A minha mãe diz que teve três
filhos. Mas não teve. Teve um filho. E duas filhas. Talvez, num primeiro
momento, pareça que isto faz pouca diferença. Deveria fazer pouca diferença.
Mas não é esse o mundo que temos.
Da burca à Playboy, passando pelo assédio, pela violação, pelas discussões
intermináveis sobre a prostituição, pela objetificação, pela invisibilidade,
pelas fontes oficiais, pela aniquilação histórica, pela condescendência, o gaslight, o mansplaining e saltitando, ainda, pelos patamares de “uma menina não faz isso”, que se
consubstancia mais tarde no “ela
comporta-se como um homem”.
Ser mulher é ser peça no jogo onde
todas as regras foram feitas por homens e todas as peças são movidas por
homens. E importa pouco que existam tantas formas de se ser mulher quanto o
número de mulheres no mundo. Porque se reduz facilmente o universo do feminino
às púdicas e às putas. Às que são para comer e às que são sapatonas. Às que são
dóceis e às que são cabras.
É sistémico!
Num mundo onde ser homem é ser
livre, há mulheres que escolhem ser homens. Nas crónicas, chamam-lhes
frequentemente “mulheres de sucesso”
ou o “rosto feminino das empresas”. O
género refere-se, ressalta-se, salienta-se, sublinha-se... mulher...
feminino... E elogia-se a referência. Sem notar. Sem perceber. Sem que se
compreenda que, no final da linha, é para cumprir as cotas. Para dizer que se
fez. Para que a publicação não possa ser acusada do machismo e misoginia,
varrendo-as para debaixo dos tapetes de uma opinião pública mansa. Mas quem é
que leu, alguma vez, “o rosto masculino
das empresas”?
A pouco e pouco, é com estas
estratégias que nos fazem acreditar que o mundo está melhor. Mais equitativo.
Fazem-nos acreditar que o empoderamento feminino se faz, de leito em leito, de
posto de chefia em posto de chefia. Juntamente com os tetos de vidro, varrem-se
os cacos que constituem a desigualdade salarial para debaixo de outros tapetes.
Aqueles que não são mágicos nem voam, mas que carregam a “magia” dos
preconceitos de cada conto de fadas. E escondem-se estatísticas que nos mostram
a disparidade nos cargos de chefia nas firmas... para evitar transtornos. E
chama-se sempre a “senhora da limpeza”
e o “advogado”, ainda que o contínuo
seja um homem e o advogado use saias.
A minha mãe diz que teve três
filhos.
Claro que, do meu irmão – homem –
não posso dizer que se cole às lógicas da misoginia. A minha mãe criou-nos a
todos para fazermos a cama e cozinharmos. Para limparmos a casa e lutarmos
pelos sonhos. Criou três feministas. Mas... na adolescência, isto valeria ao
meu irmão uma parede da cidade pintada, acusando-o de ser homossexual... Não é.
Não é, porque não calhou ser. Se fosse, a minha mãe ainda o amaria com igual
intensidade. Assim como eu. Assim como a minha irmã. Só que – feminista, em
essência, – mesmo não sendo, disseram que era. O mundo é assim!
Por mais que o meu irmão represente
– ou assim acho – algo de bom no mundo, quando a minha mãe diz que teve três
filhos, eu penso: Desculpem. Não teve.
Teve duas filhas e um filho. Não foi dentro das paredes que isto nos minou
liberdades. A rua, no entanto, não é tão branda.
Ela teve um filho. E duas filhas.
Uma delas sou eu. Alguém que cresceu protegida pelos braços e ideias de uma mãe com valores incríveis. Que criou três feministas.
Mas que o fez num mundo essencialmente machista e misógino que dificulta a vida
a qualquer um que não integre a norma estreita (e dissimulada) de um status quo que perpetua a hegemonia
masculina.
No meio de tudo isto, quando me
sento com os meus irmãos, compreendo que somos todos filhxs da mãe. Estamos lá
uns para os outros, cientes da necessidade de um equilíbrio que não existe... defendendo
ideias muito semelhantes sobre o que a equidade deve ser.
A minha mãe diz que teve três
filhos. Não teve. Teve duas filhas. E um filho. ´
Apesar de ser uma mãe incrível,
que nos ensinou (e ensina todos os dias) a ser mais do que o espelho de um
mundo pobre e podre, isso não pode fechar os olhos à realidade que se faz fora
do colo e do embalo dos seus braços resilientes. E essa realidade diz-nos: ser
mulher ainda faz diferença. E fará diferença enquanto as mulheres tiverem medo
de andar sozinhas e de sair à rua durante a noite; enquanto as mulheres tiverem
de se esforçar a dobrar para atingir uma posição de poder ou para receber uma
remuneração justa; enquanto houver, no mundo, países que não permitem, sequer,
que mulher aceda à educação e ao mercado de trabalho, fazendo delas pouco mais
do que objetos para uso masculino.
Sobre nós? As filhas e o filho da
minha mãe? Bem... somos muito diferentes uns dos outros... desenquadrados – e
ainda bem!
Nenhum de nós nasceu no mundo
certo! Não temos raiz, nem lugar onde encaixemos. A sorte que nos resta é que
temos sempre – e sabemos que temos – o abraço uns dos outros... e o colo desta
mulher que diz, referindo-se à sua maior concretização, que teve três filhos.
(mas não teve! Teve duas filhas e
um filho...)
Marina Ferraz
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