terça-feira, 26 de abril de 2022

Fruto de um chão deserto

 


Todo o céu é mais distante quando estás no chão. Árvore tombada. Pedaços soltos de terra na face que fixa remotamente o azul.

 

 

Tenho a pele rasgada. É isso que sinto, no embate com o solo. A dor que dói não dói. Sou una com a terra que me recebe. E despedaço-me em mil fragmentos. Sou pó sobre o pó. Não existo.

 

Conto - lábios beijando o ar numa dança de palavras mudas – que um dia me enterraram, para me sufocar. Morreste? Pergunta-me. Morri. E de todas as vezes que morri, descobri que me apodrecia a casca para me germinarem as entranhas. Semente. E rasguei o caixão desse solo fértil.

 

Sair da terra foi limpar o rosto com as mãos. Soltá-las. Espreguiçar-me lentamente, arrastando o segundo movimento no tempo da expiração e da inspiração. Até que, já inspirada, fosse capaz de exalar todas as tormentas, para esticar o braço um pouco mais, de dedos livres, agarrando o fruto de um chão deserto.

 

Alimentei-me desse fruto. Pera madura, roubada dos braços da Mãe ou segredo incauto, na forma de palavras tristes. Mas não se despem as árvores de fruto sem despir a alma de ideologias mundanas. E, trincando o doce do fruto, é preciso salivar o veneno dos dias que se acumulam em tantas discórdias e incoerências.

 

Agarrei o fruto. Cortei-o com a navalha velha de um homem do campo, cujas mãos sempre sabiam a vindima e tabaco. Pendurei um gomo de riso no vislumbrar de estrelas semeadas no teto dos estúdios de dança.

 

E disse. Sem dizer. Todo o céu é mais distante quando estás no chão. Mas depressa percebi que a árvore nunca tombou. Porque, encontrando o ponto de apoio, na raiz, bailou com o vento. E, quando o vento parou, novamente deu por si na floresta morna que fica entre a realidade dos homens e a dos Deuses.

 

 

E eu tinha esquecido como era... ver as estrelas. Mas lembrei-me. Ali. No chão. Lembrei as estrelas e o agitar das árvores entoando passos compassados e crus de salsa e tango. Lembrei as tonalidades do vento, seu guia e tutor. Pousei os pés. No chão. Pousei-os da ponta do dedo ao calcanhar. Do calcanhar à ponta do dedo. Em vez de dançar, caminhei... tombei. Espreguicei-me. Colhi o fruto. Ergui-me. Renasci.

 

Natural e leve. Irmã do dia que se anunciava. Avancei. Um passo. Len    to. Nos ponteiros mudos. Rodopiando com eles... qual folha suspensa na teia.

 

O relógio era o sol. Enevoaram-se-me os olhos.

 

 

Era eu o fruto do chão deserto. Acordando. Pouco a pouco. À espera de colher, da vida, a doçura...

 

 


 Marina Ferraz





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terça-feira, 19 de abril de 2022

Um corpo de água

 



Deixa fluir. É isso que digo a mim mesma. Mas não me ouço. Falo baixinho, nos meus pensamentos. Peço-me a repetição das palavras. Mas eu nunca repito. Nem mesmo para eu própria (me) entender.

 

 

 

Dancei. O corpo era chumbo denso. E disseram-me. Baixa os ombros. Flete as pernas. Ergue os braços. O corpo era chumbo denso. Baixar os ombros era fácil. Tinham o peso do mundo. Fletir as pernas era fácil. Eu tinha o peso do desassossego. Erguer os braços... bem... para que céu?

 

A música continuava a tocar. E os movimentos eram coordenados com o ponteiro do relógio. Circulares. Calcanhar fugindo do chão, como se eu estivesse a aprender a voar. Simplicidade dos movimentos desusados. Compreender que nunca fui ser de pé assente no chão.

 

Azamboada das piruetas, descobri-me dona da rotação da Terra. O corpo era chumbo denso. O meu centro de gravidade era a mágoa. Escorrendo. Na pele. Quente. Cada toque uma espécie de deserto. No anoitecer. Quando tudo é gelo. E queima.

 

Algures, o chão. O encontro com o chão. O embate. A queda propositada. Corpo rígido. E a voz, na mente. Deixa fluir.

 

Deixa fluir. É isso que digo a mim mesma. Mas não me ouço. Falo baixinho, nos meus pensamentos. Peço-me a repetição das palavras. Mas eu nunca repito. Nem mesmo para eu própria (me) entender.

 

Mas irrompes pelo palco. Sais das notas da música que toca. E, de repente, já não é a minha voz. Nem a dele. Dizendo. Baixa os ombros. Flete as pernas. Ergue os braços. De repente, é a tua. E o corpo é uno. E escrevo o poema outra vez. Sobre a pele. Vazia. De mãos ausentes. O corpo tem vontade própria. O corpo foge-me. Vai. Ao teu encontro. Mergulha em ti.

 

Flui.

 

Sou um corpo de água, no qual eu mesma me afogo. E vou. E caio. E afundo. E cedo. E sou.

 

 

Deixa fluir. Deixo. O chumbo fica liquefeito. Escorro pelas frestas do soalho. Um corpo de água. Vou, esquecendo que fui. Vou, esquecendo que foste. Um corpo de água. Imersa nele, esqueço a linearidade do tempo e o centro de gravidade da Terra.

 

Deixo fluir.

 

 

Com todos os momentos diluídos no espaço do que eu sou, baixo os ombros, flito as pernas, ergo os braços.

 

 

Abraço a memória. E danço numa sala sem espelhos.



 Marina Ferraz





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terça-feira, 12 de abril de 2022

Herança

 



Não tenho muito dinheiro. Não tenho muitos bens. Não tenho muito cuidado com a saúde. E peço desculpa a quem ficar. Não deixarei muito...

 

 

Desculpa. Sei que é de bom tom cultivar, na vida, algo que fique depois do seu fim. Mas eu não me preocupei – não preocupo! – muito com isso.

 

Os meus dias são feitos em redor das palavras. Acordo e adormeço com elas. Moedas caem no meu cofre e entregam-se ao custo de vida. Viver é caro. Pago o preço do essencial. Do teto sobre a cabeça. Das mercearias, quase sempre escrutinando a promoção da semana, o cupão de desconto e investindo, mesmo assim, nas marcas da casa. Uso a roupa até estar gasta e os sapatos até que a sola esteja fina ou quebre. Vou a este e aquele jantar ocasionais, e não olho aos preços. Mas costuma sobrar... Mês. No fim das contas pagas.

 

Duvido, por isso, que quando fechar os olhos para descansar da felicidade que foi viver o meu sonho, tenhas dinheiro à espera, para te preencher a conta e te aligeirar a jornada. Prometo que não te deixarei também dívidas. Ao menos isso. Mas não posso garantir nada mais. Fica com os meus cadernos, se quiseres. Com a caligrafia dançante e irregular, que sempre dependeu do dia, da caneta e da vontade, como se eu fosse mil entidades distintas e dissonantes.

 

Os meus dias são feitos de momento. Não me poupo aos açúcares, às gorduras, ao álcool. Não me poupo a nada que me apeteça. Não quero morrer saudável. Digo-o. Há quem ria. A frase decorada e tão minha. Não quero que digam, quando eu morrer, “coitadinha, era tão saudável”. Não o dirão. Porque não era. Como o que quero. Bebo o que quero. Faço o que quero. Tão depressa encho a boca de chocolate, como de vinho ou impropérios. Faço questão de ser livre, sem me importar muito. É em não me importar muito que encontro a minha forma de me importar muito. Mas só com o que importa. Viver plenamente, nesses pequenos-grandes prazeres que me tornam completa.

 

Se eu morrer de repente, sabe que guardo os chocolates na gaveta do fundo da cozinha. E na fruteira. Talvez encontres algumas garrafas de vodka na gaveta dos legumes do frigorífico. Podes ficar com elas.

 

Controlada, mas livre, tenho a certeza de que tenho as veias e artérias de uma pré-velha. Está tudo bem. Tenho a certeza de que o meu fígado me detesta e se torna católico a cada shot de absinto. Diz “credo” muitas vezes. Os olhos são míopes e obrigados a fitar a luz azul do computador por tantas horas, que quando os fecho ainda vêem uma tela luminosa. O meu coração. Bem. De pouco serve senão para a arte descompassada da arritmia. E imagino que esteja cheio de crateras. Como a lua.

 

Quando eu morrer, não esperem que possam tirar deste corpo muito mais do que um ou outro osso que esteja inteiro. Não acho que vá ser elegível para transplantes e cirurgias que salvam vidas. Peço perdão. É egoísmo, eu sei...

 

Tudo o que tenho é a vida. Feita de maus hábitos, que só deixarei com a morte. De pessoas a quem nada deixarei depois dela. Nem filhos hei de deixar, vê bem... não deixarei quem leia este texto e se dececione com a escassez da herança.

 

Desculpa. Escolhi, da vida, somente a vida. E, por isso, foi só vida que tive. Quando ela acabar, não sobrará muito...

 

Mas deixo-te este texto. Porque te amo.

E mil poemas onde te dediquei o coração esburacado.

E um sem fim de momentos, onde a minha droga foste tu.

 

Escolhi, da vida, somente a vida. Não tenho muito dinheiro. Não tenho muitos bens. Não tenho muito cuidado com a saúde. E peço desculpa a quem ficar. Não deixarei muito...

 

 

Mas, quando eu já não estiver, a minha herança será essa. A de ter vivido. Plenamente.

 

Fica com essa lição. E sê feliz.


  Marina Ferraz





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terça-feira, 5 de abril de 2022

O crepitar do fogo

 


 Para o meu pai


 

Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.


 *


Menino descalço. Caracóis meio alourados, pé na terra. Senhor de muitas artes que se converteriam em talentos. Olhos verdes. Tinha a rocha e o ferro como sobrenomes. Nascera sob a regência do fogo. Carneiro de signo e homem de essência. Destinado a cuidar dos outros.

 

Se lhe perguntassem, naqueles dias, era feliz e leve. O sol africano beijando-lhe a pele nua e trigueira. A família rindo, por entre dificuldades e histórias da Metrópole longínqua. O sabor do coco no Caril e do amendoim na Moamba. As carabinas pousadas na porta, brinquedo inegado e destinado à caça...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, criança selvagem, aprendendo a ser gente, ele já estava lá, dentro da sua alma contente com os dias.

 

Os desígnios das Florestas são sábios, mas o homem é imaturo e tonto. Se, dos ciclos da Mãe retira sabedoria, dos ciclos da sua espécie faz tortura. O ciclo é o mesmo. Tudo vive. Tudo morre. Um dia, ainda jovem, entrou-lhe o ciclo da morte pela porta da casa cuja porta nunca se fechava. Ficou sem pai. Lançando sobre os irmãos e a pobre mãe o olhar abnegado, verde como a copa dos embondeiros, e alicerçando a vida nos ombros, largos como o tronco dos embondeiros, tomou a obrigação por sua. Cuidar. Cuidar como o fogo cuida das gentes, protegendo-as e alimentando-as.

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, jovem adulto, aprendendo a ser pai-sem-ser, ele já estava lá, dentro da sua alma lutadora.

 

Pegou nas armas e lutou na guerra. Disparando armas de fogo. Gente contra gente. Nunca acertou em ninguém. Diz. Foi sempre a arma do colega, do amigo, do outro soldado. Cumpriu o papel. Esse. De defender o indefensável. Depois, no mês do seu nascimento, alguém colocava um cravo rubro numa espingarda... e as verdes colinas viravam sete colinas... e a condição de homem virava condição de cidadão de segunda. O fogo disparado pelo cravo foi, talvez, a bala mais cruel. Tinha as roupas do corpo e não era, já, a criança despida. Nem criança. Nem despida. Mas era só o que restava de tudo o que um dia tivera, pé no chão e riso à mesa cheia...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, retornado, aprendendo a aceitar as circunstâncias, ele já estava lá, dentro da sua alma descontente.

 

Apaixonou-se. Apaixonou-se por uma mulher que era toda Floresta. Selvagem. Precisou de a segurar num banco, cativa sob a chuva copiosa, para a convencer a marcar uma data para o casamento. Jovial, cavalheiro e charmoso, foi com ela que construiu uma família, sem se deixar assustar pelo sogro, que lhe mostrara a arma da caça antes do “bom dia” ou pelo olhar da sogra, ave atenta a todos os seus movimentos, estendendo a asa sobre a menina, filha única e de temperamento rebelde.

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, adulto em princípio de vida, aprendendo a pessoa que nascera para ser, ele estava lá, dentro da sua alma feliz.

 

Nasceriam três filhos desse amor. Por entre viagens, que o levavam de volta à terra alegre de seu nascimento, onde já não pertencia, trazendo-o de volta à terra da seriedade de um povo triste, onde não sentia pertencer. Pertenceu, então, aos seus. E quis dar-lhes tudo o que não teve, com o mesmo fogo que o levara a fazer tudo o resto. Tempestades e bonança. Idas e regressos. Palavras e silêncios. Todos condensados em momentos breves, de cavalitas à mais pequena, conversas sérias com os mais velhos...

 

Provavelmente ele não ouvia o crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, envelhecendo, sendo sem se questionar e questionando tudo o resto, ele estava lá, dentro da sua alma madura.

 

*


Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na tua alma.

 

Toma a forma de força, ainda que ganhe beleza nos momentos de fragilidade. E tem um toque de calor que vem naquele abraço, meio corrido, sempre que chego e saio.

 

Trago no sangue a tua África – fogo que ouço crepitar em ti – e a tua história, que é contada pelos estalidos dessa lenha que arde e arde e arde... e te faz inteiro no mundo.

 

Aprendo, contigo, a ser como o embondeiro, embora os meus olhos não tenham o verde das copas. Os meus ombros terão, por certo, a largura dos troncos...

 

Disparo as armas. Não as de fogo, mas outras. Luta permanente pelos meus dias, que tentam verter-me o sangue – que é também teu – de tantas formas inusitadas e mordentes. Venço sempre. Porque perder não é opção...

 

Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo. Eu ouço. Porque o teu fogo crepita ao ritmo do meu. Tens rocha e ferro no apelido. Eu tenho a dádiva e o ferro, esse que vem de ti e é teu. Somos forjados a fogo nas histórias dos outros. Esta, que é tua, também é minha.

 

Avanço descalça pelo chão. Honro a Natureza, que é Mãe. Conto-lhe que o meu pai és tu. Ela diz que talvez não ouças o crepitar do fogo. Esse que mora na tua alma. Sossego-a e digo que não importa... eu ouço!


 Marina Ferraz





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