Para o meu pai
Eu não sei se ouviste o crepitar
do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou condenação.
Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente plantado na
tua alma.
*
Menino descalço. Caracóis meio
alourados, pé na terra. Senhor de muitas artes que se converteriam em talentos.
Olhos verdes. Tinha a rocha e o ferro como sobrenomes. Nascera sob a regência
do fogo. Carneiro de signo e homem de essência. Destinado a cuidar dos outros.
Se lhe perguntassem, naqueles
dias, era feliz e leve. O sol africano beijando-lhe a pele nua e trigueira. A
família rindo, por entre dificuldades e histórias da Metrópole longínqua. O
sabor do coco no Caril e do amendoim na Moamba. As carabinas pousadas na porta,
brinquedo inegado e destinado à caça...
Provavelmente ele não ouvia o
crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, criança selvagem, aprendendo a ser gente,
ele já estava lá, dentro da sua alma contente com os dias.
Os desígnios das Florestas são
sábios, mas o homem é imaturo e tonto. Se, dos ciclos da Mãe retira sabedoria,
dos ciclos da sua espécie faz tortura. O ciclo é o mesmo. Tudo vive. Tudo
morre. Um dia, ainda jovem, entrou-lhe o ciclo da morte pela porta da casa cuja
porta nunca se fechava. Ficou sem pai. Lançando sobre os irmãos e a pobre mãe o
olhar abnegado, verde como a copa dos embondeiros, e alicerçando a vida nos
ombros, largos como o tronco dos embondeiros, tomou a obrigação por sua.
Cuidar. Cuidar como o fogo cuida das gentes, protegendo-as e alimentando-as.
Provavelmente ele não ouvia o
crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, jovem adulto, aprendendo a ser pai-sem-ser,
ele já estava lá, dentro da sua alma lutadora.
Pegou nas armas e lutou na guerra.
Disparando armas de fogo. Gente contra gente. Nunca acertou em ninguém. Diz.
Foi sempre a arma do colega, do amigo, do outro soldado. Cumpriu o papel. Esse.
De defender o indefensável. Depois, no mês do seu nascimento, alguém colocava
um cravo rubro numa espingarda... e as verdes colinas viravam sete colinas... e
a condição de homem virava condição de cidadão de segunda. O fogo disparado
pelo cravo foi, talvez, a bala mais cruel. Tinha as roupas do corpo e não era,
já, a criança despida. Nem criança. Nem despida. Mas era só o que restava de
tudo o que um dia tivera, pé no chão e riso à mesa cheia...
Provavelmente ele não ouvia o
crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, retornado, aprendendo a aceitar as
circunstâncias, ele já estava lá, dentro da sua alma descontente.
Apaixonou-se. Apaixonou-se por uma
mulher que era toda Floresta. Selvagem. Precisou de a segurar num banco, cativa
sob a chuva copiosa, para a convencer a marcar uma data para o casamento.
Jovial, cavalheiro e charmoso, foi com ela que construiu uma família, sem se
deixar assustar pelo sogro, que lhe mostrara a arma da caça antes do “bom dia”
ou pelo olhar da sogra, ave atenta a todos os seus movimentos, estendendo a asa
sobre a menina, filha única e de temperamento rebelde.
Provavelmente ele não ouvia o
crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, adulto em princípio de vida, aprendendo a
pessoa que nascera para ser, ele estava lá, dentro da sua alma feliz.
Nasceriam três filhos desse amor.
Por entre viagens, que o levavam de volta à terra alegre de seu nascimento, onde
já não pertencia, trazendo-o de volta à terra da seriedade de um povo triste,
onde não sentia pertencer. Pertenceu, então, aos seus. E quis dar-lhes tudo o
que não teve, com o mesmo fogo que o levara a fazer tudo o resto. Tempestades e
bonança. Idas e regressos. Palavras e silêncios. Todos condensados em momentos
breves, de cavalitas à mais pequena, conversas sérias com os mais velhos...
Provavelmente ele não ouvia o
crepitar do fogo. Mas, nesse tempo, envelhecendo, sendo sem se questionar e
questionando tudo o resto, ele estava lá, dentro da sua alma madura.
*
Eu não sei se ouviste o crepitar
do fogo. Mas é inegável. Esse que acalenta e queima. Chama de vida ou
condenação. Eu não sei se ouviste o crepitar do fogo, mas ele está eternamente
plantado na tua alma.
Toma a forma de força, ainda que
ganhe beleza nos momentos de fragilidade. E tem um toque de calor que vem
naquele abraço, meio corrido, sempre que chego e saio.
Trago no sangue a tua África –
fogo que ouço crepitar em ti – e a tua história, que é contada pelos estalidos
dessa lenha que arde e arde e arde... e te faz inteiro no mundo.
Aprendo, contigo, a ser como o embondeiro, embora os meus olhos não tenham o verde das copas. Os meus ombros
terão, por certo, a largura dos troncos...
Disparo as armas. Não as de fogo,
mas outras. Luta permanente pelos meus dias, que tentam verter-me o sangue –
que é também teu – de tantas formas inusitadas e mordentes. Venço sempre. Porque
perder não é opção...
Eu não sei se ouviste o crepitar
do fogo. Eu ouço. Porque o teu fogo crepita ao ritmo do meu. Tens rocha e ferro
no apelido. Eu tenho a dádiva e o ferro, esse que vem de ti e é teu. Somos
forjados a fogo nas histórias dos outros. Esta, que é tua, também é minha.
Avanço descalça pelo chão. Honro a
Natureza, que é Mãe. Conto-lhe que o meu pai és tu. Ela diz que talvez não
ouças o crepitar do fogo. Esse que mora na tua alma. Sossego-a e digo que não
importa... eu ouço!
Marina Ferraz
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