terça-feira, 26 de março de 2019

Despi-me




Despi-me de merdas e odeio-te. Há traços em ti que me lembram o futuro. E estar viva come-me as entranhas, aos bocadinhos. Porque me obriga a olhar para ti, sem saber muito bem se quero de volta o tempo perdido ou acelerar o que falta, para fechar os olhos de vez.

Pelo caminho nu, fiz as curvas a velocidades inapropriadas, procurando uma justificação. Concluindo que a maldição é minha e o dom é teu. Mas que a minha maldição vale muito mais do que os mitos conturbados do teu dom.

Sim. Tens. Esse dom. O de fazeres alguém acreditar. Plenamente. Com todos os pedaços da alma. O de fazeres alguém sentir que vale. O chão que pisa. O mundo. O universo. O de fazeres alguém achar que é centro do universo e até o sol gira em seu torno.

Eu? Eu tenho a maldição. De me despir. Tiro as roupas. Com elas, as muralhas. Com elas, as dúvidas. Até sobrares só tu. Mas, hoje, despi-me mais. Despi-me de merdas. E, com elas, acabaste por sair também, deixando-me só os ossos.

Descubro que tenho só ossos, onde tive amor. E apetece-me gritar, mas também despi a voz. Despiste-me a voz. Com os mesmos dedos que me despiram as primeiras roupas. E as primeiras muralhas. E as primeiras dúvidas.

Despi-me de merdas e odeio-te. Um ódio que é mais ópio do que ódio em si. Porque me inebria os sentidos e me sabe sempre a paixão. Um travo muito doce a veneno. Baunilhado e jogado para o canto dos meus lábios, com promessas de um passado. Devia ser de futuro, eu sei. Mas tu tens o dom. E eu a maldição. O futuro, para mim, é só a soma dos passados. E nunca acaba. O passado. Vem sempre atrás do dia que amanhece.

Eu sei que devia ter cuidado nas curvas apertadas do caminho, principalmente em estradas de serra, sinuosas e cheias de falésias. Acelero. Estou com pressa de chegar ao entendimento do que falhou nas tuas promessas. Essas onde eu era alguém. Que merecia algo. Além de silêncio.

As juras de amor, escritas em poemas. As juras de amor, cantadas em voz de mel. Tantas ideias toscas para me vestir a alma que hoje dispo. De juras. De poemas. De canções. De merdas. De ti.

Os ossos que me sobram são feitos de argamassa e cimento. Tão feios que não há artista que neles pinte cores desajustadas, em arte de rua. E também não sobra muito onde se pinte, já que, por entre os ossos, há apenas ar e passado. Nenhum dos quais tela, seja para que tipo de arte for.

Despi-me de merdas e odeio não te odiar. É… despi-me. Despi-me de merdas e sinto que me reduzi ao mínimo essencial. Sou a coisa mais pequena depois do nada. Sempre disseste que gostavas mais das pequenas coisas. Das mais ínfimas. Das mais miúdas... eu realmente devo ser o amor da tua vida.








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terça-feira, 19 de março de 2019

Racional




O ser humano. Racional. Porque só racionalidade se vê entre os humanos. Não há espaço para outra coisa. É o que nos separa dos bichos. O que nos torna superiores. O que leva o livro do génesis a mandar-nos reinar sobre tudo o que é natural. Temos isso. A racionalidade. Seja isso o que for.

Vivemos entre alertas e avisos. Não fumar. Não acender fogueiras. Não pisar a relva. Somos racionais. Inteligentes. Criamos as normas. Afixamos placas. Lemos os avisos. A nossa racionalidade é tanta que até conseguimos interpretar o que está por detrás das normas, placas e avisos. E tão inteligentes que fazemos a escolha de cumprir ou não, consoante a nossa vontade e prazer.

Em redor da nossa racionalidade há florestas queimadas, mares de plástico e glaciares líquidos. Em redor da nossa racionalidade, há espécies extintas e sangue jorrado a desporto. Em redor da nossa racionalidade, edifica-se sombra de sonho similar, fazendo de nós argamassa e lodo, aplaudindo a destruição que causamos.

Os Deuses taparam os olhos com as mãos. Eu faria o mesmo. Faltou a luz de Prometeu. E somos nós o fígado carcomido. Somos nós a pedra que amarra a esperança da sabedoria. Racionais. Que seres racionais são esses que precisam que lhes expliquem o óbvio e nem assim o entendem?

Há um toque racional na voz que grita em nome da Natureza. E irracionalidade no extremismo que logo se segue. Não conseguimos manter-nos estáveis sem um pé no caos. Como se nascêssemos para reinar, não sobre tudo o que é natural, mas justamente sobre a desordem das coisas. E não respeitamos o mundo porque não lhe entendemos a simplicidade clara da leveza. Essa coisa irracional de simplesmente estar e dar ao outro. De respirar e sentir que basta.

O ser humano. Racional. É o que nos separa dos bichos. Dos monstros. O que nos faz gente. Somar um mais um e não deixar ficar nada. Porque a inteligência é egoísta. E o raciocínio diz que o prazer imediato conta mais.

Um dia, a humanidade vai morrer. Teremos um espaço concreto e cheio de música, vazio de homens e mulheres e crianças. Um espaço irracional. E é com medo dessa irracionalidade que se fala do fim do mundo. Mas não. Não é o fim do mundo! É o fim da racionalidade tosca de um ser pensante. E um começo mais puro. Sem a destruição racional de quem continua a não entender a simplicidade da vida.

Os Deuses hão-de tirar as mãos da frente dos olhos e sorrir ao verde. Morreu o caos, dirão. Racionalmente. Como mandou o livro do Deus cego.








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quarta-feira, 13 de março de 2019

A galope




Montas o teu próprio cavalo e salvas-te a ti mesma. Vês o pôr-do-sol com as mãos dadas às rédeas do destino que te cabe escrever. Tens medo de muitas coisas. Mas não deixas que nenhuma te trave. Essa é a coragem que te leva. A galope. Pelas areias do mundo. Lado a lado com as ondas.

Chamam-te princesa. Chamavam-te princesa. Mas as vozes emudeceram. E o sol poente pintou-te o traço guerreiro do caos. A tua feminilidade ecoa na lâmina. Porque recusas ser homem e abominas a humanidade. Na chama intemporal das velas ou na folha de papel continuas a plantar ciclos de lua e sangue. Vertes circularmente o ano na pele. E, por veres tanto, entendes até a simplicidade.

À medida que os teus cabelos longos se começaram a confundir com as lápides do teu passado, as pessoas aprenderam a palavra “desapego”. Disseram – ou pensaram alto – que não sabias amar. E sobre as areias do mundo. Lado a lado com as ondas. Amaste. As areias e as ondas. O cavalo e o sol poente. A essência que te fez salvares-te a ti mesma e dares as mãos às rédeas de um destino com a tua caligrafia.

A galope. Eternidades escritas a granel. Pesos e medidas que se costuraram nas selas onde te sentas, feito trono. O preciosismo das linhas no couro amarelecido pelo tempo. Ergues o rosto. E o mundo toma por impertinência o teu rosto erguido. Que só a mulher impura ergue o rosto de uma forma tão certa. Ergues o rosto e estás nua. Mas sentes o vento e ele veste-te com o ouro acetinado da memória da alma. Deve ser hora de partir.

Salvas-te a ti mesma. Das marés vazias. Que precedem enchentes. Que precedem a preia-mar. As ondas têm espuma e tu tens mãos. Que segurem as rédeas do destino impaciente. Só um pouco. Pedes. Mandas. És senhora até dos elementos da Terra. Ligada a ela por raízes e asas.

O teu para sempre constrói-se nos espaços entre os dedos. Membranas interdigitais de sonho. Sem espaço para anilhas. Mas com vidas novas e eternidades além de si. Fundes-te contigo mesma e és toda feita de paixão. Sentes prazer nas impressões digitais. És o fruto e a seiva da paixão mais intemporal.

Montas o teu próprio cavalo e salvas-te a ti mesma. Vês o pôr-do-sol com as mãos dadas às rédeas do destino que te cabe escrever. Assustas os outros porque a espera não te convém e o cavaleiro alado não te interessa.

Acreditas no amor. E ele assusta-te. Como te assusta a manhã, em cada acordar. E a noite que vem depois do sol posto. E as marés vazias que sugam para o horizonte as ferraduras e as possibilidades. Sim. Tens medo de muitas coisas. Mas não deixas que nenhuma te trave. Essa é a coragem que te leva. A galope. Por aí.

As areias do mundo são estrada. As ondas, banda sonora. És una com a unicidade de ti. E os teus medos são nada. Vais. A galope. O sonho é rutura e recomeço. Todas as noites tens medo de fechar os olhos. Todas as madrugas tens medo de os abrir. É uma coragem inusitada para cada segundo do dia.

Curas a alma com o sal do ar padecente em bruma. És contraluz. Pintam-te de negro as formas sadias de mulher. Assusta que vás. A galope. Cheia de medos. Mas sem ceder. Essa é uma coragem que os heróis dos contos ainda não conhecem.

A galope. Salvas-te a ti mesma. Todos os dias. Tens pressa de chegar a ti. Para te amares. Para sempre. Outra vez.





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terça-feira, 5 de março de 2019

O último pôr-do-sol



Ontem vi o pôr-do-sol e, depois, caiu a noite. Ontem foi há mil anos atrás.

Foi o último pôr-do-sol sem mágoa. A última vez em que acreditei que, no dia a seguir, haveria luz. Vimo-lo antes de anoitecermos também, de mãos dadas em frente à televisão, onde se atravessavam pedras para lugares distantes no tempo.

Das inveteradas lutas, algures na Escócia, sacámos risos latentes, que plantados debaixo dos olhos taciturnos, de pouco valiam. Deixámo-nos inebriar pelo romantismo verde, de capas vermelhas que se digladiavam e amores eternos que se deixavam prometer, em campo de batalha.

Talvez tenhamos identificado, ali, o nosso amor, depois do sol posto. Esse campo de batalha, tão deserto de oportunidades, onde ainda se acreditava no amor. E talvez por isso, esquecemos que a televisão estava ligada. Libertámos os corpos de roupa tão depressa que não houve tempo para que nos apercebêssemos da nudez.

Pensámos em ir para o quarto. Mas nunca chegaríamos ao quarto, porque o desejo queimava. As tuas mãos na minha pele e o sabor dos teus beijos nos meus lábios. O sol tinha voltado a nascer, depois de adormecido no mar. E, de resto, ali, éramos nós o sol. Um calor estridente de afagos que se comprometiam, aos poucos, com carícias mais e menos bruscas.

Olhava para nós o futuro, com um riso na voz carente. E os Deuses tinham tapado os olhos para não ver. À medida que fazíamos amor no sofá, ignorando todos os princípios toscos que nos tinham ensinado em casa e no colégio católico, deixámo-nos estar tão perto um do outro como um ser humano pode estar.

Depois do pôr-do-sol, esse foi o nosso pôr-de-lua. Suor e saliva trocados, juntamente com palavras de amor e de prazer. Sem pudores toscos. Sem medo de nada. Com os Deuses a olharem para nós, desaprovando a ideia. Hoje, é quase como se conseguisse recordar-lhes o sussurro aos meus ouvidos. Pobre coitada, que mal sabe o que a espera. Mas, naquele dia, não ouvi. Os Deuses não! Ouvi-te a ti a dizeres que me amavas. Loucamente encantado pelo meu jeito de mulher. Sem pena de nada e com fome de tudo. Porque a vida tinha tanto para dar.

A luminescência intermitente da televisão nos teus olhos dava-lhes uma tonalidade de mar. Lembrando as horas antes, quando o sol nele se punha. E quase vislumbrei o fantasma da felicidade ali, saltando, de esperança, querendo devolver o fogo que nós tínhamos perdido.

Sim… perdido. Mas naquela noite não. Houve algo no pôr-do-sol e na luta antiga entre povos que me fez acreditar. Pela última vez. Sem eu saber que era a última vez que acreditava.

É verdade. Foi o último pôr-do-sol sem mágoa. A última vez em que acreditei que, no dia a seguir, haveria luz. E, embora me sobrassem dias para te sentir o calor, eu sabia: Todos os dias seriam sol posto, na contagem decrescente para um adeus sem retorno. O sol pusera-se para dar sombra à minha sepultura, talhada de dor sob as pedras da solidão.

Acordei para a desolação e o desalento. Disse que sabia que ias, olhando para os olhos onde já não havia sombra nem fantasma de felicidade. Aceitei, porque só isso pode fazer-se, a decisão da partida. E, mesmo depois, com prazo de validade estipulado, deixei que o meu corpo fosse teu outra vez, muitas vezes… e não as suficientes.

Morri.

Foste e eu morri. Respiro e ainda estou morta. Vou estar sempre morta. E tenho saudades tuas. Mas muito mais saudades desse último pôr-do-sol. Porque foi última vez em que acreditei que, no dia a seguir, haveria luz.






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