terça-feira, 25 de abril de 2023

Liberdade sem IVA

 


Deixo-te um bilhete. Vou sair. Talvez vá ao supermercado, encher o carrinho de Liberdade. Abastecer de Liberdade. Açambarcar Liberdade.

 


Liberdade que o seja não pode ter código de barras. Nem código. Nem barras. Nem nada que oprima. Talvez, por isso, demore a chegar a casa. Não te preocupes. Teremos Liberdade para o jantar... e se não for no jantar de hoje, será no de amanhã. Trarei Liberdade para a nossa casa, nem que tenha de palmilhar a pé todas as ruas da cidade e de entrar em todas as lojas, mercearias, drogarias e bordeis. Trarei Liberdade para a nossa casa.

 

Não me leves a mal se comprar a mais e deixar alguma espalhada por aí. Sabes que encho sempre demasiado os sacos e, depois, não consigo carregá-los. A Liberdade deve ser leve. Mas sabemos bem que aquela que se vende por aí é, muitas vezes, sucedâneo e, por isso, está cheia de condicionantes e aditivos, de complementos circunstanciais e de enredos políticos. Tudo isso pesa... mas nem vou deixar Liberdade por caminho porque ela pese. Vou deixá-la porque é muito triste olhar as ruas que se fazem cela. Prisões detalhadas com tantas injustiças no ornamento, que até as deusas pousam a balança para apertar a venda sobre os olhos, e não ver os prisioneiros do dinheiro a negar esmola aos prisioneiros da pobreza, todos eles irmãos na penitenciária do capitalismo.

 

Gostava de deixar um pouco dessa Liberdade na porta das igrejas, ao lado dos panfletos que vendem o céu em lotes. Também gostava de o deixar nas escolas, onde ensinam as crianças a pregar as pernas às cadeiras e a controlarem, à secretária, esse hábito terrível que é brincar, e onde ensinam os professores a seguir os moldes ocos de manuais escolares onde se vende a ficção do heroísmo e a fantasia da escolha, a par com os processos da mitose, o teorema de Pitágoras e a reforma industrial.

 

Prometo que não paro nos sinais vermelhos. Mas vou parar nos cravos. Não para os colher, mas para lhes pedir desculpa em nome da minha espécie. Ou será raça, outra vez?

 

Não sei bem onde ir buscar a Liberdade, mas vou. Dizem que os supermercados tiraram o IVA dos produtos essenciais. Por isso, aproveitarei para ir buscar a Liberdade. Espero que haja fila para o balcão da Liberdade. Que toda a gente vá, como eu, buscar um bocadinho e aproveitar a promoção para promover esse bem essencial que vai ficando esquecido, à medida que o desconforto e o cansaço se tornam habituais e rotineiros.

 

Então, deixo-te esta nota. Fui buscar Liberdade. Trarei Liberdade para a nossa casa, nem que tenha de palmilhar a pé todas as ruas da cidade e de entrar em todas as lojas, mercearias, drogarias e bordeis. Trarei Liberdade para a nossa casa. Teremos Liberdade para o jantar... e se não for no jantar de hoje, será no de amanhã.

 

Caminharei enquanto houver pés. Para a encontrar.

 

Se eu nunca voltar, procura-me na mesma vala comum onde enterram todos os heróis livres sem nome. Serei o cadáver que sorri. Talvez igual a todos os outros. E ainda bem. Atira-nos um cravo e segue. Livre. Com essa Liberdade sem IVA que sonho que possas colher nas ruas, nas igrejas, nas escolas e na mesa do jantar.

 

Prefiro que jantes na companhia da Liberdade do que na minha.

 

É que, percebe, quem ama não prende.


Marina Ferraz




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terça-feira, 18 de abril de 2023

Colado aos ossos

 


Pensamos que foi. Depois de lavado. De esfregado do corpo. Com pedra-pomes como ensinam os idosos, que pouco podem e tanto sabem. Pensamos que foi. Que deixou apenas arranhões. E que os arranhões cicatrizaram. E as crostas caíram. E o sol fez o trabalho de apagar as linhas. E se não há linhas pautadas, talvez a memória não escreva. Não inscreva. Pensamos que foi.

 

Não foi.

 

 

 

Retraio-me no toque. Inconsciente. Doem-me as costas. Não sei porquê. Inclino a cabeça para a esquerda. Encolho-me nas frases altas. E olho para o chão. Eu a ser eu. Digo. Mas eu não era este eu que eu sou.

 

Um dia, não disse não.

 

Logo eu, que faço do não a palavra mais prostituída de todas, que a dissolvo na língua, feito saliva e a cuspo a torto e a direito, por vezes sem razão nenhuma, apenas como adorno linguístico.

 

Um dia, não disse não.

 

Deitada na marquesa e com as mãos sapientes de uma curandeira de linhagem, com o grito prestes a ser vomitado, pendendo da garganta com o sadio da pressão impressa em mim. Tortura lenta no caminho para a cura. Pedindo aos olhos crescidos que se lembrem de que têm a idade dos meus dias e não chorem. Pedindo a todas as aprendizagens sociais que me limitam os gestos que não me falhem. E ela diz. Podes gritar. E eu choro, em vez disso. E ela diz. É, o abuso fica marcado no corpo.

 

Espanto-me e não nego. Pergunto-me se abusaram de mim. Concluo que abusei de mim. Logo eu que faço do não a palavra mais prostituída de todas, que a dissolvo na língua, feito saliva e a cuspo a torto e a direito. Um dia, não disse não.

 

Retraio-me no toque. Inconsciente. Doem-me as costas. Não sei porquê. Inclino a cabeça para a esquerda. Encolho-me nas frases altas. E olho para o chão. Há um desconforto permanente na zona da anca. Um nervo no braço esquerdo que nunca ficou curado, mas que representa a salvação. Ao doer digo. Podia ter sido pior. Ao doer digo. Podia ter sido mesmo pior. Encarar uma lesão como a única decisão sábia de meio ano. E a falta dessa prostituta pessoal, a palavra não, como a prova de que posso perder-me de mim.

 

Descobrir que o abuso fica no corpo. Colado aos ossos.

 

Nenhuma distância nos separa do corpo.

 

Nenhum caminho nos leva para onde ele não está.

 

Lavar. Esfregar. Com pedra-pomes como ensinam os idosos, que pouco podem e tanto sabem. Arranhar. Ferir. Deixar cicatrizar. Regar de sol. E perceber que não sai. Que não foi. Que é. Que será provavelmente um sempre. Mais um sempre. Lesão emocional colada nos ossos, dentro do tutano. Libertando venenos ocasionais.

 

 

Pedir. Leva-me assim, com defeito.

Com uma memória dura colada nos ossos.

 

Aceitar que mãos curandeiras aliviem o que é de superfície. Vestir uma roupa bonita. Sorrir.

 

Aceitar.

 

Encontrar quem nos faz dizer sim, com vontade.

 

Deixar que esse sim se prostitua, dissolvido na língua, feito saliva, e cuspido a torto e a direito.

 

Deixar que a bondade se cole aos ossos também. Que a alegria se cole aos ossos também. Até o abuso ficar escondido por camadas e camadas de amor. E o corpo absorver a mágoa para criar felicidade, da mesma forma que a terra abraça o estrume para nos dar colheitas.

 

 

 

Pensamos que foi. Não foi. Nada do que passámos, passa. Mas o que fazemos com isso é. Será sempre. Uma escolha.


Marina Ferraz





 






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quarta-feira, 12 de abril de 2023

Gente de Abril

 




Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças...

 

E ele tinha apontado porque tinha mãos.

E ela tinha olhado porque tinha olhos.

E tinham falado porque tinham voz.

 

O pássaro que voava chamava-se Liberdade.

Eles não tinham aprendido a celebrar a palavra Liberdade.

 

Então, celebravam os pássaros.

 

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Os meus avós não foram gente de Abril. Mas foram. Mesmo sem ser. Educados em famílias convencionais e que facilmente se tinham embrenhado na ideologia vigente, ambos tinham crescido sem ouvir falar de política e sem precisarem de falar dela, aceitando a realidade como a única forma de realidade, sem perceberem plenamente que aceitá-la era a estratégia para não morrer nas suas cordas de forca. Ambos tinham crescido nas normas e jeitos de uma Mocidade Portuguesa. Ele passou de moço a homem de família e ela de mulher a mãe da nova raça.

 

Quando veio Abril, a minha avó teve medo e o meu avô não agiu. Temeram mais os dias que se seguiram, com gentes apontando espingardas aos transeuntes que caminhavam para o trabalho, do que tinham temido os dias da censura e do exílio.

 

Os meus avós não foram defensores de Abril. Pelo contrário. Defendiam um Salazar em cada junta de freguesia e – piada privada nossa – cheguei a oferecer meia dúzia de espátulas, para eles terem salazares suficientes na cozinha. Que lhes bastassem aqueles, pensava eu...

 

Os meus avós, que não foram gente de Abril, mas criaram-me para o ser. Porque os meus avós, presos nas suas ideologias, tinham as palavras antigas, mas o pensamento novo. A palavra reservada, mas a atitude certa. Os meus avós criaram-me para que eu fosse justa e livre, para que eu contestasse e lutasse. Para que eu me defendesse e desconfiasse de todos os conceitos fechados. Os meus avós – que não foram defensores de Abril – criaram-me para ser o Abril que não tinham criado.

 

Penso neles, à medida que olho a agenda. Para mim todos os dias são a véspera do Abril que ainda não foi. Vou-me munindo de palavras e exércitos. Vou carregando as armas com poemas. Vou chamando corpos para entoarem em gesto o que não pode ser disparado com as palavras.

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças... e um dia, a nossa Cilita vai ter uma filha que vai ser assim.

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Abril veio com flores.

Abril veio com fotos.

 

Agarro junto ao peito a minha gente. Lembro-lhes as palavras e os gestos. Escolho olhar os gestos como se fossem palavras. Tão retos, tão orientados na direção oposta das palavras que tinham plantado no jardim que devia ser dos cravos.

 

Não posso dar-lhes cravos vermelhos. O meu avô não gostava de cravos. A minha avó não gostava de vermelho.

 

Dou-lhes pensamentos e sussurro: obrigada por me plantarem Abril nas veias.

 

Eles são símbolo e motor desse exército que construo. Levo-os ao peito onde vou. Esta é a gente que me fez gente de Abril.

 

E grito Abril. Até ficar afónica. Literalmente.

 

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Eu voava naquele céu.

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro.

 

Eu voava naquele céu.

 

Imagino que tenha pensado. É aqui que quero nascer, na próxima vida.

 

 

Coimbra

23 de Junho de 1989

 

Nasci. Ali. Junto a eles. Neta deles.

 

Não me cortaram as asas.

 

É Abril e vou.

 

É Abril e voo.


Marina Ferraz











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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Dos teus olhos

 


Ele diz que gosta da minha poesia. Mas detesta poesia moderna. Considera-a, como o seu pai antes dele, “prosa fragmentada e empilhada”. Sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, ele confessa: “não gosto deste tipo de poesia”. Sorrio. Lembro-me das almas que compararam aqueles poemas aos meus, tão pequeninos ao lado da maravilha da poesia da autora de renome cujo nome ornamenta o topo da capa. “Não é tão diferente da minha!”, observo. Ele sorri. “Eu acho diferente. Mas talvez sejam os meus olhos...”.

 

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos choraram pela primeira vez a 5 de Abril de 1950. Desse primeiro choro fizeram vitória. Vida conquistada, partiste em busca dos poemas. Até chegarmos aqui. Com um livro sobre a mesa do café e as tuas palavras sobre os meus poemas e o teu olhar enviesado.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Gosto tanto deles que, durante uma vida, quis que me vissem. Assim. Como sinto que agora veem. Adulta e senhora de mim. Artista. Penso que, durante muito tempo, olhaste para mim e viste o reflexo do sonho que me sonhaste. Penso que, talvez por medo de me veres cruzar caminhos de espinho, tenhas lutado um pouquinho contra a menina-recheada-de-sonhos. Mas eu cresci, pai. Nos teus olhos. E gosto deles a olharem para a pessoa que me tornei, reconhecendo-me.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Há um brilhozinho neles quando eu chego. Questiono-me se é porque sabes que, além de todas as diferenças, ainda nos sobram traços comuns. Por exemplo... já notaste que duas das palavras que dizemos mais são “não” e “mas”? E que damos um saltinho em todos os degraus? Que contamos os degraus? E já reparaste que trazemos pormenores da História e da Física que não interessam a ninguém (e chateiam meio mundo!) em todas as conversas? Temos sempre a piada inconveniente certa... no momento errado. E dizemos a piada à mesma... Frequentemente olhando-nos a seguir, para, ao menos, sermos dois a rir. Gostamos dos grandes poetas e músicos. Da conversa com estranhos ocasionais. De nos metermos com os empregados dos restaurante... Até gostamos de achar que somos muito diferentes um do outro, vê lá...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos marejam ocasionalmente e não gostas disso. Mas eu gosto. Lembra-me o que aconteceu no começo da história de ti, quando choraste pela primeira vez. Lembra-me que nasceste. Gosto. Porque te sei humano. Dizes que é fragilidade, mas eu acho que é força. Aprendi com o tempo e com todos os “eu quero lá saber que queiram lá saber de mim”, que querer saber ao ponto da emoção é, afinal, muito bonito! E é por isso que quando me dizes: “Talvez sejam os meus olhos”, eu olho nos teus olhos.      Verdes.      Os meus, apetece-me dizer-te, também ficam verdes quando choro ou apanho demasiado sol.      Mas esqueço-me de to dizer, na busca pelo meu reflexo. Só que, quando olho nos teus olhos, não me encontro. Em vez disso, encontro poesia...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Aninho-me na menina que fui. Não quero escrever-te dessa “prosa fragmentada e empilhada”, da qual dizes não gostar. Escrevo antes isto. Prosa-prosa. Demasiadamente pontuada e fragmentada. Talvez.

 

Podia ser um poema, todo tradicional e rimado, com a métrica contada, mas não é. É uma prosa sobre os teus olhos, dos quais eu gosto tanto. E, sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, confessas-me: “não gosto deste tipo de poesia”. Duas trocas de conversa e dizes-me que gostas da minha. Mas que talvez sejam os teus olhos. Porra! Eu quero lá saber se são os teus olhos! Gostas da minha poesia!

 

 Subo para os teus ombros para ser a criança que fui, segurando-me no teu pescoço. Repito que gosto de ti... do teu tamanho, ora! Ficas a pensar se gosto ou do que gosto ou do porque gosto... mas nada disso importa.

 

Importa que gosto. E o que gosto mais, pai, é dos teus olhos... dos mesmos que choraram além-mar. Pela primeira vez. A 5 de Abril de 1950.

 

Para um dia me dizeres que os teus olhos dão rima e métrica aos meus poemas desalinhados. Para me dizeres que tens neles um filtro especial para mim.


    Marina Ferraz




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