terça-feira, 28 de janeiro de 2020

As moléculas de tinta




   Eu conseguia sentir a agitação das moléculas. Dos pigmentos. Dentro da caneta, com o bico ainda no ar, sem tocar o papel.

   Tamanha era a excitação delas que a mão me tremia, no contacto com o fino da caneta, de ponta aguçada e azul.

   Pedi-lhes calma e paciência. Mas elas não tinham. E riam. Riam alto da tinta que já tinha sido derramada sobre a folha, como se fosse indigna.

   Com a mão trémula, de caneta entre os dedos, eu dei por mim a recostar-me na cadeira. Menos, meninas, menos. Mas elas não faziam por menos nem demonstravam a mínima intenção de acalmar-se para me deixar pensar e escrever.

   Eu conseguia sentir a agitação das moléculas. Dos pigmentos. Como uma manhã sambada de Carnaval brasileiro. Dançando no interior da recarga da caneta. Saltitando, como crianças depois de comerem açúcar em demasia no quedar da noite.

   Fui eu que as eduquei assim? Perguntei-me. Mas no vazio da divisão, eu era o único ser capaz de responder. A gata ressonava, na manta vermelha, com a língua meio de fora. E o papel era branco como as paredes, pautado de linhas como a parede o era de rachas.

   E elas insistiam. Enchiam-me a solidão do silêncio com um burburinho muito próprio que me fazia doer a cabeça. Menos, meninas, menos. Pouco importam os pedidos calados. As moléculas de tinta são feitas de um pigmento criado com misturas acobreadas de azul-ftalo ou trifenilmetano, materiais teimosos e impossíveis de domesticar.

   Mas a caneta permanecia a uma distância segura do papel. Como os meus amantes. Naquele ponto onde o toque está iminente e não se dá. Onde ainda é possível evitar um ponto final que manche a brancura imaculada da folha que veste a mesa.

   A mão tremia. Na agitação daqueles pigmentos selvagens que celebravam, como se nascesse um novo século de cada vez que os meus dedos envolviam o plástico já gasto da almofadinha da caneta.

   A euforia delas era despropositada. E eu sentia a mão, essa mão que não se dava a ninguém, tremente nesse encontro com o inesperado entusiasmo das moléculas minúsculas e azuis que preenchiam a carga, já a meio, da caneta velha.

   Se os pedidos não me funcionavam, achei que talvez as ameaças o fizessem. Ou vocês param ou… mas como é que se ameaçam pigmentos de tinta, sem que sintamos que, no silêncio da casa, ao lado da gata, estamos a enlouquecer?

   A mão que tremia deixou de ser minha, à medida que as moléculas de tinta exerciam um qualquer poder demolidor sobre a minha ausência de vontade e ditavam uma anarquia louca sobre as minhas intenções. Eram um exército invasor de folhas, a escrever um romance que eu não queria ter escrito, com palavras que eu nunca teria dito, nem que pudesse dizer…

   As moléculas de tinta geraram palavras. Pariram-nas. De uma forma tão visceral que rasgavam até os meus pensamentos, dando-lhes uma forma que nenhuma ficção toma, já que é impossível fingir a vida.

   E, quando a mão me parou, a viagem que tinha feito era cáustica e a carga da caneta estava vazia. A mão parara de tremer. E as moléculas de tinta tinham morrido, secas no papel.

  O suicídio inusitado do pigmento deu-me uma pequena vontade de chorar. À medida que, arrastando os olhos para o epílogo, lia a sua nota final: um dia fomos moléculas de tinta, agora somos uma história de amor… e tu podes, finalmente, ser quem quiseres.






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terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Tudo para ser





Achei, durante muito tempo, que tinha tudo para ser rica menos o dinheiro. Mas os anos passaram…

Por não ter dinheiro para ser rica, apaixonei-me pelas estrelas. As estrelas. Aquelas simples e cintilantes, no nosso céu onde durante mais de trezentos dias por ano nem chove. E as estrelas. Deuses, como explicar? As estrelas faziam-me feliz. Não é o céu d' A Noite Estrelada de Van Gogh que me faz sorrir. É aquele, ali em cima, sem ingresso de museu nem avaliação milionária. Aquele que resplandece mais nas noites mornas do Verão alentejano e que se estende depois do ato inicial de um pôr-do-sol sempre diferente.

Por não ter dinheiro para ser rica, apaixonei-me pela sensação das mãos cheias. Mas nunca foi o abraço anelar da prata e do diamante que me fez falta; nem o ouro; nem os sacos com compras disparatadas. Sempre foi a sensação das mãos cheias da massa de piza feita à mão, preparando risos para mais logo. As mãos repletas de tinta de guache e de tinta-da-china, preparando projetos para os sobrinhos. O cheio dos teus dedos nos meus, envolvendo os meus, sem promessas, de uma forma que firmou compromissos da forma que nenhum anel pode.

Por não ter dinheiro para ser rica, apaixonei-me pelo chão quente. Não pelo chão aquecido dos hotéis de cinco estrelas. Pelo chão quente do sol batido a pique pelo meio-dia. Ao lado das lagoas e dos montes. Apaixonei-me pela sensação de pés, que não precisam de ter sapatos da melhor pele para se descalçarem e comprarem o prazer da vida nas areias e nas terras e nos lodos da floresta. Sempre a pensar o mesmo. Eu tinha tudo para ser rica, menos o dinheiro.

Por não ter dinheiro para ser rica, apaixonei-me pelos sabores. Não pelos sabores gourmet dos pratos faustosos, dignos da mesa real e servidos em restaurantes magnificentes. Pelo frango assado comido à mão à roda de mesas de piquenique com a família. Pelas tostas mistas feitas às três pancadas e os hambúrgueres com demasiado molho e as batatas com demasiado óleo em bares nas noites com os amigos. Pelas empadas aquecidas no micro-ondas no café da minha irmã. Os sabores salgados, misturados com o doce do amor que se entrega em gestos simples.

Por não ter dinheiro para ser rica, apaixonei-me pelas viagens. Não por aquelas que se fazem a Paris e ao Cairo mas por aquelas que se fazem dentro da cabeça, com as imagens e as palavras a servirem de meio de transporte. Descobri que elas me levam a quase toda a parte. Incluindo a lugares que não existem. E não existem épocas altas e épocas baixas, senão as dos sentidos e as dos sentimentos.

Tudo o que fiz foi, talvez, feito por não ter dinheiro para ser rica. Por ter apenas o suficiente para viver dignamente. Sem direito ao extraordinário ou à opulência. Num mundo onde tudo se compra e as pessoas se vendem por tão pouco, eu achei, durante muito tempo, que me faltava o dinheiro para ser rica. Mas hoje, quando olho para todas as coisas que amo, eu compreendo: é justamente por não ter dinheiro para ser rica que eu o sou.






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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Toda a gente sabe




Toda a gente sabe que o amor nasce de noite, quando está escuro. Toda a gente sabe. O amor não é cego. Mas escolhe a noite. Para não ver, tão concretamente, naquele aproximar de dois rostos, as sombras que a luz causa. E onde o potencial da falha está escrito. E onde o fim anunciado já ondeia, fantasmagórico.

Aprendi a duvidar, na noite. Porque toda a gente sabe que o amor escolhe a escuridão. E toda a gente sabe que ele escolhe a escuridão para nos iludir. Seria bom que a lua reservasse para si as emoções e elas não entrassem pelos nasceres do sol lá fora. Mas, à luz do dia, tudo é diferente. As florestas serão, talvez, menos assustadoras. Mas o amor? O amor é muito mais aterrador quando o dia nasce.

Eu sei. Como toda a gente sabe. O amor nasce de noite, quando está escuro. O pó sobre a mobília não é falta de brio mas passagem de fada. As rachas na parede não são falta de condição mas traço no centro de frases inacabadas em nosso entorno. E as manchas no sofá não são memória de conteúdos derramados mas vias lácteas no Universo onde os corpos se entregam, juntos, a viagens espaciais. Naquele Espaço de não haver espaço entre os corpos.

E a iluminação das ruas, nessas noites onde o amor nasce, não tem lágrimas pendentes nos olhos. Fazem-se conversas que geram bateres desajustados no peito agreste. E dizemos. É possível. Não porque seja possível. Mas porque, no escuro, nos esquecemos dos meandros da impossibilidade.

Olho para ti e olhas para mim. Toda a gente sabe que o amor nasce de noite, quando está escuro. E devíamos, tu e eu, esperar pelo dia. Pelo sol. Pela racionalidade. Mas, de repente, algures, cai uma estrela. E nós não vemos estrelas cadentes porque eu olho para ti e tu olhas para mim e existe um abraço que quer dar-se.

Tu sabes. Eu sei. Devia ser só um abraço. Uma despedida. Por hoje. Um beijo pendente para outra vida, onde seja mais certo, mais atempado. Mas toda a gente sabe que o amor escolhe a escuridão. E nós somos seres noturnos, lado a lado.

O abraço parte-se. O amor nasce de noite, quando está escuro. E é errado. Mas não parece errado. Não sinto que é errado. De repente, tens um segundo para salvar a tua vida. O abraço parte-se. O beijo troca-se. A noite é menina.

Quando o sol vem, à luz do dia tudo é diferente. As florestas parecem menos assustadoras. O amor não. O amor é muito mais aterrador na claridade. Porque, mesmo nascido nas entranhas sombrias da obscuridade, quando o amor nasce é difícil de esconder e impossível de matar.






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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Desprevenida



Fotografia de Raul Pinto


Apanharam-me desprevenida. Uma vez ou duas. Ou meio milhão de vezes. Ninguém está a contar. Exceto eu. Eu estou. A contar. Mas não gosto de pensar em números. Pensá-los traz-me amargura. Não por ser incompreendida mas por não compreender. Como podem. Eles. Aqueles que não precisam de nome, pela massa perfeitamente homogénea que os aglomera numa suposta normalidade. Como podem?

Apanharam-me desprevenida. Falaram de Deus e tentaram roubar-me a fé, porque divergia da deles. Em algumas das vezes, porque eu era mulher, disseram-me que Deus não vê diferença entre homens e mulheres. E depois trataram-me mal por ser mulher. Noutras, disseram-me que Deus não vê diferença entre pobres e ricos. E, depois, trataram-me mal porque não tinha dinheiro. Ainda noutras, disseram-me que Deus não vê a diferença entre os corpos. E, depois, trataram-me mal porque o meu não era perfeito. Quando me roubaram a fé, pensei. Eu não tenho culpa que o vosso Deus seja cego. Ou iludido. O mundo é cruel. A igualdade morre onde começa a fome. Onde começam as pedras lançadas na praça pública. Onde começa o esconder do rosto no braço que se estende para pedir esmola.

Apanharam-me desprevenida. Em algumas das vezes, encheram-me os ouvidos de palavras, distraindo-me enquanto me metiam as mãos nos bolsos para roubar o que houvesse de felicidade. Noutras, as mãos sob as roupas, para procurar um prazer, disfarçando luxúria com um pretenso amor. Quando me roubaram a felicidade e o decoro, eu pensei. É perdoável. O roubo da felicidade e o uso do corpo, isto é. Mas, por favor. Não conspurquem a palavra amor. O amor não tem culpa que o mundo seja cruel.

Apanharam-me desprevenida. Estenderam-me mãos, dizendo-me que podia largar os corrimões da escada que ruía, na madeira embebida de lágrimas e podre. Podes largar o corrimão. Agarra-te a mim. Apanharam-me desprevenida e com vontade de acreditar que o mundo não era cruel. Quando me roubaram a força, vestiram máscaras de amizade e de companheirismo. Deram-me abandono, deixaram-me caída no chão. Um ou outro – entre esses “eles” homogéneos – riu-se de mim. Ali. No chão. Porque tudo o que me sobrava era isso. Chão.

Apanharam-me desprevenida. Por ter sido apanhada desprevenida tantas vezes, compreendi que podia sobreviver. Mas que, para o fazer, só havia dois caminhos: ser como eles ou ser melhor do que eles. Escolher o cinismo e a mentira ou escolher a dor e a aceitação. Escolher ser quem rouba ou quem fica até sem as sobras, sem chão.

Não vão apanhar-me desprevenida. Ainda que o meu coração seja dócil e fácil de ferir. Estou preparada. Quando me roubarem o chão, eu vou escalar as paredes.






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