A beleza dela era incontestável. E uma beleza ser incontestável é muito difícil de encontrar. Existem belezas indescritíveis. Belezas evidentes. Belezas supremas. Belezas extraordinárias. E o leque de adjetivos continua, infinito… mas a dela?! A dela era única porque era incontestável. Mundial e global e universalmente incontestável.
Não importava a cultura, o género, a orientação sexual nem a opinião pessoal. Não haveria uma pessoa ao cimo da terra que não tivesse, ao olhar para ela, no seu jeito mais simples de ser, a certeza de que ela era bela.
A beleza dela seria enaltecida em qualquer idioma e aceite nos olhos de qualquer religião, incluindo cultos, seitas e filosofias de vida. E, melhor ainda, mesmo no mundo sempre esquecido da deficiência, a beleza dela seria notada. Teria uma palavra específica em linguagem gestual, gerando um gesto amplo, feito com um sorriso. Um invisual seria capaz, simplesmente por lhe ouvir a voz ou sentir a presença, de dizer que ela era, de facto, lindíssima.
Quando olhei para ela, ela estava sentada do outro lado de uma mesa. Com o uniforme do trabalho. A fotografia que trazia ao peito, diretamente sobre o nome, assumidamente raro pelo apelido inusual, mostrava que tinha perdido peso. O cabelo castanho, agora mais curto e melhor tratado do que o da fotografia, dizia que aprendera a amar-se um bocadinho mais ou a cuidar-se um bocadinho melhor. Tinha a boca tapada. Naquele dia. Na fotografia, os lábios eram cheios e estavam numa linha suave, de quem não gosta da exposição à lente mas cede à obrigação por precisar de ter uma foto tipo passe no currículo, no passe do comboio, na identificação do trabalho. A forma como movia as mãos no teclado era firme e decidida, sabendo exatamente o percurso das teclas e clicando nelas com um profissionalismo incomum.
Falou-me com cortesia e com uma sensibilidade que se exprimia nas palavras e nos olhos em igual medida, atendendo às minhas necessidades emocionais, tanto quanto às materiais, e cumprindo o seu papel de ser humano com a mesma mestria que imprimiu em todos os momentos do trabalho, repetitivo e provavelmente mal pago.
Fazendo todos os possíveis para me ajudar e amenizando até o calor das lágrimas que a dado ponto me encheram os olhos, ela foi terna e compreensiva, empática e calorosa. E eu olhei para ela e vi. Vi como ela era bonita. Mais do que bonita. Incontestavelmente bonita.
Sim! A beleza dela era incontestável. E uma beleza incontestável é muito difícil de encontrar num mundo de belezas extremas e fúteis, que servem de pouco. Mas a dela? A dela era única porque era incontestável. Mundial e global e universalmente incontestável. De uma forma tão completa e única que, mesmo que nunca mais a veja, não poderei permitir-me esquecê-la.
A beleza dela era incontestável. Vinha de dentro e emanava na pele lúcida, mesmo debaixo da luz artificial da loja. Os meus olhos, lavados com lágrimas, cegavam-me. Mas, mesmo de olhos temporariamente cegos, eu entendi. A beleza dela suplantava culturas, géneros, orientações sexuais e qualquer tipo de diferença que o mundo ainda insista em ter. Era pura. Insofismável. Incontestável. Única. Aquele tipo de beleza que só existe em quem, despindo-se de si, reflete o melhor do mundo.
Sem comentários:
Enviar um comentário