terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Domingo: uma carta de desamor

 


Fotografia de Karolina Grabowska


Odeio os domingos. Não porque sou particularmente fã da segunda-feira, mas porque acho os domingos mais desonestos. Noto, na claridade das suas manhãs, o capricho acentuado de saber que é o filho favorito da semana. E torna-se arrogante. Nasceu com o cu virado para a lua. Não tem de fazer rigorosamente nada para ser amado... e é. Não por mim, entenda-se! Eu odeio o domingo.

 

 

Quando a semana começa, a esperança já foi. Sabe-se exatamente qual o espaço que vai do toque do despertador até ao retorno do corpo ao colchão. É assumidamente pesado, desde o primeiro instante.

 

O plano dos dias não deixa espaço para ilusões, exceto se considerarmos as almas que se agarram ao talão da máquina do quiosque, para confirmarem – à terça e à sexta-feira – que não ficaram milionárias. Mas as pessoas nem querem realmente ficar milionárias por nenhum motivo em particular. Não pretendem abrir ONG’s, nem patrocinar a construção de escolas e ATL’s ou distribuir comida nas zonas mais pobres da cidade, do país ou do mundo. A sua motivação é, usualmente, bastante simples: querem fingir que todos os dias são domingo. E, por isso, mesmo às terças e sextas, é o domingo que está a plantar ardis e a esvaziar as carteiras das pessoas.

 

Durante cinco dias. Conta-se. Segunda. Terça. Quarta. Quinta. Sexta. Mas só durante esses dias. Ninguém diz que o Domingo é Primeira... porque ele vem primeiro. Ninguém precisou de lho dizer. Ele sabia... Sabia e até fez questão de ser precedido de Sábado por isso mesmo: para que saibamos que ele sabe que será sempre o eterno favorito.

 

Só que, Deuses, olhemos a arrogância! O domingo faz de tudo para ser droga. Dá a si mesmo nome de programação fútil e oca com os seus “filmes de domingo à tarde”. Promove o futebol nacional. Leva as beatas à missa e dá aos preguiçosos - mesmo que ateus - a desculpa de que podem descansar porque é o dia "do Senhor". Entretanto, proíbe que se ligue para qualquer lugar pertinente – incluindo as Finanças, a Segurança Social e os serviços, exceto em caso de emergência. Faz com que gestantes de águas rebentadas levem uma injeção para atrasar o parto até horário mais conveniente, a menos que seja de todo impossível evitar que aquele ser ignóbil que decidiu nascer no final da semana escorregue por entre as pernas da mãe para o mundo. E garante-se que nascerá a chorar! Provavelmente por ser domingo.

 

Eu odeio os domingos. Entendo totalmente porque é que chamaram dias úteis aos outros dias da semana. O domingo é inútil. Tão inútil que precisa de outro dia inútil a precedê-lo, para abrir alas à sua inutilidade. Não serve para nada, senão para acentuar a preguiça e o ócio. Não serve para nada senão para nos iludir com a ideia do dia bom (que não é) e nos desiludir, a seguir. Não serve para nada senão para nos lembrar de que o dia que se segue é um voltar à rotina, esperando o domingo seguinte, pela crença desajustada de que “o próximo é que é!”.

 

Odeio os domingos. Não porque sou particularmente fã da segunda-feira, mas porque acho os domingos mais desonestos. Não tenho medo da honestidade. Por isso escrevo esta carta de desamor. Dizendo que o odeio. O domingo. E escrevo isto numa terça-feira. Porque se o escrevesse ao domingo, os correios estariam fechados...


 Marina Ferraz





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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Duas cadeiras no alpendre


 

Há duas cadeiras no alpendre. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas.

 

 

Há o espelho do caos. Lá dentro. Destroços. Destruição. Aqui e ali, indício de tempo que passou. Como se o caos não fosse caos, mas passado. E futuro. Porque não há quem tenha espaço para se mover entre os cacos sem os pisar.

 

Duas ou três almas bateram à porta. Entraram e saíram. Sem nunca se sentar nas cadeiras do alpendre. Encantadas, provavelmente, pelas cadeiras do alpendre: promessa de descanso e contemplação do belo. Promessa de sol e sossego. Entraram e saíram. Mais depressa. Mais devagar. Aproveitando uma refeição ou outra. Um leito ou outro. Entraram e saíram.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Como se imaginassem o chão limpo e os fragmentos varridos. Como se quisessem fazer da sala atolada um salão digno de festas palacianas. Como se quisessem vidros translúcidos para ver a paisagem em redor. Tão bonita.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Havia sempre as palavras. Conjuradas, como quem invoca os Deuses.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Mas a casa não era de ninguém senão sua. E o caos era parte. Tal como a sala e os quartos. E os vidros sujos. E os cacos velhos.

 

A casa sabia que a cerâmica partida no corredor era uma história com vinte anos. E que as serpentinas acumuladas no canto eram o beijo inesperado no final de um concerto qualquer. E que a fotografia caída, empoeirada, era uma lágrima que pendia, como o candeeiro onde se tinha apagado a esperança, e cuja lâmpada fundida permaneceria assim até ao nascer da aurora. A casa amava a racha no vidro da porta, contra a qual o amor tinha embatido. A casa adorava o sopro do vento por entre a janela estilhaçada pela pedra do amante proibido, que entrara à socapa, subindo a trepadeira seca. A casa queria que o relógio parado continuasse a indicar a mesma hora.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Mas a destruição era o que fazia daquela casa um lar. E, por isso, apenas os passos fantasmagóricos de uma memória perpétua se faziam dançar, sobre a poeira, por entre a ruína.

Há duas cadeiras no alpendre. São os meus olhos. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas. Ninguém se sentou nelas. Quando a noite cai, às vezes eu sento-me. Em ambas. Sou todos os meus eus, ali sentada. Oculta pelo manto negro. Vulto incorpóreo, guardando todos os meus cacos tristes.

 

Existe a lenda de que alguém me viu.

 

Um mito.

 

 

Há duas cadeiras no alpendre. E, acreditem: Ninguém – jamais – se sentou nelas.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Latência dos momentos

 


 

A bala atinge o peito. E o tempo estremece. Oscila nos microssegundos que ela leva a atravessar o ar, até explodir na carne. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. Latente.

 

 

 

As manhãs nascem sempre devagar. O sol tem preguiça de nascer. A luminosidade não quer abrir os olhos ao mundo. Nem eu quereria, se fosse luz... ver o mundo cansa.

 

Foi nisto que eu pensei, quando a bala embateu no peito. Ignorando os momentos latentes que separaram o dedo no gatilho e o encontro inusitado contra o oco de mim. E foi isto que me acompanhou na queda até ao solo, onde me desfiz, peça de mármore branco, sem outro destino que não o de cumprir os desígnios da vida.

 

De cada vez que alguém cai no chão, soprando um último sopro, cumpre-se o destino evidente que se sagrou na fecundação. Também esse momento latente, de óvulo invadido, gerando uma promessa de morte lá à frente.

 

Podia ter pensado em muitas coisas. Mas pensei na preguiça do sol e da luz. E na forma como eles dançam, ao longo do dia, uma espécie da milonga muito lenta, arrastando as pernas até ser hora de molhar os pés no mar.

 

Pensar em luz, levou-me até ti. Pensar em ti, levou-me a sorrir. E sorrir fez-me pensar no quanto amava a bala que, finalmente, me tirava o vazio do peito, valorizando-o com o aço amolgado, de listras-universo definindo impressões digitais do disparo.

 

Cabem muitas coisas num momento só, mas a nossa realidade é curta. A lente está focada no interior das amarras. Somos amplamente cegos e reduzimos o mundo todo ao corpo. Quando ele cai. Só quando ele cai nos apercebemos de todos os grãos de poeira no ar, de como ondeiam e dançam. Do som do vento. Das vozes distantes. Do pequeno sismo provocado pelos passos que correm, cada vez mais distantes. E as sirenes, cada vez mais perto. E o arrastar de um papel velho.

 

O momento latente que separa a vida da morte é o espaço que define as cordas do universo e o amplifica em nós. E o sol nasce tão devagar. E a luz está tão cansada.

 

Fechar os olhos é ver traços ambíguos da paisagem abandonada. Há um rio que se faz poça. Afogo-me nele. Entranho nele todas as peças distantes da alma. Até me sentir menos vazia. Por um momento. Só um. Latente.

 

 

 

A bala atinge o peito. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. O corpo encontra o chão e esvai-se em sangue. Momento. O sol renasce. A luz acorda. Devagar. Bate-me no rosto. Transforma a imagem do sonho no sonho da imagem. E abro os olhos. Trago nas mãos a miragem do futuro. E o momento latente em que penso em ti, disparando a arma que me mata. Por ter acordar. Como o sol e a luz. Desse sonho bom que é não ser.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Rebeldes

 

Fotografia de Skitterphoto

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

 

Quando o sol nasceu, eles ainda estavam deitados. Corpos meio suados, meio despidos, com as pontas dos pés tocando-se, ao de leve, debaixo das cobertas. Acordaram aos poucos, com o sol, para descobrir que a tirania tinha ganho as eleições e que a terceira força política era, agora, um antro de fascismo. Sabiam que não era uma notícia “de hoje”. Era uma construção de muitos anos, ancorada na iliteracia, no ciclo sucessivo e repetitivo que colocava sempre a mesma elite déspota no poder.

 

A política era importante para eles... mas não era tudo. E, por não ser tudo, não foram as notícias a primeira partilha da manhã, mas os corpos – esses que, já meio despidos, acabaram por se libertar do resto das roupas, e que já meio suados acabaram por fazer um pequeno Verão no meio das cobertas húmidas.

 

Disseram bom dia. Depois. Só depois. Ambos cientes de que, se olhassem as manchetes, não teriam “bom dia” para dar. Uma espécie de azia no peito, por detrás dos sentidos, colou-lhes os pés ao chão para o dia que começava. Para o trabalho que chamava. Para as tarefas que urgiam.

 

Partilharam, ao longo do dia, algumas notícias e artigos de opinião, não só entre si, mas com os amigos comuns. Por detrás da partilha, a memória desmascarada de muitas manifestações que faziam da bandeira nacional capa de um herói qualquer que a Marvel renegou. Por detrás da partilha, a memória da luta que tinha resultado em quase-nada. E teria sido nada, se não se tivessem, pela manhã, com os corpos suados e as pontas dos pés tocando-se, até não serem só as pontas dos pés a tocar-se.

 

Assistiram. Sentados em frente aos computadores e atrás de textos e tarefas bem distintas, ao adensar da mágoa causada pela insistência na distância, no medo, na narrativa fatal da curva achatada que – insistiam – só achatava curvas de sorrisos que mereciam pintar o rosto.

 

Tendo o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu, eles renegaram a distância e combinaram encontro. Na mesma cama, no mesmo suor, na mesma ideologia esquecida e repetidamente deixada, espalhada pelo chão da casa, com as roupas.

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Felizes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu a importância das manhãs nuas ao sol nascente e dos abraços e da luta pela liberdade.

Ser feliz nunca foi mais raro.

 

Partilhar(-se) nunca foi mais raro.

 

Viver nunca foi mais raro.

 

 

E mais de dois milhões e duzentas mil pessoas querem que assim continue.

E mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas não querem mudar de facto.

E quase quatrocentas mil pessoas querem que a felicidade, a partilha e a vida voltem ao tempo dos campos sem cravo, onde nem vida, nem partilha, nem felicidade têm lugar.

 

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

Por isso, abraçaram-se na noite. Dispostos a lutar até ao último suspiro por esse direito. O de ser. De partilhar. De viver. Ainda hoje. E outra vez amanhã. Quando o sol acordar para iluminar a tirania que se instalou.


 Marina Ferraz





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