Despi-me de merdas e odeio-te. Há traços em ti que me
lembram o futuro. E estar viva come-me as entranhas, aos bocadinhos. Porque me
obriga a olhar para ti, sem saber muito bem se quero de volta o tempo perdido
ou acelerar o que falta, para fechar os olhos de vez.
Pelo caminho nu, fiz as curvas a velocidades inapropriadas,
procurando uma justificação. Concluindo que a maldição é minha e o dom é teu.
Mas que a minha maldição vale muito mais do que os mitos conturbados do teu
dom.
Sim. Tens. Esse dom. O de fazeres alguém acreditar.
Plenamente. Com todos os pedaços da alma. O de fazeres alguém sentir que vale.
O chão que pisa. O mundo. O universo. O de fazeres alguém achar que é centro do
universo e até o sol gira em seu torno.
Eu? Eu tenho a maldição. De me despir. Tiro as roupas. Com
elas, as muralhas. Com elas, as dúvidas. Até sobrares só tu. Mas, hoje, despi-me
mais. Despi-me de merdas. E, com elas, acabaste por sair também, deixando-me só
os ossos.
Descubro que tenho só ossos, onde tive amor. E apetece-me
gritar, mas também despi a voz. Despiste-me a voz. Com os mesmos dedos que me
despiram as primeiras roupas. E as primeiras muralhas. E as primeiras dúvidas.
Despi-me de merdas e odeio-te. Um ódio que é mais ópio do
que ódio em si. Porque me inebria os sentidos e me sabe sempre a paixão. Um
travo muito doce a veneno. Baunilhado e jogado para o canto dos meus lábios,
com promessas de um passado. Devia ser de futuro, eu sei. Mas tu tens o dom. E
eu a maldição. O futuro, para mim, é só a soma dos passados. E nunca acaba. O
passado. Vem sempre atrás do dia que amanhece.
Eu sei que devia ter cuidado nas curvas apertadas do
caminho, principalmente em estradas de serra, sinuosas e cheias de falésias.
Acelero. Estou com pressa de chegar ao entendimento do que falhou nas tuas
promessas. Essas onde eu era alguém. Que merecia algo. Além de silêncio.
As juras de amor, escritas em poemas. As juras de amor,
cantadas em voz de mel. Tantas ideias toscas para me vestir a alma que hoje
dispo. De juras. De poemas. De canções. De merdas. De ti.
Os ossos que me sobram são feitos de argamassa e cimento.
Tão feios que não há artista que neles pinte cores desajustadas, em arte de
rua. E também não sobra muito onde se pinte, já que, por entre os ossos, há
apenas ar e passado. Nenhum dos quais tela, seja para que tipo de arte for.
Despi-me de merdas e odeio não te odiar. É… despi-me.
Despi-me de merdas e sinto que me reduzi ao mínimo essencial. Sou a coisa mais
pequena depois do nada. Sempre disseste que gostavas mais das pequenas coisas. Das
mais ínfimas. Das mais miúdas... eu realmente devo ser o amor da tua vida.