terça-feira, 24 de novembro de 2020

A pessoa que eu quero ser

 



Uma coisa que nunca compreendi é a razão que leva as pessoas – podendo ser o que quiserem – a decidirem ser cruéis. Penso sempre que algo de muito errado terá certamente acontecido para que os corações ficassem frios, vazios de emoção ou empatia, levando consigo os traços de humanidade e substituindo-os por uma crueza que espelha a rispidez da vida e do mundo.

 

Tenho pena dessas pessoas. As que escolhem ser más. Tenho penas delas. Normalmente não lhes digo. Mas tenho. Tenho pena porque sei que existem eficazes estratégias entre os demónios do tempo, nos caminhos humanos, para azedar as palavras na boca e os gestos nas mãos. E a dor que se inflige ao outro é tantas vezes a nossa. E a ofensa que se diz ao outro é tantas vezes parte da nossa incapacidade de ver algo bom em nós; parte da nossa baixa autoestima.

 

Num momento ou outro, já todos fomos essa pessoa. Essa que - podendo ser o que quiser – decide ser cruel. Nem todos o fizemos de propósito. Alguns terão feito isto por inexperiência. Outros, por necessidade de retaliação. Outros ainda esqueceram, por segundos, que devem perguntar a si mesmos: quem é a pessoa que eu quero ser?

 

Muitas pessoas não sabem isto. Muitas pessoas não pensaram nisto. Na verdade, a maioria das pessoas – presas à noção de “personalidade” – discordará. Mas eu acho que a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. Há um momento, quando a consciência de estarmos vivos se abate sobre os nossos ombros, no qual o nosso papel secundário na determinação do “eu” desaparece, para dar lugar a um espaço onde somos mestres, protagonistas e artesãos da nossa própria conduta e da nossa própria forma de ser. Definimos quem queremos ser. E quem queremos ser importa porque pode mudar tudo, de um segundo para o outro.

 

Claro! A observação ajuda, mas não é tudo! O espírito crítico impera e o raciocínio treina-se. Olhar e pensar sobre o que se vê é tantas vezes o que nos transforma nessa pessoa que querermos ser. Tantas vezes, por olharmos para a crueldade vazia de quem podendo ser o que quiser escolhe mal, decidimos, antes de tudo, o que não queremos ser. E o resto constrói-se, peça a peça, gesto a gesto, palavra a palavra.

 

A pessoa que eu quero ser, por exemplo, é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou. Todos os dias, quando chego a casa, ela recebe-me à porta. Esfrega-se nas minhas pernas, feliz com o meu retorno. Ela não acha que eu a abandonei nem que fica aborrecida pela minha ausência: parece acreditar que todas as minhas saídas são imperativas e que ansiei tanto por voltar a vê-la como ela queria voltar a ver-me.

 

Acreditando que sou dedicada, a minha gata não leva a mal se eu a tiro do colo para pegar no computador e trabalhar. Em vez de mudar de divisão ou simplesmente me dar o habitual desprezo felino, ela deita-se ao meu lado e dorme, enquanto trabalho. Ela também acredita que eu sou afetuosa e meiga. Por isso, na primeira oportunidade, é no meu colo que se enrosca e dorme um pouco mais, com o motor ligado, a ronronar por horas a fio.

 

A minha gata acredita que eu sou generosa. Não encontra em mim traços somíticos. Não acha que sou egoísta. Então, mesmo quando estou a comer algo que ela adora – como frango, melão ou fiambre – ela limita-se a sentar e a esperar com uma calma nada típica de bicho que eu termine e lhe dê a sua parte.

 

À noite, quando se põe debaixo das roupas, encostada a mim, ela acredita que eu sou altruísta e que a cama foi especialmente feita a pensar nas duas. Nestes momentos, ela mostra-me que acha que eu sou humana e frágil e ensina-me que não existe nada de errado na fragilidade, encostando-se à minha barriga e aceitando os soluços do choro como se fossem naturais, enquanto se aninha mais e mais, confortando-me.

 

Não existe lugar para onde ela não me siga, esperando sempre o melhor de mim. E eu gosto dessa pessoa que ela acha que eu sou. Então, mesmo quando não estou com ela, é isso que eu tento ser. Presente e altruísta, meiga e humana, uma pessoa que retribui, que dá, que pensa nos outros e aceita os seus gestos de afago.

 

Se o sou todos os dias e em todos os momentos? É claro que não! Falhar faz parte de se ser humano. Mas a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. E tento carregar sempre comigo a pergunta. Quem é essa pessoa? Essa que eu quero ser? Faço a pergunta nas inspirações e tento expirar a resposta.

 

A pessoa que eu quero ser é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou.


Marina Ferraz



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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Vergada

 Fotografia de Analua Zoé


Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos.

 

 

Andei sempre vergada. Habituada a sobrar, comecei a encantar-me pelas sobras. Fosse a migalha do pão, a equipa de futebol que não ganha há cinco décadas, a religião que se queimou nos autos de fé ou o gato da ninhada que ninguém quer adotar. Porque é preto. Remelento. De pelo feio e mal cuidado.

 

Ganhei o hábito de me baixar. De me curvar. Ombros desnivelados e olhos no chão. Descobrindo que caem ao solo muitas regras infundadas quando o pensamento vagueia.

 

Foi vergada que descobri que não faz mal ter um pensamento vagabundo. Na verdade, o pensamento vadio é justamente o melhor. Sai da caixa e dorme com universos mais vastos. Não se importa muito com os constructos sociais. Evolui. Faz a diferença.

 

Fiz coleções com o desperdício. À medida que se desperdiçavam direitos, fui agarrando neles e guardando-os nos bolsos, juntamente com todos os c’s, p’s, tremas e acentos que, aparentemente, já não tinham uso na linguagem. Mas não apanhei só letras soltas e direitos inúteis. Da sucata do desperdício retirei também palavras inteiras, quando ainda toda a gente as usava mas já ninguém as sentia.

 

Vergada, fiquei com bolsos cheios de amigos que não dariam um passo por mim. De amantes que não sabiam amar. De promessas que não seriam cumpridas. E de muitas, muitas desculpas, que se colavam debaixo dos tampos das secretárias, como pastilhas elásticas roídas, mastigadas e esquecidas, sem sabor nem propósito.

 

“Amor” foi a palavra mais bonita que guardei. De a ver desperdiçada aqui e ali. Tão gasta e puída com os séculos de uso. Tive pena dela – da palavra “amor” – e agarrei-a. Juntei-a à coleção de inutilidades que colhia das lixeiras da vida.

 

Vergada, de ombros desalinhados e olhos no chão, descobri que o amor pesava mais sozinho do que tudo o resto e, em alguns momentos, deixei-me cair de joelhos na gravilha. Levantei-me sempre. Caminhei sempre. Vergada e domada pelo peso servil que apliquei ao amor desperdiçado que tinha apanhado por caminho.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Não era mais do que a pessoa vadia, de alma ignóbil, recolhendo os desperdícios e as sobras que o mundo criava. Apaixonada pelos astros, pelos Deuses Antigos, pelos gatos pretos e as equipas de futebol que perdiam e desciam de divisão. E um pouco mais pelas letras que colecionava e pelo amor gasto, que me exigia, todos os dias, a força que eu não tinha para o carregar.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Mas ir vergada, para mim, era só ir. Andei sempre vergada. Procurando no chão os restos. As sobras. O desperdício.

 

Foi no meio de muitos c’s e p’s perdidos e sem uso que percebi que, de facto, estava apta a lutar. Fosse pelo amor colhido ou pelo futuro incerto ou pelos ideais que frequentemente ainda me pediam o trema. O trema. Mas não o tremor. Não o temor. Colhi coragem, na pilha dos desperdícios. E não tenho medo de nada.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Mas não estavam. Porque eu não preciso de olhar nos olhos de ninguém para saber o que a alma tem dentro. O desperdício que lhes mora aos pés, nas camadas de palavra e nojo lançadas ao chão dizem muito sobre a podridão das almas. E o amor descartado dizia muito sobre o vazio do peito. E a recusa do fértil dizia muito sobre o eco das mentes.

 

Entendendo muito do mundo e da vida, acabei por erguer-me. Quando me ergui, disseram-me. Que vergar as costas era sinal de subserviência. Sorri. Andei sempre vergada. Tenho os bolsos cheios de excessos e de letras descartadas que me escrevem autos de dignidade. Uma mente vagabunda que não se limita ao horizonte pequenino do que está definido na linha que começa com maiúscula e termina com um ponto final. Tenho as entrelinhas e os inconcretos. Não faço vénias nem a pessoas nem a conceitos. E fortaleci todos os meus músculos transportando amores maiores do que a vida nos bolsos, caindo e levantando-me sem apoio nem amparo nem ovação.

 

Andei sempre vergada. Descobri cedo que o horizonte que me punham em frente aos olhos era mais limitado que o chão, onde continuavam a deitar quase tudo o que tinha valor.

 

Andei sempre vergada. Sou escrava do meu desejo de ser livre. E entendo. Que vergar as costas seja sinal de subserviência. Mas, lamento. Não sou servil. Não sirvo mais do que as minhas vontades, que colhem desperdícios e constroem muralhas de tesouros e sonhos e ousadias.

 

Entendam. Com os bolsos cheios de amor e letras soltas, descobri que também eu, por ser sobra e desperdício, era digna das palavras e do afeto. Distribuí por mim mesma muito do amor, até ele não me pesar. Só faço vénias ao que trago dentro. E o amor próprio é arma. O amor próprio é consciente e seguro.

 

Andei sempre vergada. Mas nunca me vergaram.

 

Andei sempre vergada. Mas não me podem vergar.


Marina Ferraz



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terça-feira, 10 de novembro de 2020

No fundo do meu copo de vinho

 Fotografia de Raul Pinto


Tenho a mente irrequieta. Tento travá-la. Estender a mão imaginária em frente ao nariz e dizer: para de ser besta. Mas a mente não para. Aponta, por sua vez, o dedo ao coração. E ele está demasiado desgraçado e feito em lascas para sequer ripostar. Responde, lá no seu melodramatismo ridículo: sim, sim… sou o culpado de todos os males do mundo.

 

Canso-me de os ouvir. Desisto. Agradeço aos elementos que me fazem mortal, humana e adulta. Afogo-me em taninos. Sirvo um copo de vinho. Seja para bebê-lo em vez de pensar ou para pensar enquanto o bebo.

 

O móvel dos meus livros tem fantasmas agarrados. Um deles, imagino, agarra num copo ambarado para brindar comigo. Outro, queixa-se ao fim de um gole mal dado que já atingiu o limiar da embriaguez. O mais teimoso de todos, insiste que eu devia estar a fazer planos estratégicos para reunir os dissidentes num qualquer golpe revolucionário equivalente ao 25 de Abril, mas que funcione…

 

No móvel dos livros, além de fantasmas, existem obras literárias. Convivem alegremente, nele, as estrelinhas de Florbela, de Pessoa, de Saramago e de Lídia Jorge; mas também a plebe do prazer imediato e simples, com narrativas fantasiosas sobre mágicos e vampiros e amores eternos, pela mão menos genial de autores de best-seller que comprovam a força do marketing, do consumismo e do capitalismo modernos.

 

A meio do copo de vinho, eu já li títulos que não deviam povoar a mesma estante. E já pedi a três autores com o Nobel da Literatura o favor de não se ofenderem com os romances de cordel que dormem a seu lado.

 

Algumas histórias na estante, confesso eu aos fantasmas – porque ninguém vivo teria a paciência de escutar-me – são um pouco do que me tornou quem sou. Eternamente presa a um amor que vai além-corpo para provar que a eternidade é um espaço de nós. Não fosse – confesso-lhes – E estaria agora nos braços de alguém, a fazer algo carnalmente mais produtivo do que falar com quem não responde.

 

Um dos fantasmas acende um cigarro e outro diz-me que não posso pensar assim. E eu continuo a beber o líquido castanho-avermelhado, como se fosse o sangue de um qualquer messias por nascer.

 

Penso naquelas pessoas que se sentem tristes e confessam os seus pensamentos mais tenebrosos. Doeu tanto que pensei que ia morrer. Frase feita e comum. Da qual eu discordo com a força de um exército. A mim dói tanto porque sei que não vou. Não disto. Não agora. Vou ter de viver, de conviver, de partilhar o sofá e o vinho com a dor. E de acordar amanhã para repetir.

 

Vem a saudade. Desse amor que começa a tornar-se mais patente quando dois terços do copo se esvaziou e que salta dos livros que povoam a minha estante, lançado de mão em mão num jogo da batata quente pelas mãos dos meus mortos. Ninguém quer segurá-lo e eu também não. Queima. Queima como só a saudade sabe queimar, numa chama azul-inglesa. Essa que é tristeza patenteada e debruada a dor.

 

Engulo. A mágoa, a tristeza e o vinho. Deixando manchas ponteadas, como reticências infinitas ou céus de estrelas rubras no vidro.

 

No fundo do meu copo de vinho existe literatura. É um conto impossível de mil páginas, onde o amor ainda terá muito a dizer depois da contracapa.

 

Às vezes, numa sala cheia, há vazio. Vem de quem já partiu há tanto tempo, que o esquecimento deveria ter tomado o seu lugar. Mas não é esquecimento. É vazio. E é assim que percebes que não é afeição mas amor.

 

Pouso o copo na mesa e os olhos na estante. Subitamente, estou sentada a assistir à interminável discussão da mente com o coração que se vitimiza e assume, sem pudores, que é culpado de tudo. Até do que não sabe. Até do que não viu.

 

Os Fragmentos de Mim estão perigosamente perto d’As Intermitências da Morte. Mas nem o fragmento é morte, nem eu sou digna daquele lugar na estante. Sou só alguém que gosta da assombração das gentes que foram e das histórias que ficaram no passado, deixando mais vazios do que memórias. Sou só alguém com uma mente irrequieta e intempestiva. Com um coração cansado e desiludido. Insistindo na literatura que mora no fundo do corpo e do copo de vinho.

 

Não deixo de pensar, olhando o copo vazio, que o vinho acabou mas o amor não.

 

Nem todas as narrativas acabam só porque alguém escreveu “fim”.

 



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terça-feira, 3 de novembro de 2020

Confronto com o eu

 


Embati contra mim mesma. Violentamente. Num instante, em frente ao espelho, descobri que aquela era eu. Não se parecia muito comigo. Mas, aproximando-me da imagem e deixando que ela fizesse o mesmo, percebi que era eu e que estava velha. Ergui o sobrolho. Trejeito de espanto que ela me imitou. E tentei justificar que estava cansada. Mas nem ela nem eu queríamos saber de desculpas.

A rua era viral e a tirania também. Aos bocadinhos, contaminando uma mente aqui e outra além, preocupava-me mais a entrada furtiva da ditadura do que qualquer doença. Doença, contei eu ao meu reflexo, era a pacatez do povo, que via acontecer e anuía. Cachorrinho de bagageira que não aprendeu nada com a História.

Presa na moldura do espelho, aquela figura cansada que era eu, quis saber o estado das coisas. Contei-lhe que as pessoas tinham medo umas das outras e que usavam máscaras. As máscaras serviam para esconder o medo mas revelavam quem elas eram. Nunca antes, na História do Mundo, as pessoas tinham usado máscara para revelar a sua identidade… – expliquei-lhe – Nunca se viu tão bem o que as pessoas são! – e acrescentei – As máscaras desvelam o que vai além dos sorrisos falsos. E, olha: é tão triste, tão oco, tão vazio, tão egoísta e ignóbil… que a prática do distanciamento social me faz sentido…

Contei-lhe da prisão domiciliar globalizada. Contei-lhe do imoral sentido da solidão imposta em lares e centros para a diferença, onde as pessoas morriam de abandono. Contei-lhe como morrera também, certamente do vírus, a constituição nacional e como se ligavam às máquinas os direitos humanos. E expliquei que os países corriam atrás da vacina – nova corrida espacial pela bandeirola em Marte – que virava tema central da narrativa pró-temor dos media.

Presa na moldura do espelho, a figura parecia ainda mais cansada. E senti-me quase mal ao explicar-lhe que não era apenas isto que se estava a passar. A doença virou negócio. A pequena mercearia de que tu gostavas fechou e o teu bar ameaça fazer o mesmo. – equaciono um suspiro porque, mesmo sem o vírus, me sinto sem ar - Os pequenos concorrentes, que já nada faziam de concorrência às grandes superfícies, estão condenados a desaparecer. As grandes marcas investiram na doença e fizeram dela – como de tudo o resto – uma forma de terem lucro.

Idealizo o cartaz. De letras garrafais, colocado em frente aos olhos cegos de quem nada quer fazer: Bem-vindo às epidemias na sociedade de consumo, provavelmente eternizadas pelos interesses capitalistas, aos quais pouco interessa que as pessoas vivam, contanto que paguem.

Embati contra mim mesma. Violentamente. Com um cansaço a causar olheiras densas no peito. Por dentro. Descubro-me velha. Estou a envelhecer sem que me permitam a vida. E questiono quantas pessoas estão a evitar viver com medo da morte.

A figura do espelho pergunta-me porque não faço alguma coisa. E eu pergunto-lhe o que posso fazer. Fica o silêncio entre nós. Nos dois metros que nos separam. Nenhuma de nós está a usar máscara. Talvez devêssemos usá-la, para abafar os soluços. E óculos de sol também. Para esconder as lágrimas.

Afasto-me. Deixo o meu reflexo com a sua dor porque a reflexão me incomoda. Olho a janela. A rua deserta além da janela. A rua viral como o despotismo dos ricos.

 

Dói-me o peito.

Dói-me o peito e não consigo respirar.

Hiperventilo.

 

Embati contra mim mesma. Violentamente. Não é o vírus mas a tirania que me está a deixar doente.

 



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