terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sismo

 

Fotografia: João Almeida Firmo

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Vou dizendo a mim mesma que não quero mudar ninguém. Repito para dentro o mesmo mote que me move a vida. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Mas cismo. E dá vontade de dar uns abanões por aí. Abanar o chão. Abanar as pessoas. Fazer com que entendam que não é sobreviver. Mas sobre viver.

 

 

A terra tremeu. Eu não dei por que ela tremesse. Mas tremeu. Não dei por isso, provavelmente, porque tenho precisado de dias de 48 horas para acabar o trabalho. Porque tenho contas para pagar e o que sobra depois de pagos os impostos nem sempre chega para o resto. Porque quando me deito, em vez de dormir, como toda a gente, durmo com a conta das próximas 48 de que preciso para continuar a fazer o mesmo, e já a arrepender-me do prejuízo que será fechar os olhos por três, quatro, cinco horas... só para não fritar mais o único neurónio que ainda se arrasta para a função, marcando ponto com os filamentos trémulos e já a emborcar um café triplo.

 

Estava ocupada a fazer o que ninguém faz por mim. Descansar. Para depois me ocupar de fazer o que ninguém faz por mim. Trabalhar. A pensar na possibilidade de fazer o que ninguém faz por mim. Viver. E a lembrar-me de que, provavelmente, também não estou a fazer isso por mim. Porque tenho contas para pagar. E o que sobra depois de pagar os impostos nem sempre chega.

 

Segui pelo meu dia como sigo pelos dias. Sem querer saber de que a terra tivesse tremido. Lendo, aqui e ali, sobre isso. Desconhecendo ainda o impacto que um sismo pode ter nas pessoas. Mas tem. Tanta gente me perguntou se o tinha sentido, que dei por mim a repetir para dentro. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Até à exaustão. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Porque o monstro dentro de mim queria soltar-se da boca. Porque o monstro dentro de mim queria abanar as pessoas. A terra. O planeta inteiro. E perguntar: sentiste quando te roubaram a possibilidade de viver a vida que querias? Sentiste quando te mataram a esperança? Sentiste quando te obrigaram a ser escravo do teu país? Sentiste quando definhou a tua luz, porque eles a apagaram num sopro, como quem celebra o aniversário? Não perguntei isto a ninguém! Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser.

 

Estou a tremer. O chão parece-me estático. As pessoas também. E estou a tremer. Um pouco de raiva. Um pouco de dor. Um pouco porque o cansaço faz com que se sinta frio, mesmo que estejam dias quentes lá fora. Não sei se estão. A minha casa é fria porque mal apanha sol... e eu tenho de trabalhar as ditas 48 horas dos dias estendidos, porque o meu país me impede de existir condignamente a menos que o faça.

 

As pessoas, meio assustadas, reúnem agora um conjunto de estratégias de sobrevivência... e perguntam, baixinho, como se não quisessem assustar as placas tectónicas: Porque é que isto aconteceu? É que foi um sismo com uma magnitude de 5,3 na escala de Richter... Porque é que isto aconteceu?...

 

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Provavelmente fui eu. Apetece-me abanar qualquer coisa. Alguém. Mas quem sou eu? Fico por aqui. A cismar. A tremer. A pensar. Talvez se a tirania se medisse na escala de Richter, pudéssemos ser nós o terramoto.

 

Não para tentar sobreviver. Para tentar viver.

 

A sobreviver estamos nós... e para quê?

Marina Ferraz




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