terça-feira, 28 de setembro de 2021

Epifania

 




Havia uma história. E a história não era verdade. E a história não era ficção. A história vivia entre conceitos, provavelmente entre um e o outro, porque a vida é isso. Descoberta e discussão. Mutável, como a boa ciência. Com direito ao contraditório, como o bom jornalismo. Mas o ser humano habituou-se. Ao estereótipo simplista e redutor. É mais fácil.

 

Ou é verdade ou é mentira. Não há espaço para o que fica de permeio. Não há espaço para a conversa, para o debate, para o assumir da fragilidade humana das verdades mutáveis. Há pouco espaço. Nas mentes das pessoas. Para perceber. Isso. Que as verdades universais são dogma... Que as verdades absolutas não são verdade.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Perceber implica questionar. Aceitar é outra coisa. É um saber que se sabe o que não se sabe, nem se quer saber. Toda a luz nasceu de experimentação e da falha. Do questionamento. Toda a esperança depende do ponto de interrogação no final das frases. E da troca de ideias que se faz. Da conversa. Do debate. Da contradição. Do embate. Da resistência.

 

Mas é mais fácil vergar. Foi sempre mais fácil vergar. Obedecer custa menos do que lutar, assim como o silêncio custa menos do que as palavras. É uma apatia temperada a medo que leva filas e filas de autómatos da vida até à morte, sem viver de facto.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Custa-me olhar. Para os campos, para as trincheiras. Para os dois lados de uma guerra sem causa nem motivo. Para o rasgar da carne e das partilhas. Para a criação de facções, quando todos somos gente. Quando todos somos pessoa. Quando todos estamos a tentar. O mesmo. Sem dúvida. Ser felizes.

 

O inimigo público é o medo. E a aceitação acrítica é a droga. Vejo, pelos cantos e pelas ruas, todos os junkies indolentes, impassíveis, agindo em espelho face aos demais. E penso. Sempre o mesmo.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Avanço. Nas mesmas ruas onde se vendem máscaras e corpos. Procurassem as pessoas a paz como procuram a segurança. Procurassem as pessoas a clareza como procuram o prazer.

 

Pede-se uma epifania.

 

Penso vender a ideia, com uma publicidade apelativa. Assim: Uma epifania é um orgasmo mental. Mas ninguém quer uma epifania. A apatia é mais segura. A obediência é mais consensual.

 

 

Uma epifania é um orgasmo mental. Talvez o problema do mundo seja falta de sexo...


Marina Ferraz





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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Quando foste a Paris

 

Fotografia: Ana Leonor Jesus


A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 


A Disney é um mundo. Não é? Fogo-de-artifício e paradas. Montanhas-russas, simuladores, carrosséis. Personagens acenando e entregando-se às fotos. Se o mundo inteiro fosse como a Disney, talvez fossemos todos mais felizes.

 

E Paris? Mon Dieu! Essas ruas de casas retas, com os seus telhados azulados e as suas flores nas varandas. Essa torre magnânima, que cumprimenta a cidade pela noite, piscando-lhe o olho. Esse rio, que corre por entre as luzes, deixando a sede da repetição constante da viagem.

 

Há uma Mona Lisa que sorri levemente, enigmaticamente, no fundo de uma sala de pinturas extraordinárias. Vénus perdeu os braços, mas não o encanto. E cada passo é um sonho de alguém, pendurado na parede, esculpido em pedra.

 

Paris é o mundo dos imortais. Imortaliza-nos, também, deixando-nos pedaços de carne nos vértices das pirâmides do Louvre. E ecoa o silêncio dos nossos pensamentos pelos Champs-Élysées, encontrando-lhes a tónica junto do Sacré Couer ou de Notre Dame. Os sonhos mais loucos têm lugar no Arco do Triunfo, símbolo da conquista do mundo. Os mais devassos ainda dançam cancan no Moulin Rouge.

 

A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 

Paris é manifesto. Palco mundano de milhares de almas descontentes com o destino do mundo. Cenário da discordância para os que entendem a distância que separa os nossos direitos das direitas. As suas ruas são pisadas por gente sã, que defende a liberdade. Liberté, egalité, fraternité. As vozes dos fantasmas ecoam. As dos vivos perpetuam o que é eterno. A frase. A ideia. O desejo. Esse. De Liberdade. A cidade inteira grita, canta, sabe. Tem asco às ditaduras. Se o mundo inteiro fosse como Paris, talvez fossemos todos mais felizes.

 

Nos meus olhos, o futuro é cinzento.

 

Não quero um futuro cinzento. Nem para mim. Nem para ti. Nem para ninguém.

 

Quero a Luz de Paris nas nossas vidas. Com um pouco do glitter e da magia da Disney. Quero a Liberdade. E a Equidade (já que a Igualdade é utópica). E a Fraternidade. E Paz. Todos esses clichés que as aspirantes a Miss Universo proclamam. Mas de coração.

 

A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 

Sorrio. Estás nessa cidade que eu amo. E és essa cidade que eu amo.

 

Quero que aproveites a viagem. E que sejas feliz.


Marina Ferraz





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terça-feira, 14 de setembro de 2021

FilhXs da mãe

 



A minha mãe diz que teve três filhos. Mas não teve. Teve um filho. E duas filhas. Talvez, num primeiro momento, pareça que isto faz pouca diferença. Deveria fazer pouca diferença. Mas não é esse o mundo que temos.

 

 

Da burca à Playboy, passando pelo assédio, pela violação, pelas discussões intermináveis sobre a prostituição, pela objetificação, pela invisibilidade, pelas fontes oficiais, pela aniquilação histórica, pela condescendência, o gaslight, o mansplaining e saltitando, ainda, pelos patamares de “uma menina não faz isso”, que se consubstancia mais tarde no “ela comporta-se como um homem”.

 

Ser mulher é ser peça no jogo onde todas as regras foram feitas por homens e todas as peças são movidas por homens. E importa pouco que existam tantas formas de se ser mulher quanto o número de mulheres no mundo. Porque se reduz facilmente o universo do feminino às púdicas e às putas. Às que são para comer e às que são sapatonas. Às que são dóceis e às que são cabras.

 

É sistémico!

 

Num mundo onde ser homem é ser livre, há mulheres que escolhem ser homens. Nas crónicas, chamam-lhes frequentemente “mulheres de sucesso” ou o “rosto feminino das empresas”. O género refere-se, ressalta-se, salienta-se, sublinha-se... mulher... feminino... E elogia-se a referência. Sem notar. Sem perceber. Sem que se compreenda que, no final da linha, é para cumprir as cotas. Para dizer que se fez. Para que a publicação não possa ser acusada do machismo e misoginia, varrendo-as para debaixo dos tapetes de uma opinião pública mansa. Mas quem é que leu, alguma vez, “o rosto masculino das empresas”?

 

A pouco e pouco, é com estas estratégias que nos fazem acreditar que o mundo está melhor. Mais equitativo. Fazem-nos acreditar que o empoderamento feminino se faz, de leito em leito, de posto de chefia em posto de chefia. Juntamente com os tetos de vidro, varrem-se os cacos que constituem a desigualdade salarial para debaixo de outros tapetes. Aqueles que não são mágicos nem voam, mas que carregam a “magia” dos preconceitos de cada conto de fadas. E escondem-se estatísticas que nos mostram a disparidade nos cargos de chefia nas firmas... para evitar transtornos. E chama-se sempre a “senhora da limpeza” e o “advogado”, ainda que o contínuo seja um homem e o advogado use saias.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos.

 

 

Claro que, do meu irmão – homem – não posso dizer que se cole às lógicas da misoginia. A minha mãe criou-nos a todos para fazermos a cama e cozinharmos. Para limparmos a casa e lutarmos pelos sonhos. Criou três feministas. Mas... na adolescência, isto valeria ao meu irmão uma parede da cidade pintada, acusando-o de ser homossexual... Não é. Não é, porque não calhou ser. Se fosse, a minha mãe ainda o amaria com igual intensidade. Assim como eu. Assim como a minha irmã. Só que – feminista, em essência, – mesmo não sendo, disseram que era. O mundo é assim!

 

Por mais que o meu irmão represente – ou assim acho – algo de bom no mundo, quando a minha mãe diz que teve três filhos, eu penso: Desculpem. Não teve. Teve duas filhas e um filho. Não foi dentro das paredes que isto nos minou liberdades. A rua, no entanto, não é tão branda.

 

Ela teve um filho. E duas filhas.

 

Uma delas sou eu. Alguém que cresceu protegida pelos braços e ideias de uma mãe com valores incríveis. Que criou três feministas. Mas que o fez num mundo essencialmente machista e misógino que dificulta a vida a qualquer um que não integre a norma estreita (e dissimulada) de um status quo que perpetua a hegemonia masculina.

 

No meio de tudo isto, quando me sento com os meus irmãos, compreendo que somos todos filhxs da mãe. Estamos lá uns para os outros, cientes da necessidade de um equilíbrio que não existe... defendendo ideias muito semelhantes sobre o que a equidade deve ser.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos. Não teve. Teve duas filhas. E um filho. ´

 

Apesar de ser uma mãe incrível, que nos ensinou (e ensina todos os dias) a ser mais do que o espelho de um mundo pobre e podre, isso não pode fechar os olhos à realidade que se faz fora do colo e do embalo dos seus braços resilientes. E essa realidade diz-nos: ser mulher ainda faz diferença. E fará diferença enquanto as mulheres tiverem medo de andar sozinhas e de sair à rua durante a noite; enquanto as mulheres tiverem de se esforçar a dobrar para atingir uma posição de poder ou para receber uma remuneração justa; enquanto houver, no mundo, países que não permitem, sequer, que mulher aceda à educação e ao mercado de trabalho, fazendo delas pouco mais do que objetos para uso masculino.

 

Sobre nós? As filhas e o filho da minha mãe? Bem... somos muito diferentes uns dos outros... desenquadrados – e ainda bem!

 

Nenhum de nós nasceu no mundo certo! Não temos raiz, nem lugar onde encaixemos. A sorte que nos resta é que temos sempre – e sabemos que temos – o abraço uns dos outros... e o colo desta mulher que diz, referindo-se à sua maior concretização, que teve três filhos.

 

 

(mas não teve! Teve duas filhas e um filho...)


Marina Ferraz





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terça-feira, 7 de setembro de 2021

39

 

Fotografia: Nuno Sousa


Antes que cruzes a linha. Essa dos inta para os enta. Deixa-me dizer-te.

 

Não me entendas mal, eu sei que os enta não são a morte. E terei, por certo, muito tempo. Para olhar para ti. E te dizer. Vez após vez. Eu sei. Não me entendas mal. Mas quero dizer-to agora.

 

 

Humano, pacifista, senhor de decisões e dúvidas. Crente de todos os deuses e de nenhum. Observador de estrelas tangíveis e inatingíveis. Criador de sonhos no gravador de cassetes natalinas, alimentados no pasto de palavras e de atos.

 

Irreverente e ousado. Às vezes demais, mas ninguém traçou a linha. Descrente das linhas que se tentam traçar e de todos os “demais” que se enunciam, feitos de limites e mentes fechadas.

 

Leitor ávido. Aventureiro nato. Viajante do mundo. Às vezes ao embalo do vento, às vezes ao embalo da literatura. Gamer. Personagem da versão beta da vida. Experimentando tudo. Que é pelo sim, pelo não.

 

Intempestivo. Barulhento. Eternamente menino. Eternamente adolescente. Eternamente preso à saia da mãe que ainda é colo e abrigo. Lágrima engolida no embalo. Dor que sorri ao mundo. Riso que se arranca do peito dolorido dos outros e compreensão em estado puro.

 

Conhecedor das histórias dos pássaros-drone. E mapeador dos limites da estupidez na Terra plana. Mergulhador de documentários e construtor de palácios sagrados em mundo aberto.

 

Dono de palavras sábias. Como a peça do jogo de xadrez que, apesar de todo o conselho e opinião, quem move és tu. Como a farinha Maisena que, por pouca que seja, dá sempre para mais um.

 

Dono do gesto sábio. Como o convite para um café antes da violência. E o abraço, sem palavra, no luto. E o café, de tonalidade verde, servido em chávena fria, a meio da tarde, com o riso pendurado no recanto do carinho e da compreensão.

 

Homem. Além do menino. Além do adolescente. Homem. Aquele para quem olhei, de baixo para cima, como exemplo do que se deve ser neste planeta, onde tanta coisa não é o que deve ser. Aquele que me fez sentir compreendida e protegida, mesmo quando tudo era difícil. Aquele que acreditou plenamente que eu podia ser. Sem complemento. Aquele que foi O.

 

 

Antes que cruzes a linha. Essa dos inta para os enta. Deixa-me dizer-te.

 

Isto?

 

Não. Nada disto. Outra coisa. Uma coisa muito simples, que vem carregada de amor e de coisas que não têm nome para que possam escrever-se.

 

Isto:

 

Obrigada.


Marina Ferraz





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