim: de todas as cores e de todas as formas. Feita de medos, de muitos medos, e de ainda mais motivos para vencer o medo e seguir em frente. Feita de todas as estrelas do Universo num olhar e de um olhar maior do que o Universo.
A vida é assim: o nosso maior pesadelo e o nosso sonho mais lindo. A dualidade de tudo o que é bom e de tudo o que é mau, misturado na certeza de que, um dia, tudo vai fazer sentido e tudo vai estar bem. A vida é feita de dias que passam, de dias que chegam, de dias que ficam marcados na memória para sempre. É feita de lembranças agridoces e de cicatrizes brancas e saradas que, apesar de tudo, são ainda visíveis, como um rastro de luar no oceano.
A vida é assim: feita de lutas. Lutas que ganhamos. Lutas que perdemos. Lutas que não travamos por medo de falhar. Lutas que travamos apesar dos medos. E é feita de falhas, de erros, de decepções. É feita das consequências dos nossos actos. É feita do mais fino pó de ouro dos nossos gestos.
E, no fim, as lutas que perdemos e os erros cometidos podem ser as nossas memórias doces de sorrisos. E as nossas vitórias podem ser esquecidas, apagadas, postas de lado.
A vida é isso! Essa constante inconstância de nunca sabermos o que a vida é. Essa certeza incerta de querermos definir o indefinível. De querermos definir a vida.
Eu não sei o que é a vida ou como ela é. Não sei se, olhando para trás, vou dar valor ao melhor, se vou me arrepender de alguma coisa. Eu sei simplesmente o seguinte: nas batidas do meu coração escrevi uma música sobre a vida. Sobre os dias que me marcaram a vida. Sobre as pessoas que amo. Sobre as pessoas que me feriram. Sobre as portas que abri e as que se fecharam mesmo à minha frente. Sobre as respirações aceleradas e o perder de fôlego. Sobre tudo o que eu trabalhei em mim e no Mundo. E é isso que eu sou: esse trabalho vivido que fiz da vida. Essas cicatrizes brancas que venero. Essas lutas perdidas onde aprendi. Essas pessoas que me marcaram. Esses sonhos que segui, mesmo quando o medo me gritava aos ouvidos. É isso que eu sou: esses erros, tantos, dos quais não me consigo arrepender. Essas histórias tristes das quais retiro todos os sorrisos que esboço. Cresci e vivi na vida. E a vida é a vida. Assim ou de outra forma. E, quando morrer, é isso que eu quero ter sido: alguém que errou, alguém que perdeu, alguém que teve milhões de medos... alguém que viveu como se a vida fosse eternamente o melhor e o pior da eternidade de alguns momentos que realmente valeram a pena.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

8, 7, 5...


À Noa
Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. A simplicidade de números que podemos contar pelos dedos. A simplicidade de termos um corpo que responde aos números como se eles esquematizassem a vida. Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. Uma simplicidade assente nas dificuldades do mundo. Uma simplicidade que exige esforço e dedicação, que exige privações e treino. Uma simplicidade que não tem nada de simples.
Não são os movimentos marcados que te fazem dançar. Não são as sabrinas de meia-ponta que fazem com que o equilíbrio do teu movimento atraia a atenção de mil olhares. Não são as sete notas musicais que ditam a forma elegante como cada movimento flui. Não são os oito tempos que definem a graciosidade das tuas expressões.
Não te defino numa medida que possa ser contada pelos dedos. Nem em medida nenhuma onde os números te somem a beleza e a graciosidade e a inteligência e os sorrisos. Não uso números para te definir. Não preciso de números para saber que a tua dança é perfeita e maravilhosa. Tanto como tu és.
Não é numerável a forma como pões cada pedacinho de ti em tudo o que fazes. Em cada gesto, em cada movimento. Os teus passos são tão hipnóticos que parece que flutuas sobre o soalho de madeira e nunca o pisas. A forma como ergues os braços lembra um abraço recebido pelo universo.
Não importa se são oito tempos e sete notas musicais em cinco posições de pés. Não importa se a contagem é eternamente instruída pelos que vivem nesse meio. Para mim tu tens todos os tempos e todas as notas e todas as posições. Para mim elas são milhares. Para mim, a tua dança é feita de todos os pormenores que existem. E eles são mais do que oito, sete ou cinco, eles são mais do que as estrelas que há no céu.
A perfeição não tem números. A perfeição não tem movimentos mecânicos. A perfeição é feita de amor. E tu danças assim, nesses rodopios e gestos perfeitos, porque amas dançar. E, quando amas algo assim, essa coisa deixa de fazer parte de um mundo onde estás e passa a ser parte do que és. Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. Mas incontáveis momentos, incontáveis sorrisos, incontáveis palavras de orgulho por entre a tua inexplicável perfeição.
Para mim, meu amor, quando respiras, ainda que estejas sossegada e a dormir profundamente, estás a dançar. E essa dança que mora na tua respiração também te mora nos olhos, nas mãos, nos sorrisos. Mora-te nas lágrimas, nos desejos e nas intenções. Mora em ti e faz com que sejas a bailarina principal de cada momento que vives.
Por isso, desejo que os teus oito tempos, sete notas musicais e cinco posições nunca parem de se tornar incontáveis. Desejo que faças deles o teu infinito e que dances no palco que escolheres. Mesmo que esse palco não seja à frente de uma plateia. Mesmo que esse palco não seja um palco. Mesmo que mais ninguém, além de ti, saiba que, na verdade, estás a dançar a tua vida.
Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Amores assim




"Um dia, o amor perguntou à amizade:
- Para que é que tu serves?
E a amizade respondeu:
- Para limpar as lágrimas que tu deixas cair!"
.......................................- Autor Desconhecido

Há amores assim. Amores que nos fazem amar a vida mais do que amamos o amor. Amores que ficam eternamente, de olhos atentos e mãos abertas, prontos a proteger-nos. Amores que não desertam no primeiro indicio de tempestade.


Choveu. Torrencialmente. Friamente. Dias a fio. Choveram-me os olhos, choveram-me as mãos, choveu-me a alma, choveu-me o coração. Choveu tanto que o sol ripostou e desapareceu do céu, cansado de esperar que as nuvens se ausentassem. Choveu tanto que amantes crus se separaram e desistiram da noite. Choveu tanto que as ruas do meu pensamento ficaram subitamente povoadas apenas por fantasmas tristes.


No Inverno da minha alma, a noite pareceu eterna e as estrelas foram apagadas pela imensidão do nada. E, o amor, esse amor que me enchia os dias de luz, transformou-se subitamente na parede mais escura do meu sentir.


Os dias passaram, as pessoas seguiram, as Estações mudaram. E os amores impossíveis tornaram-se apenas improváveis na aurora da minha imaginação. Subitamente, quando olhei em redor, os fantasmas tinham as mãos fechadas nas minhas e armas de desassossego incansáveis. Os fantasmas eram os meus amores eternos, pássaros de alma pura, a protegerem-me do meu amor irreal.


Talvez todos os amores que vivemos estejam encobertos pela parede fina e invisível de uma amizade. E, no fim, talvez a amizade seja o amor mais forte de todos. O medo, a dúvida, a aceitação e a mágoa. Tudo isso são sentimentos nascidos na raiz de uma paixão. O amor não tem medos, nem dúvidas, nem dificuldades de aceitar o que for, nem mágoas encobertas em sorrisos falsos. O amor é verdadeiro. Verdadeiro como as mãos guerreiras de todos os que nos agarram quando as nossas paixões desencadeiam infernos.


Há amores assim. Amores onde os sorrisos duram mais do que as lágrimas. Onde as lágrimas secam. Onde as tristezas se dissipam em mares de contentamento. E é para isso que existe a amizade. Para termos sempre amores por perto, mesmo quando julgamos que nunca mais vamos amar.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Entra



Shiu! Entra mas fala baixinho para não me acordares a dor. Demorou a adormecer. Adormeceu há tão pouco que ainda esperta ao menor som. Deixa-a dormir sossegada, nessa cama de espinhos e punhais. Deixa-a repousar um pouco. A imortalidade cansa.
Não te aproximes dela. Fica comigo um bocadinho. Só nós os dois. Vamos lá fora ver a lua. Vamos à serra contar estrelas cadentes. Vamos à praia ver as ondas. Podemos ir aonde quiseres. Mas tem cuidado, o cuidado de não fazeres um único gesto brusco, o cuidado de não dizeres nenhuma palavra impensada, o cuidado de não te aproximares demasiado de mim. Deixa a dor continuar adormecida e dormente. Deixa-me respirar um bocadinho a paz do seu sono.
Pé ante pé, afasta-te da minha imagem de ti, afasta-te desse sonho desmedido que me encheu a vida. Afasta-te da canção de embalar que o meu coração entoa para acalmar os mil sentimentos que te devo.
Um dia, um dia que não hoje, vou contar-te o que sinto por ti. Vou dizer que te amo. Assim, baixinho, num sussurro impensado, num murmúrio disperso nas ondas. E, nesse dia, esse dia que não é hoje (porque não quero acordar a dor), tu vais fingir que não ouves. Sei, ainda assim, que será um grito aos teus ouvidos, da mesma forma que o teu silêncio vai ser um grito a acordar a dor deste sono leve em que caiu.
Por isso sim. Entra. Mas fala baixinho. Ou não fales de todo! Deixa-me só olhar para ti, tentando não imaginar as palavras que me dirias se isto fosse um sonho e que nem te passariam pela mente, se fosse real. Não faças barulho. Não faças nada. Existe apenas, em silêncio, para eu saber que estou segura e em paz. Na segurança e na paz de existires. Na segurança e na paz de não precisar de saber mais nada.
E, por favor, espera um pouco. Fica por aqui durante umas horas, uns dias... porque quando fores embora, ainda que vás pé ante pé, ainda que o faças em silêncio, a dor vai despertar e eu não vou saber adormecê-la outra vez.


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sábado, 11 de junho de 2011

No dia em que te conheci

No dia em que te conheci não havia sol. Nem nuvens. Nem qualquer indicio de chuva. Havia as estrelas e a lua, marés de ondas sem sal e copos vazios.
No dia em que te conheci, o mundo parou. Parou de girar sobre si mesmo. Ou em torno do sol. As pessoas não andaram. Não falaram. O vento não soprou.
No dia em que te conheci eras tu e eu. Só nós no meio de uma multidão que não existia. Tu e eu. Só nós.
No dia em que te conheci perdi o Norte e o Sul. O Este e o Oeste. Perdi o rumo e o horizonte.
No dia em que te conheci esqueci tudo o que tinha vivido, todos os meus sonhos e todos os meus desejos.
E foi tudo para mais tarde descobrir que, na verdade, nunca te conheci.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 1 de junho de 2011

No teu son(h)o

Fica quieto. Vou deitar-me na tua cama e ficar acordada a ver-te dormir. Quero imaginar as paragens e as gentes que te povoam os sonhos. Imaginar se são pessoas como eu, se são diferentes de mim, se pensas que alguém pode ser igual a mim. Se sabes que existo...
Quero ver o teu sorriso ligeiro, ouvir o teu respirar pesado e ausente, contar às estrelas que te descrevo em quatro letras. E, se as estrelas responderem, invejosas, vou dizer-lhes com a maior altivez que não te podem ter. Não podem porque eu não posso. Porque ninguém pode. És demasiado especial para seres de alguém...
Podes dormir. Vou afastar-te o cabelo dos olhos e acarinhar-te o rosto, enquanto sossegas. E vou pedir à lua que cale a serenata tonta com a qual me conquistou, para poderes dormir em silêncio.
E, então, o sol vai começar a nascer e as minhas asas negras vão abrir, em aviso, porque eu pertenço à noite. E vou deixar uma lágrima cair na almofada, antes de voar, por entre as sombras, rumo a um lugar perdido, enquanto espero que anoiteça novamente.
Somos de mundos diferentes. Toda a gente é. Ainda assim, nesse lugar perdido entre sombras e luar, vou imaginar que acordas e me vês a sair pela janela dos teus sonhos, a tempo de selares a minha noite com o beijo do teu dia. E vou adormecer para o sol, sorrindo, sem saber como posso ser eu a fada e seres tu, mero humano, um imortal. Um imortal que viverá para sempre nos dias das minhas noites, enquanto houver dias e noites, enquanto as minhas asas negras sobrevoarem esse mundo que nem sabes que existe.


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Não te preocupes


Não te preocupes.
Olhei duas vezes antes de sair pela porta. Três, se contares com o último olhar, desnorteado e de lágrimas nos olhos, com o qual confirmei que não deixava nenhum vestígio de alguma vez ter existido.
Não trago nada teu, não deixo nada de mim. Em breve serei pouco mais do que uma memória fugidia, longínqua, um sonho... a tua fantasia mais louca. E tu, para mim, serás o olhar desnorteado e repleto de lágrimas com o qual me comprometi a não voltar mais.
Talvez te tenhas agarrado demasiado aos meus regressos. Talvez eu nunca devesse ter voltado à inconstância de sequer pensar que sou incompleta sem ti. Não olhes para a porta, esperando ver-me entrar, com um sorriso que prometia tanto mais do que posso dizer.
Não te preocupes.
Fechei bem a porta atrás de mim. Tranquei-a. Deixei a minha chave na tua caixa do correio. E um dia, quando as cartas não te aparecerem magicamente sobre a mesa da entrada, vais sair e abri-la tu, para descobrires que não vou voltar. Nunca mais.
Entre nós houve a imensidão do nada. Quando dissemos que íamos dar um ao outro o universo não era para ser um universo de dor. Então porque é que foi?
Não te volto a magoar. Não me voltas a magoar. Não voltamos sequer a olhar-nos nos olhos com esse instinto esmagador de nos matarmos um ao outro. Não volto a rebaixar-me a ponto de me pisares, não volto a pisar-te quando te sentes mal por me teres magoado.
Não te preocupes.
Tenho a estrada. Tenho o que vem além da estrada. Tenho-me a mim. E tu, Amor, tens-te a ti próprio, cheio de utopias maravilhosas que, certamente, levarão muitas pessoas até tua casa. Mas no fim, todas elas saberão que estão melhor sem ti. Nenhum outro sentimento pode dar o que tu prometes mas também nenhum faz o estrago que tu fazes.
Não te preocupes.
Vou aprender a viver sem ti, sentimento irónico. E vou ser menos louca, ainda que caminhe para sempre numa estrada de Saudade, rumo a um lugar que não sei aonde fica...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

terça-feira, 26 de abril de 2011

Serenata do Abismo

Ele percorreu a cidade, tocando as cordas da solidão com as pontas dos dedos e cantando a saudade como se cumprimentasse uma velha companheira de aventuras.
Envolvia-o a doçura de chegar ao fim. Ao fim de um caminho que não era curto ou longo, bom ou mau, mas apenas um caminho que percorrera, rumo ao abismo onde todas as dores findam e todos os amores se tornam eternos.
Ouvira muitas histórias e muitas canções mas nenhuma assim. Nenhuma que tivesse o mar, o vento e o restolhar das folhas outonais como instrumento e a voz dos Deuses como melodia eterna, entoada por um silêncio cantado e vivo.
Abençoou, nesse momento, os que lhe tinham provocado as feridas da alma pois sentiu-as sarar. Perdoou os que o tinham feito chorar, pois devia-lhes todos os sabores da humanidade. Agradeceu a todos aqueles com os quais se tinha cruzado pelos sorrisos, pelos momentos, pelas certezas incertas de um "até amanhã" de rotina.
Percorreu a cidade, à luz pálida e cortada do luar nascente. E continuou a tocar as cordas de solidão, a par com todos os sons da natureza. Os Deuses sorriam. Um sorriso quente, naquela noite fria. Um sorriso verdadeiro naquela Era forjada de mentiras e dor.
E o fim chegou, tocando-lhe o rosto com a mesma doçura com a qual uma mãe afaga pela primeira vez a face do filho, envolvendo-o na protecção de não ter de sofrer nunca mais. E a solidão parou de tocar. A música era apenas a do bater cada vez mais fraco de um coração moribundo. E era bela. Completa. Única. Talvez, quem sabe, perfeita.
Depois, o sossego de uma orquestra de sensações e a voz da memória a cantar baixinho. Morrer era apenas acordar para outra vida. Uma que talvez fosse mais plena. Uma onde talvez aprendesse a ser feliz. Uma onde talvez viesse a tocar as cordas de um amor que não fosse construído na saudade mas antes numa paixão maior do que o tempo.
Ele percorreu a cidade, rumo ao abismo. Tocou, em serenata, a última nota do seu amor mais puro e, sem que ninguém o soubesse, foi finalmente feliz...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ao abandono...

A casa estava fria, com as paredes nuas e as divisões desocupadas e as janelas desengonçadas, pendendo. Crescia relva por entre os azulejos do chão e subia hera pela fachada triste e podre. Ecoavam os passos dos fantasmas pelos corredores. O resto era silêncio.
Havia nos quartos a memória de mil paixões. Algumas proibidas, outras acabadas, outras simplesmente feitas de compromisso e conveniência. As salas ainda se lembravam dos pares, dos vestidos cerimoniosos, da música vibrante que ecoava pela mansão nos dias de festa. Todos os dias.
Fechando os olhos, ainda cheirava a alfazema e a tomilho e a canela e cravo. Ainda cheirava a pessoas e a histórias de nobres e criados, de serviço e fidalguia. Relembrando, ainda cheirava a vida. Mas tudo o que havia agora, era o aroma pútrido a mofo e a pó. A saudade.
E, passando na rua, o velho sábio ainda esboça o sorriso, enquanto segura o neto ao colo e lhe diz que aquele lugar foi uma casa senhorial que avançava pelas quintas, pelas capelas, pelas vinhas, pelos prados e ia até ao fim da aldeia. E a criança ouve, sorrindo e imaginando o lugar que aquele sitio já não é.
Mas depois passam, a casa fica, caindo como se não tivesse história. E já ninguém pensa nela, já ninguém quer viver nela...
Com as pessoas também é assim. Não importa quem foram nem o alcançaram nessa dimensão maravilhosa chamada "passado". Não interessa a importância que tiveram ou se um dia suportaram tanto quanto existe, em universos de felicidade. Não importa as histórias que têm para contar. Quando ficam vazias e doentes, a vibrar de solidão e a viver de recordações, as pessoas olham, comentam com saudosismo e seguem o seu caminho... porque também já ninguém quer viver nelas...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet