É preciso que acabe. O fim é um mal necessário. Enquanto
vive, não se enterra. A história. É preciso que acabe. Que morra. Que alguém
diga. Paz à sua alma. Que se espalhe sal na linha das portas e das janelas. Que
não se queira o retorno ao anteontem que já foi há mil anos. É preciso que
acabe. Alguém o diga à minha alma, por favor.
Nasci no tempo dos eternamentes. Quando já nada era eterno.
Quando as pessoas já nem queriam que alguma coisa o fosse. Eterna. Nasci a
querer eternamente uma camisola igual à que desbotou em vez da novidade
tendência da estação. E a querer que colem o olho no meu peluche favorito em
vez de me comprarem um novo. Habituei-me a querer eternidades desde cedo. Quis
sempre eternidades. E nunca as tive.
Disseram-me que eu havia de ser uma eterna descontente.
Primeiro, pela forma como preferia gestos a palavras. Depois, pela forma como
preferia palavras a prendas. Mais tarde, porque preferia florestas a centros
comerciais. Seguindo, porque preferia relacionamentos a noites fugazes. Disseram-me
que eu havia de ser uma eterna descontente. E tinham razão.
As ruas onde passo ainda têm pedras dos tempos antigos. Por
isso duram. E os romances que leio ainda têm amores dos tempos antigos. Por
isso têm finais felizes ou dramáticos mas que permanecem além da última página
e se perpetuam pelas eras, além da contracapa. Hoje, tudo é feito de nada. Até
as pedras da calçada saltam com maior facilidade. Até os romances saltam das
prateleiras das livrarias, abrindo-se em páginas cheias de letras e sem
conteúdo. Sou uma eterna descontente. Porque quero que tudo fique. Nem que seja
só mais um bocadinho. E esse bocadinho, quando existe, nunca chega.
A eternidade pesa-me no desejo pelo improvável. Sinto-me a
procurar, permanentemente, perpetuamente, aquele rosto atrás do qual mora uma
alma velha como a minha. Capaz de me dizer. Também eu prefiro gestos a
palavras. Palavras a prendas. Florestas a centros comerciais. Relacionamentos a
noites fugazes. Pedras de chão que durem e romances que não desvaneçam.
Sinto-me a procurar, permanentemente, perpetuamente, aquele rosto atrás do qual
mora uma alma velha como a minha. E talvez eu esteja cega. Ou talvez eu veja
demais. Além das pedras desse chão. E dentro dos outros.
Pior do que não encontrar. Esse rosto de alma velha. Pior do
que isso é apenas uma coisa. Encontrá-lo. Encontrá-lo depois de termos julgado,
uma ou duas vezes, que já o tínhamos encontrado. E buscar, no centro da nossa
descrença, ainda o laivo da fé que nos faz dizer: aqui estás tu.
É de uma profundidade tão inusitada que, de repente, não
queremos. Não o queremos para nós. Queremos… mas como se quer uma peça de
museu. Ali. A uma distância que nos permita olhar mas sem tocarmos, para que
não se estrague a raridade da alma encontrada. Às vezes, digo ao meu corpo. Tem
calma. Não estragues. Mas ele quer. Estragar não. Tocar. E lembra-me de que me
encontro ainda presa a outras histórias. Justamente por isso. Deixa. Liberta.
Larga. É preciso que acabe. O fim é um mal necessário. Enquanto vive, não se
enterra. Não vai repetir-se. Não vais estragar tudo. Outra vez.
A eternidade. Dos gestos sobre as palavras. Das palavras
sobre as prendas. Das florestas sobre os centros comerciais. Dos
relacionamentos sobre as noites fugazes. Das pedras de chão que duram. Dos
romances que não desvanecem.
Querer o toque. E ir.
Raios.
É preciso que comece. O amor é um mal necessário. Enquanto não
se toca, não se vive. A história. É preciso que comece. Que viva. Que alguém
diga. Olha a sua alma velha. Que se espalhem sorrisos e abram portas e janelas.
Que se queira o retorno ao amanhã que ainda não chegou. É preciso que comece.
Mas alguém diga à minha alma, por favor, que tudo tem fim.
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