terça-feira, 26 de junho de 2012

O sentir das folhas brancas




Eu escrevo para pessoas de coração partido. Não porque tenha o meu coração destroçado mas porque sei como dói ter um coração quebrado e não sentir que alguém entenda.
Escrever é mesmo assim. É escolher viver de sentimentos, sejam eles quais forem. É oferecer a alma ao povo. É estropiar sentidos e espetar punhais de passado, vez após vez, no centro da ferida sarada.
E é verdade. Às vezes as palavras magoam. É uma escolha. É uma decisão que tomei cedo e por mim mesma. E, entre dias melhores e dias piores, é nessa decisão que encontro a força porque não acredito num mundo sem poesia.
Vou alimentar-me da minha dor. Vou alimentar-me dela enquanto não puder alimentar-me da minha felicidade, de uma forma tão pura e constante. É assim que sobrevive a escrita. Foi assim que se inventou a poesia. Foi assim que o mundo aprendeu a girar sobre si mesmo.
Vou alimentar-me da noite enquanto não houver dia e da escuridão enquanto não houver luz. Vou venerar a Lua e o Sol. Vou fazer vénias às estrelas e chamar a Natureza para me abraçar os medos. Vou alimentar-me dos medos, também. Vou retirar deles a força enquanto não houver paz. Vou viver uma morte sem vida neste caminho sem regra tomado pelo meu coração.
Nem todos podemos viver nos campos da vitória. Nem todos podemos procurar apenas o melhor da nossa alma. Escrever é aceitar o que existe. Viver a dor e a saudade. Viver a ternura e o carinho. Viver a mágoa e a desolação. Viver a alegria e o contentamento. Escrever é aceitar cada sentimento como igual e beber dele cada palavra.
Então, durante muito tempo, talvez até para sempre, vou alimentar-me da minha dor e da minha felicidade ou do meu sentimento, seja ele qual for. Por vezes, vão elogiar-me. Outras, vão criticar-me. Por vezes, vão atirar-me pedras e palavras duras. Mas está tudo bem. Porque, no fim, resta a consciência límpida, a decência e a paz de saber que não preciso de me alimentar da dor dos outros.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet 

terça-feira, 19 de junho de 2012

Filha da Noite



Também sou filha da noite. Sombra de estrelas e irmã dos ventos. Serva das marés e cortesã das horas. Vivo no cativeiro da Terra, humildemente acorrentada às maravilhas do mundo e às vontades insaciáveis do meu coração.
Ouve  e vê com cuidado. Ouve mesmo esse silêncio que julgas despojado de tudo. Vê mesmo esse espaço desfeito onde nada se ergue e nada se assume. O vazio é apenas feito de imaginação mortal. Vivemos rodeados de tanto quanto nos cabe nos sonhos. Somos apenas cegos e surdos. Incapacitados pelos olhos cheios de ciência e as mãos fechadas em redor de teorias.
Também sou filha das trevas. E são as trevas que trago no meu olhar despido de luz. Mas, não duvides: ainda amo o sol. Amo-o como se ama alguém  muito querido que sabemos que não podemos ter. Na certeza insensata de que estaremos sempre no outro extremo da vida. Na saudade que vem da consciência de que toda a luz tem sombra.
Não tenhas medo! Faço parte da escuridão e corro com os ventos, atiço as marés e transformo segundos em anos que não passam, que congelam e permanecem. Mas estou aqui e também sou menina. Também sou criança. Também sou tua... E morreria para que não tivesses medo de nada. Morreria para que fosses feliz.
Sim. É verdade. Eu sou o que fica sombrio atrás do brilho de uma estrela. Sou o que fica invisível depois da onda ter rebentado na praia. Sou o que desvanecesse no ar quando a brisa sopra, no último rasgo de sol. Sou o que fica esquecido por entre memórias que se esbatem e o rosto que se perde na multidão que percorre as ruas.
Também sou filha da noite e irmã dos ventos e serva das marés. Mas, na maioria dos dias, sou apenas uma rapariga. Uma rapariga quebrada e indolente, apaixonada por uma luz que se afasta um pouco mais a cada segundo. E o Inverno brota-me no peito, acorrenta-me ao gelo dos sentidos e torna-me escrava do meu amor.
Sou filha da noite mas não lhe pertenço. Não sou dela e não sou minha. Vivo cativa, escravizada, de rojo aos pés do amor. Pertenço ao meu coração. Pertenço ao sentir insensato que me corre nas veias. E estou só... porque nenhum vento e nenhuma maré assume o negrume da dor que trago no peito. O negrume que vence a noite e as trevas... e onde não há luz nem sombra... mas apenas solidão.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 12 de junho de 2012

Impossíveis



Ela fez o impossível. Acordou. Acordou na madrugada pardacenta de uma noite que ainda não vira o fim. Chamou a alma e a dor. Disse-lhes "bom dia" com desapego. Desceu as escadas, bebeu um café forte e outro mais forte a seguir. E abriu os olhos à vida, num espreguiçar guloso de quem deseja mais uns minutos de cama.
Ela fez o impossível. Agarrou nas folhas rabiscadas da sebenta. Atirou os livros gastos do uso para dentro da mala. Foi para o canto mais longínquo da casa trabalhar. Pousou os olhos nas coisas, levou a mão à caneta e simplesmente fingiu que o mundo acabava ali. Que começava nas frases mais simples e se estendia às definições mais difíceis de encaixar na mente.
Ela fez o impossível. Passou as mãos nos cabelos, confusa, e prendeu-os, aproveitando cada movimento para libertar os músculos tensos das muitas noites de insónia. Respirou fundo. Ouviu o silêncio e cansou-se dele com a facilidade óbvia de quem tem muito para fazer.
Ela fez o impossível. Comeu à mesa. Falou de trivialidades. Fingiu que se importava com o estado do tempo ou do país. Fingiu que queria saber qual o estado do seu signo para aquele dia. Riu de uma piada que não tinha piada alguma.
Ela fez o impossível. Trabalhou a tarde toda e noite fora. Enquanto as estrelas caíam e a lua descia no horizonte alado de um mar que ficava à distância do esquecimento. Ignorou o mundo. Ignorou a rua, onde ocasionalmente passava gente, falando alto ou uma ambulância com o tom de aviso.
Ela fez o impossível. Fechou os livros e subiu as escadas e caiu na cama. Fechou os olhos, despediu-se da dor e da alma, com um "boa noite" ternurento. Sabia melhor do que ninguém que diria "bom dia" alguns minutos depois.
Ela fez o impossível. Muitas vezes. Por tempo demais. Mas era insuportável continuar. Então ela esboçou um sorriso de lágrimas nos olhos e pensou nele, enquanto a solidão pesava e a saudade lhe acarinhava o rosto que humedecia. Pensou nele e nos motivos que tinham feito da sua vida um quase-nada que todos invejavam. Pensou nele e deixou escapar, no tom de uma oração, um "amo-te" gaguejado e entrecortado no choro.
A insónia chegou, por fim. Lavou-lhe o cansaço com as lágrimas e não a deixou dormir até chegar a alvorada. Então, ela fez o impossível: acordou de um sono por dormir na madrugada pardacenta de uma noite que ainda não vira o fim. E começou mais uma jornada de impossibilidades. Lutando contra os pensamentos e contra o tempo e contra a vida.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


terça-feira, 5 de junho de 2012

Ficar bem



Não! Não te preocupes! Eu vou ficar bem. O mundo vai ruir e o chão que me apoia os pés vai ceder. Os céus vão quebrar e as florestas de sonho vão ficar secas. Os sonhos vão deixar-me sozinha por uns tempos. Mas eu vou ficar bem. Não precisas de te preocupar...
As coisas más acontecem. Nascem das frestinhas de incerteza que sempre existem nas madeiras sólidas nas quais se constroem as esperanças. E crescem com o tempo, como se ansiassem por se tornar pequenas maldições do quotidiano. Elas acontecem a toda a gente. Mesmo às melhores pessoas. Mesmo às piores. Ninguém está livre da dor. Ninguém está livre dos contratempos. Sofrer é o único direito verdadeiramente universal.
Mas eu vou ficar bem! Vou ficar bem porque quando não houver chão, vai haver asas. Porque as asas são feitas de amor. E tudo é mais fraco do que o amor: mesmo o céu, mesmo o mundo, mesmo os sonhos. Então, eu vou ficar bem! Porque amo o suficiente e tenho as asas negras abertas.
O mundo vai ruir. Eu vou chorar. Eu vou gritar. Eu vou cair um pouco antes de me lembrar que o chão cedeu mas o céu existe. E, eventualmente, eu vou superar. Porque nenhuma destruição é mais forte do que a vontade de construir novamente. Porque nenhum mal é mais forte do que a minha alma. Porque os chãos ressurgem e os sonhos regressam. Porque amo e o amor nunca é ruína. Porque eu quero ser feliz!
Então, não te preocupes. Vai ficar tudo bem. Mesmo que, pelo caminho, eu sofra muito. Mesmo que, até encontrar a felicidade, eu tenha de abraçar a dor como minha igual e recebê-la no meu peito, com ternura. Quando tudo acabar, eu vou ficar bem. E, mesmo se esse dia tardar, eu não vou perder a esperança. Hei-de ser feliz, nem que o seja somente quando, num último suspiro, a morte me tomar nos braços e me fechar os olhos para o mundo que ruiu e as esperanças vãs que me marcaram a vida.
Não te preocupes. Eu vou ficar bem...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet