terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Mentir assim



O meu coração pediu-me para te dizer que não te ama, que já não precisa de ti, que deseja ardentemente que nunca mais te aproximes para me tocar a alma com as pontas insensatas dos dedos.
Ele falou, alto e bom som, gritando comigo como se eu não pudesse entender-lhe a brutalidade das palavras num sussurro. E disse-me, amargurado e triste, que cumprisse aquele que seria o seu último desejo.
O meu coração pediu-me para te dizer para seguires, para me esqueceres porque ele também te esqueceu. Pediu que te indicasse a porta de saída, com um dedo imperativamente apontado para os confins da Terra.
As suas palavras seguiram-se da explicação lógica de que nunca mais me faria sofrer, desde que cumprisse o seu desejo e te dissesse as palavras duras que ele gritava.
O meu coração pediu-me para te dizer que foste a pior coisa que me aconteceu. Que os sorrisos que me deste não valeram a pena porque não foram tantos quanto  as lágrimas vertidas. Pediu-me para te dizer que arruinaste tudo aquilo que tocaste em mim e que me transformaste numa cínica arrogante que já não acredita no amor ou em contos de fadas.
Pediu-me para me afastar de ti, se tentasses tocar-me e para te interromper de forma brusca caso tentasses formular um pedido de desculpas.
Sim. O meu coração pediu-me para te dizer que já não significas nada, que nunca significaste nada e que o amor, se é que era amor, morreu para sempre. Honestamente, não sei aonde é que ele aprendeu a mentir assim.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Invisível


Ninguém me vê. Nem mesmo quem me olha. Nem mesmo quem passa por mim na rua e me sorri ou me cumprimenta com um "tudo bem?" de passagem. Ninguém me vê. Se me vissem, não me olhariam com um sorriso nem perderiam tempo com a pergunta insípida de como estou.
Sou invisível. Tão invisível que ninguém o nota. Carapaça e manto de algo que fui e ainda julgam que sou porque é mais simples acreditar na mentira.
Não ouso negar a mim mesma quem eu sou. Tesouro afundado, destruído, no fundo de um oceano de lágrimas. Não ouso negar a minha essência, a minha força, a minha luta. Mas o que importa quem sou, se passo na rua e fico dentro de mim, invisível a todos os que me olham com os olhos cegos do rosto?
Ninguém me vê. Sou um fantasma vivo a vaguear por entre as mil vidas que me inventam. Sou invisível nos meus passos sem som nem pegadas. E o meu caminho é a estrada sem destino. A minha alma é a promessa sem esperança.
Menina, mulher. Fruto ou flor. Madrugada ou noite. Vêem em mim o que querem ver. E eu sorrio, sem saber: são eles cegos ou sou eu sombra? São eles cegos ou sou eu ar? E continuo. Passo a passo, a caminhar dentro de mim, à espera de me ver porque mais ninguém me vê. À procura do que possa ter ficado por entre os escombros do que fui e a solidão calada.
Sou invisível. Ninguém me vê. Ninguém nota que, em estando, estou ausente. Que me ausento do mundo para poder estar só. Que me ausento de mim para poder estar em paz.
Ninguém me vê. Estou nos trilhos do que passa ao lado de tudo e de todos. Sou como o vento e, como ele, eu passo e julgam que me conhecem quando, na verdade, não sabem de onde venho nem para onde vou.
Sou invisível. E, enquanto julgam que me vêem, ando por aí, alheia, a vaguear em memórias e a agitar as copas das árvores do meu pensamento.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A menina que não ouvia



Vocês podem ouvir a manhã nascer no cantar de um galo, a maré subir no grito da gaivota, a eternidade cantada na voz do vento. Podem ouvir o soar de um suspiro, o bramir de um sino ao longe, o correr do rio inquieto para o mar. São coisas nas quais não reparam, é claro. Foi-vos dado à partida. Não lhe dão valor.
Eu não ouço essas coisas. Não poderia ouvi-las ainda que orasse todas as noites por um milagre. Mas não tenham pena de mim. Não me lancem sorrisos de piedade. Não preciso deles.
As palavras são a minha música. É a ler que junto as silabas como notas e as deixo tocar dentro de mim uma canção que nem todos podem ouvir. Mas eu posso ouvir esta canção eterna porque a ouço, não com os ouvidos mas com a alma e o coração.
Eu ouço um sorriso. De olhar para ele, sei dizer, sem medos, que é feito nos tons de uma balada que eu não posso ouvir. E cada sorriso soa diferente no meu coração. Cada sorriso é tocado no seu tom e recebido na minha alma com uma sonoridade diferente.
Eu ouço o beijo na face. O tom ternurento e meigo de um abraço entre dois amigos. O olhar trocado entre amantes que se escondem nas esquinas. Eu ouço o desassossego. A lágrima que rola pela face e segue, segue, até cair nas mãos abertas. Eu ouço o ciúme, a tristeza, a alegria. Eu ouço o amor, o carinho, a saudade. Eu ouço as sereias que vagueiam nas profundezas do oceano. Sim, eu ouço tudo isso com a alma, com o coração, com os ouvidos do sentir.
Nunca ouvirei o mesmo que vocês, nem da mesma forma. Aos meus ouvidos não foi dada a dádiva de poder conhecer o mundano que tantos escutam e ignoram. Mas, em retorno, deram-me um coração gigante, capaz de sentir tanto que eu jamais poderia ignorar o som dos sentimentos, dos gestos, dos desejos.
Ser surdo não é não ouvir o que se ouve. É ignorar o toque do mundo em silabas de promessa e eternidade. É ignorar os sentidos. Eu não ouço. Mas não sou surda. Sei retirar música das coisas que vejo, das coisas que toco, de tudo o que sinto. E a minha vida avança com a mais bonita das bandas sonoras. Porque eu ouço o inaudível. E é nessa canção de alma que se conhecem os sons mais bonitos do mundo.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Pássaro da manhã



Há uma dimensão da vida que me cansa. Cansam-me os dias que não começam mas acabam, os dias que parecem não acabar nunca, os dias... Cansam-me as horas a olhar para a parede e as horas a pensar. Cansa-me o tempo e o pensamento que voa sobre as sombras cálidas das manhãs que nunca começam de manhã.
Por vezes, gostava de ver o sol nascer. O primeiro murmúrio de um pássaro livre a ecoar no silêncio de uma noite que se afasta com o clarear azul de um céu perfeito. Por vezes, gostava de respirar o ar frio e húmido dessa manhã que chega e de poder despedir-me com maior facilidade do beijo ténue da almofada no meu rosto.
Mas há uma dimensão da vida que me cansa. Que me cansa tanto que não posso fazer mais do que dormir e não querer voltar a acordar. É nessa dimensão que caio todos os dias, quando a noite se transforma em madrugada e os meus olhos não fecham para dar descanso à alma. É nessa dimensão que caio todas as madrugadas, quando finalmente o meu corpo desliga deste mundo imortal e desumano. E nunca acordo para a vida, para a viver, para querer vivê-la... estou sempre cansada de tudo. Estou sempre tão cansada de mim.
Talvez seja eu a culpada dos meus medos, das minhas dores, das minhas angústias frias e das minhas vontades mornas que nunca explodem em chama e nunca se mostram ao mundo.  Talvez eu seja essa dimensão da vida que me cansa e me atira para o desespero de não haver manhãs. De que me valem as manhãs? Não sou livre como esse pássaro que canta no silêncio e que pode ir onde quiser. Estou presa nas entranhas das minhas raízes. Estou presa num solo infértil onde não pode crescer mais nada além da minha própria mágoa.
Há uma dimensão da vida que me cansa e vivo nela. Sempre. Talvez um dia o sol dessa manhã fria venha acordar as raízes podres e as folhas orvalhadas e secas que trago no meu peito. Talvez. Não sei se algum dia a escuridão cortante vai transformar-se na luz do sol. Não sei se algum dia vou ser o pássaro que canta no primeiro indício da manhã...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Cinco letras



"Amo-te" é uma palavra que não se diz em cinco letras. Dizer amo-te envolve todas as letras do alfabeto e mais algumas por inventar. "Amo-te" diz-se pela manhã, num beijo ternurento, por entre a roupa desgrenhada e o cabelo revolto. "Amo-te" diz-se pela ajuda no momento de dificuldade e pela aceitação onde só se espera a critica. "Amo-te" diz-se em chávenas de chá nos dias de gripe e em abraços em dias de choro. "Amo-te" diz-se nos abanões perante  ideias ou escolhas erradas. "Amo-te" tem cinco letras mas não se diz em cinco letras. "Amo-te" é uma palavra que não se diz.
"Amo-te" é uma palavra que pode ficar calada num olhar e presa num gesto. "Amo-te" é a mão passada levemente pelo rosto, depois de um beijo, é o silêncio que fica por entre conversas sobre tudo e nada. "Amo-te" é um empurrão ao de leve, um riso de lágrimas nos olhos, uma piada por entre uma conversa séria. É uma brincadeira que acaba num beijo. Um beijo que acaba num abraço. Um abraço onde dois se tornam um só.
"Amo-te" não é uma palavra que possa ser dita sem um gesto. É uma palavra vazia por si só. Mas quando nasce no silêncio de um movimento, de um olhar, de um beijo, mesmo sem que ninguém a diga, "amo-te" é a maior palavra do mundo, a mais repleta de sentido, a mais especial.
"Amo-te" não é algo que se atire ao ar, para ser agarrado pelas estrelas. "Amo-te" é a promessa, a espera, a presença. É o batimento acelerado do coração, o medo de perder o outro nas estradas da vida, o ciúme quando o tempo passa e o amor não vem. "Amo-te" é o olhar perdido no céu, a oração calada para que tudo corra bem na vida de quem se ama, a esperança ousada de ver passar na rua um rosto que se assemelhe.
"Amo-te" é o sorriso no horizonte. É a estrada dentro do peito. É a flor no cabelo. "Amo-te" é a jura calada do para sempre. E vale a pena esperar por esse amor que não se diz. Porque ele surge e mostra, a cada segundo, que é só para nós.
"Amo-te" é uma palavra que não se diz em cinco letras. É uma palavra que não se diz num romance nem na mais longa das dissertações. E é por isto que, sem nunca ter dito cinco letras vazias, eu sei que disse o que sentia. Porque dei os meus olhos, a minha alma, o meu coração. Porque dei o meu riso, as minhas lágrimas, o meu apoio. Porque me tiveram nas mãos, cativa e feliz. Porque, olhando com atenção, veremos que alguém ainda carrega consigo um "para sempre" que é meu.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Mas era Natal



Ela caminhou pela rua com os pés descalços. A roupa, velha e rasgada, não bastava. O rosto, encardido e sujo, as mãos negras. Mas ela sorria. Com um brilho nos olhos. Com uma fascinação crescente na expressão alegre. Era a noite mais fria do ano. Mas também era Natal.
Caminhou pela cidade. As iluminações cativavam-na. Sentiu o estômago remoer, na memória longínqua da última refeição que fizera. Já não se lembrava quando. Fora naquele dia em que um senhor de sobretudo preto a tinha levado ao café. Afinal, era Natal.
Caminhou. Luzes amarelas e azuis. Vermelhas e verdes. Estrelas. Presépios. Presentes. Imagens sem fim, iluminadas, como estrelas, ao longo da rua. Sorriu, fascinada. Tinha fome e estava frio. Mas era Natal.
Passou por mil portas fechadas, bebendo do cheiro adocicado a amor e bolos. E imaginou, por segundos, que estava do outro lado, a comer e a sorrir. O pensamento bastou para que sorrisse. O que havia de fazer? Era Natal!
Passou as mãos pelos braços, esfregando-os para se aquecer, enquanto caminhava, vendo a névoa da sua respiração aparecer e desaparecer. As ruas estavam desertas. Quem havia de as povoar? Era a noite de Natal!
Cansada, nos seus passos de menina, nos seus passos de criança, procurou refúgio num beco entre duas casas. A saída de ar de uma velha pastelaria fazia-a sentir menos frio. O cheiro, ainda presente, do pão, fazia-a sentir-se mais saciada. "Um presente de Natal", pensou para si.
E, de alguma maneira, entre presentes e afagos, entre comidas abundantes e risos de lágrimas nos olhos, milhões de crianças não souberam que era Natal. Mas ela soube e sorriu.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Este amor


Sou casada com a esperança e enamorei-me pela ideia da felicidade. Este é um amor que ninguém pode vencer. É maior do que tudo e todos. É maior do que a vida.
Gosto da felicidade assim: rabugenta e difícil, a pedir-me a luta constante, em remates desiguais, feitos numa luta que, à primeira vista, não pode ser vencida. Gosto da felicidade perto e longe. Do caminho que me leva até ela. Do tempo que a traz até mim.
Mas é a esperança que fica, quando a felicidade vai embora. E é por isso que escolho viver com ela, todos os dias. Foi por isso que troquei com ela alianças de poeira e ouro branco. Foi por isso que, sob o olhar assertivo dos Deuses, lhe disse que sim.
Este triângulo amoroso funciona. A esperança sabe que amo a felicidade, a felicidade sabe que, sempre que se vai, a esperança fica. E ambas me aquecem pelos dias frios e as noites intermináveis, como se se ignorassem uma à outra ou como se também se amassem.
Sou casada com a esperança. Todos os dias de manhã, ela me acorda com um abanão suave e me diz: "Tem força, hoje vai ser melhor.". E, se eu não respondo ou choro, ela acrescenta, no tom maternal de uma anciã: "Ela há-de vir, a felicidade há-de vir".
E eu levanto-me de um pulo para abraçar a esperança, para lhe dizer que acredito nela e a amo, apesar de tudo. Ela sorri e agarra-me. Um abraço que me segue aonde eu for, que me protege do que quer que venha.
Às vezes é verdade. Outras vezes é mentira. Nem sempre a esperança tem razão. Há dias em que a felicidade adentra o quarto e me ilumina. Há dias em que ela não passa sequer à minha porta. Mas a esperança insiste, ao longo do dia, "trabalha, sorri, ela há-de vir". E eu, menina tonta, continuo a acreditar. Ela virá. Ela acabará por vir. Um dia, ela irá morar comigo e com a esperança para que todas estejamos bem.
Este amor. Este amor pelo futuro que ainda não chegou é a minha dádiva. Este amor pela esperança. Este amor pela felicidade. Ninguém gosta de estar triste. Mas, por vezes, quando a felicidade não vem, basta saber que estamos a caminhar para ela. E vale a pena ser triste com a esperança, mesmo que ela esteja errada e a felicidade não chegue jamais. Porque, enquanto a esperança me acordar de manhã dizendo "Ela há-de vir", uma parte de mim irá esboçar um sorriso e ser secretamente feliz, na espera do melhor de amanhã.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Por entre os dedos



Fugiste-me por entre os dedos entreabertos das mãos vazias e deixaste a culpa atrás de ti para eu poder sufocar sozinha no mar da pergunta sólida "onde foi que eu errei?".
Fugiste-me por entre os dedos e levaste nos bolsos tudo o que ainda importava. O meu amor, o meu sentimento e uns quantos feitiços  de céu que invocava apenas para que jamais caísses ao chão.
Então, tropeçaste nos medos e caíste nas desilusões. É o que acontece quando afastamos quem realmente se importa...
Vieram as palavras. Palavras feridas, caladas num silêncio que dói mais do que a pior das discussões. E, subitamente, a culpa era minha. A culpa era dos meus dedos entreabertos que te deixaram fugir.
Mas não! Desta vez, a culpa não foi minha. Desta vez a culpa não foi da minha insensatez. Se fugiste por entre os meus dedos foi porque não entendeste que devias ter preenchido esses espaços com os teus.
Fugiste-me por entre os dedos. E a culpa foi somente tua porque não me deste a mão.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Estás aí?



Estás desse lado. Eu sei que estás. Estás à minha espera. À minha procura. E, quando te perguntam porque estás só, respondes, com um meio sorriso "porque a solidão é uma estrada e ela é a minha meta".
Estás desse lado. Oculto por um mar de impossibilidades que nunca muda a maré para facilitar o encontro. Oculto por paredes de hera e contratempo. Com uma espada de fé erguida, caminhando em passos gastos na minha direcção.
Passo a passo. Um atrás do outro. Procuras e não me encontras por entre cidades cheias de gente vazia. Por entre desertos sem oásis nem alucinações. E desesperas um pouco mais a cada dia. Desesperas porque sabes que eu existo e não sabes onde estou. Porque sabes que, do outro lado, eu estou à tua procura sem saber onde tu estás.
Estamos perdidos, tu e eu. Amantes que nunca se viram e sempre se amaram, à espera do que todos dizem que é ilusão. Chamam-te louco? A  mim chamavam. Chamaram-me louca, enquanto se importaram. Mas já não se importam. Já não querem saber. Dizem que me perdi, que me dei, que me entreguei a uma ilusão. Mas não és ilusão, pois não? Estás desse lado, à minha procura, a tentar explicar às pessoas que a maior loucura de todas seria não procurares por mim.
Não desistas, por favor. Eu estou aqui. Estou aqui à tua espera. E, quando me perguntam, digo apenas que quero o horizonte que chega com os teus passos cansados.
Estás desse lado. Eu sei que estás. Estás à minha espera. À minha procura. E trazes junto ao peito uma imagem de mim que ainda não sou eu. Mas serei eu, um dia. Quando entenderes que essa imagem sem rosto tem os meus olhos e os meus lábios. Quando entenderes que não poderias amar mais ninguém.
Estás aí. Ninguém sabe mas eu sei. Estás à minha espera, à minha procura, curioso por saber se, deste lado, eu também espero por ti. E estás impaciente. Como se o era uma vez fosse longo demais e a história tardasse para acontecer. Mas acredita: ela vai acontecer. Porque, desse lado, estás à minha procura e, deste lado, eu espero por ti.
Estás desse lado. Não estás? Estás à minha procura? Estás à minha espera? Por favor... não deixes a resposta vazia ecoar no silêncio. Estás aí, não estás?

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (autoria de Renata Pineze)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Em confidência



- Podem chamar poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. Eles nunca saberão, nunca sonharão o que me faz ser como sou!
A voz dele estava repleta de agonia. O rosto dele vinha marcado das lágrimas por verter. As mãos, velhas e enrugadas, tinham os jeitos de quem sabe que segurar uma cerveja entre os dedos não iria sarar a alma.
- Podem chamar o que quiserem, meu velho amigo. Podem dizer que as minhas decisões foram erradas. Não importa. Não importa.
Não dormia há dias. Podia dizer isso pelo arrastar das palavras, pelos silêncios mortos no centro das frases. Podia dizer isso pelo olhar cego, desvairado e intocável, rodeado de negro.
E continuou, de olhos loucos e perdidos nas bolhas quase inexistentes da bebida, num choro seco que doía.
- Ela ficou ali, sabes?  De joelhos no chão, a implorar. Mas ela não vê. Ela não sabe. Ela não pode saber. E, no topo das escadas, o choro. Aquele choro de inocência. Sem palavra. Sem mais do que um olhar a questionar. E eu saí. Eu saí. Eu saí como se o choro delas não importasse.
Deu um murro na mesa. A madeira gasta rangeu e ele cerrou os punhos. As veias, salientes e escuras surgiram, como se as palavras não bastassem.
- Elas ficaram ali, como se eu estivesse lá antes. Como se eu não tivesse posto o trabalho em primeiro lugar. Como se eu não tivesse perdido aniversários, Natais, primeiros passos e palavras. Elas choraram como se, antes de partir, eu tivesse estado lá.
A mágoa na voz adensou, à medida que o olhar escurecia, mais e mais, numa falsa tentativa de desapego.
- Nem uma foto, acreditas? Lá estão elas, as duas, sorrindo. Mas eu não. Onde estava o pai? Onde estava o marido? E elas choraram como se eu tivesse sido perfeito. Imploraram como se a minha ausência pudesse aumentar, como se a minha ausência ainda pudesse feri-las. Eles não sabem. Eles nunca sonharão o que me faz ser como sou.
Olhou para mim, finalmente, afastando o copo da cerveja com as pontas dos dedos encardidos pelo tabaco.
- Eu saí porque nunca estive. Sou um lugar vazio à mesa porque nunca dei graças. Sou o fantasma da fotografia porque nunca cheguei a tempo. Sou a pessoa mais infeliz do mundo porque virei costas e parti. E agora? Agora ele está lá. A chamar poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. A chamar erradas às minhas escolhas. A beijar a minha mulher. A embalar a minha filha. E eu estou aqui. Num bar. A beber até cair e a fumar até mal poder respirar. E não vou voltar. Porque elas estão lá, com ele, a sorrir, a tirar fotografias a três, a comer à mesa juntamente com ele. E estão a sorrir. Estão a sorrir porque eu saí para dar espaço ao sorriso. E, acredita em mim, foi a única coisa decente que algum dia eu fiz por elas.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet