terça-feira, 25 de agosto de 2020

Uma beleza incontestável

 

Modelo: Mariana Neves

A beleza dela era incontestável. E uma beleza ser incontestável é muito difícil de encontrar. Existem belezas indescritíveis. Belezas evidentes. Belezas supremas. Belezas extraordinárias. E o leque de adjetivos continua, infinito… mas a dela?! A dela era única porque era incontestável. Mundial e global e universalmente incontestável.

 

Não importava a cultura, o género, a orientação sexual nem a opinião pessoal. Não haveria uma pessoa ao cimo da terra que não tivesse, ao olhar para ela, no seu jeito mais simples de ser, a certeza de que ela era bela.

 

A beleza dela seria enaltecida em qualquer idioma e aceite nos olhos de qualquer religião, incluindo cultos, seitas e filosofias de vida. E, melhor ainda, mesmo no mundo sempre esquecido da deficiência, a beleza dela seria notada. Teria uma palavra específica em linguagem gestual, gerando um gesto amplo, feito com um sorriso. Um invisual seria capaz, simplesmente por lhe ouvir a voz ou sentir a presença, de dizer que ela era, de facto, lindíssima.

 

Quando olhei para ela, ela estava sentada do outro lado de uma mesa. Com o uniforme do trabalho. A fotografia que trazia ao peito, diretamente sobre o nome, assumidamente raro pelo apelido inusual, mostrava que tinha perdido peso. O cabelo castanho, agora mais curto e melhor tratado do que o da fotografia, dizia que aprendera a amar-se um bocadinho mais ou a cuidar-se um bocadinho melhor. Tinha a boca tapada. Naquele dia. Na fotografia, os lábios eram cheios e estavam numa linha suave, de quem não gosta da exposição à lente mas cede à obrigação por precisar de ter uma foto tipo passe no currículo, no passe do comboio, na identificação do trabalho. A forma como movia as mãos no teclado era firme e decidida, sabendo exatamente o percurso das teclas e clicando nelas com um profissionalismo incomum.

 

Falou-me com cortesia e com uma sensibilidade que se exprimia nas palavras e nos olhos em igual medida, atendendo às minhas necessidades emocionais, tanto quanto às materiais, e cumprindo o seu papel de ser humano com a mesma mestria que imprimiu em todos os momentos do trabalho, repetitivo e provavelmente mal pago.

 

Fazendo todos os possíveis para me ajudar e amenizando até o calor das lágrimas que a dado ponto me encheram os olhos, ela foi terna e compreensiva, empática e calorosa. E eu olhei para ela e vi. Vi como ela era bonita. Mais do que bonita. Incontestavelmente bonita.

 

Sim! A beleza dela era incontestável. E uma beleza incontestável é muito difícil de encontrar num mundo de belezas extremas e fúteis, que servem de pouco. Mas a dela? A dela era única porque era incontestável. Mundial e global e universalmente incontestável. De uma forma tão completa e única que, mesmo que nunca mais a veja, não poderei permitir-me esquecê-la.

 

A beleza dela era incontestável. Vinha de dentro e emanava na pele lúcida, mesmo debaixo da luz artificial da loja. Os meus olhos, lavados com lágrimas, cegavam-me. Mas, mesmo de olhos temporariamente cegos, eu entendi. A beleza dela suplantava culturas, géneros, orientações sexuais e qualquer tipo de diferença que o mundo ainda insista em ter. Era pura. Insofismável. Incontestável. Única. Aquele tipo de beleza que só existe em quem, despindo-se de si, reflete o melhor do mundo.





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terça-feira, 18 de agosto de 2020

Migalhas

 



Viver faz migalhas

 

Isso mesmo. Viver faz migalhas. Seja no pão trincado descuidadamente, na areia dos sapatos, no escamar da pele depois do verão ou no coração partido.

 

Viver faz migalhas.

 

Passamos o tempo a varrê-las. As migalhas da vida. Algumas para os caixotes, algumas para debaixo dos tapetes, algumas para dentro da garganta, engolindo-as em seco e deixando-as arranhar no peito, onde ficam a esfoliar as paredes ocas dos músculos, dos ossos, dos órgãos até sedimentarem outra vez e serem parte da muralha de nós.

 

As migalhas podem bem ser lixo. Mas muitas vezes não são. Muitas vezes são um fragmento válido de algo que ainda pode misturar-se em lágrimas para as absorver ou para se dissolver nelas. Uma espécie de amor em pó que cria tonalidades cristalinas nos sentidos e os acorda, mesmo quando, durante tanto tempo, estiveram dormentes.

 

Não vale a pena tentar limpar os pés na entrada ou colocar um prato debaixo da sandes. Não vale a pena passar loções untuosas no corpo nem segredar mentiras sem nexo aos fantasmas que moram em nós. É tudo uma questão de entender. A vida erode tudo o que é concreto. Seja pelo vento, pelo bater das ondas na rocha firme do véu, ou pela ação humana, em mãos que vibram nas teclas, nas cordas, nos corpos. A vida destrói. A vida desfaz.

 

Viver faz migalhas.

 

Até as estrelas que moram longe da realidade humana foram um dia poeira. Migalha. Parte menor de uma história universalmente grande. À espera de ser luz, explosão, migalha outra vez.

 

Até as árvores, donas de raízes vastas e ramos fortes, foram um dia semente. Migalha. Parte menor de uma história naturalmente grande. À espera de ser ar, vida; migalha outra vez.

 

Não sou pessimista. Mas também não sou mais do que a estrela e a árvore. Migalha a tentar ser gente e que, passo a passo, se desfaz em fragmentos pequeninos, descobrindo o que é amor. Da maneira mais simples, sem querer defini-lo.

 

Viver faz migalhas.

 

Estas que trago no peito insistem em viver comunitariamente com a mesma ideia e o mesmo credo. Vivem de paixão, de sentimento, de querer(-te). Falam umas com as outras. Discordam umas das outras nas discussões sobre a política mundial e questões filosóficas mas concordam que o amor és tu. E, por concordarem só nisso, tornam-se partículas quase invisíveis de amor, que vou espalhando, por onde passo, sem pedir retorno.

 

Penso, muitas vezes, que gostava que cada migalha desse amor fosse semente. Que crescesse e se reproduzisse e multiplicasse até que este sentimento pudesse ser entendido, já que não pode ser partilhado.

 

Sim. Semente. Imagino que o amor se semeie porque amar exige um trabalho diário, permanente, eterno… e duvido que pegue de estaca ou que se crie por geração espontânea justamente por ser assim. Então tento. Espalhá-lo por aí. Enquanto insisto na mesma ideia. Uma ideia que incomoda sobre como tudo se erode e destrói até ser fragmento do que era.

 

A minha mãe varre o chão, descontente, e reclama. Não puseste o prato debaixo da sandes. Não pus. Ela tem razão. Mas é o que é. Desculpa. Viver faz migalhas.

 



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terça-feira, 11 de agosto de 2020

O tal

 


Um dia, ela disse-me: eu sei que ainda sou nova mas tenho medo de que nunca seja melhor.

 

E eu conhecia a história. Por alto. O suficiente. Era o bastante para poder dizer que não. Nem perto. Havia tanto, tanto mais.

 

Então, disse-lhe. Disse-lhe que só podia dizer isso quando a pessoa fosse a tal.

O tal – expliquei-lhe – vai ser aquela pessoa que, a dado ponto, te vai fazer tão feliz que não acreditas que possas voltar a sentir-te triste. Uma alegria tão intensa que podias morrer ali e estar tudo bem.

 

Ela não conhecia essa realidade. E disse que não conhecia. Duvidava, na verdade, daquele tipo de felicidade louca que eu descrevi. E fomos para casa, caminhando na descrença enraizada dela e no meu pensamento livre, com todas as suas memórias amontoadas no pequeno espaço de mim.

 

Inevitavelmente, no silêncio da noite que se seguiu, por entre as paredes lúcidas da minha insónia bêbeda de saudade, elas vieram. As memórias. A memória. Esse sorriso inebriado de esperanças que mataram o potencial da dor, vez após vez. O desconhecimento do futuro, a caber inteiro no espaço entre os nossos corpos, quando não havia espaço entre os nossos corpos. A felicidade completamente feita de massa de açúcar, essa matéria que se dissolve nas (m)águas até ser invisível. E a descrença na dor, como se as leis do mundo não ditassem vidas eternas e retornos circulares à ferida do tempo.

 

Ser feliz é um conceito e uma definição de efemeridade – pensei no escuro. E, no entanto, aqui estou. E por segundos, minutos, horas, dias, meses… acreditei! Acreditei que nunca mais ia ser triste.

 

Lembrar-me disto, já sem a presença jovem dela para me lembrar de ser adulta e forte causou um ardor no nariz e uma secura na boca, talvez pela falta de toda a água que olhos se propunham verter.

 

Pedi-lhe desculpa mentalmente. Enviando o pensamento da minha cama, à medida que me apercebia de que faltavam alguns ajustes discursivos nas palavras que dissera para explicar a imensidão dessa tal pessoa que apagava a crença na dor.

 

Porque eu disse: O tal vai ser aquela pessoa que, a dado ponto, te vai fazer tão feliz que não acreditas que possas voltar a sentir-te triste. Disse-o porque o senti. Que nunca mais ia ser triste. Mas, por entre o sonho desse amor que ainda me ilumina quando desperta a memória, esqueci-me de dizer outra coisa. Que a concretização mais plena desse amor vinha mais tarde. Quando nos apercebíamos.

 

O que ficara por dizer era infinitamente mais importante. Talvez definidor dos caminhos que ela possa escolher amanhã. Mas esqueci-me. Esqueci-me de dizer: vais ser feliz como se nunca mais pudesses ser triste. Mas, então, um dia ele vai. Quando ele for, vais ter o resto da vida para sentir que nunca mais vais ser feliz. Uma dor tão intensa que podias morrer ali e estar tudo bem.




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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Copo (entre a felicidade e a poesia)




Podia pedir-te que fizesses o meu mais doce. Como antes. Mas eu sei que tu sabes. Melhor do que eu. Fazer essa gestão de amarguras. Deixo-te verter medidas convencionadas e misturar dois ou três condimentos. O cocktail vem num copo de mágoa. E bebo-o de um trago. Sabe-me a dor. Digo que está perfeito. Sabe aos poemas, digo-te. Na vida, compreendo, não existe nada senão a felicidade e a poesia. E tu, que me serves ambos num copo só.

 

Depois de beber, fica o gelo. O gelo derrete aos poucos. Fragmento frágil de intensidades desertas. Deixa pequenas marcas condensadas no exterior. Água-lágrima de um copo sem motivo para chorar. Água-livre das prisões do vidro onde flui, corre e mancha a mesa sobre a qual ninguém se lembrou de pôr uma base.


De repente, os olhos que pousam sobre os teus são algas de oceanos inexplorados. Casa de moreias e de animais atrozes, com peles aquáticas e escamas finas. Estou no seu meio, simplesmente a olhar para o copo, onde ondeia a memória do fel. Sabe-me a dor. Digo que é perfeito. Sabe a poema. Não há, repito, nada entre a felicidade e a poesia. São as duas únicas coisas que existem dentro e fora do copo.

 

A luz da lua é-lhe emprestada mas chega. Na vida, só nos fere o que é nosso – ou foi. Começo a achar que prefiro assim. A luz emprestada da lua, a casa arrendada, o amor em segunda mão. Começo a achar que a luz perfeita para um copo de mágoas é justamente a da lua. E ela nasce cedo precisamente para me dar um toque de cor ao ambarado do líquido vítreo que veio amargo. Como qualquer poema que se preze.

 

Perguntas-me. Se está bom. Está. Não há nada na vida além da felicidade e da poesia. Ambas filhas do amor e suas donas. A felicidade e a poesia. Não há mais nada na vida.

 

O copo fica repleto de água que foi gelo depois de ser água.

 

Perguntas-me se sou feliz.

 

Respondo que sou poeta.




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