Eu conseguia sentir a agitação das moléculas. Dos pigmentos.
Dentro da caneta, com o bico ainda no ar, sem tocar o papel.
Tamanha era a excitação delas que a mão me tremia, no
contacto com o fino da caneta, de ponta aguçada e azul.
Pedi-lhes calma e paciência. Mas elas não tinham. E riam.
Riam alto da tinta que já tinha sido derramada sobre a folha, como se fosse
indigna.
Com a mão trémula, de caneta entre os dedos, eu dei por mim
a recostar-me na cadeira. Menos, meninas,
menos. Mas elas não faziam por menos nem demonstravam a mínima intenção de
acalmar-se para me deixar pensar e escrever.
Eu conseguia sentir a agitação das moléculas. Dos pigmentos.
Como uma manhã sambada de Carnaval brasileiro. Dançando no interior da recarga
da caneta. Saltitando, como crianças depois de comerem açúcar em demasia no
quedar da noite.
Fui eu que as eduquei assim? Perguntei-me. Mas no vazio da
divisão, eu era o único ser capaz de responder. A gata ressonava, na manta
vermelha, com a língua meio de fora. E o papel era branco como as paredes,
pautado de linhas como a parede o era de rachas.
E elas insistiam. Enchiam-me a solidão do silêncio com um
burburinho muito próprio que me fazia doer a cabeça. Menos, meninas, menos. Pouco importam os pedidos calados. As
moléculas de tinta são feitas de um pigmento criado com misturas acobreadas de
azul-ftalo ou trifenilmetano, materiais teimosos e impossíveis de domesticar.
Mas a caneta permanecia a uma distância segura do papel.
Como os meus amantes. Naquele ponto onde o toque está iminente e não se dá.
Onde ainda é possível evitar um ponto final que manche a brancura imaculada da
folha que veste a mesa.
A mão tremia. Na agitação daqueles pigmentos selvagens que
celebravam, como se nascesse um novo século de cada vez que os meus dedos
envolviam o plástico já gasto da almofadinha da caneta.
A euforia delas era despropositada. E eu sentia a mão, essa
mão que não se dava a ninguém, tremente nesse encontro com o inesperado
entusiasmo das moléculas minúsculas e azuis que preenchiam a carga, já a meio,
da caneta velha.
Se os pedidos não me funcionavam, achei que talvez as
ameaças o fizessem. Ou vocês param ou…
mas como é que se ameaçam pigmentos de tinta, sem que sintamos que, no silêncio
da casa, ao lado da gata, estamos a enlouquecer?
A mão que tremia deixou de ser minha, à medida que as
moléculas de tinta exerciam um qualquer poder demolidor sobre a minha ausência
de vontade e ditavam uma anarquia louca sobre as minhas intenções. Eram um
exército invasor de folhas, a escrever um romance que eu não queria ter
escrito, com palavras que eu nunca teria dito, nem que pudesse dizer…
As moléculas de tinta geraram palavras. Pariram-nas. De uma
forma tão visceral que rasgavam até os meus pensamentos, dando-lhes uma forma
que nenhuma ficção toma, já que é impossível fingir a vida.
E, quando a mão me parou, a viagem que tinha feito era
cáustica e a carga da caneta estava vazia. A mão parara de tremer. E as
moléculas de tinta tinham morrido, secas no papel.
O suicídio inusitado do pigmento deu-me uma pequena vontade
de chorar. À medida que, arrastando os olhos para o epílogo, lia a sua nota
final: um dia fomos moléculas de tinta, agora somos uma história de amor… e tu
podes, finalmente, ser quem quiseres.
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