Fotografia de Raul Pinto
Conheces o feio de mim e viste-me
nua sem nunca me teres despido. Olhos de mel, que atravessam a camada de
maquilhagem e a da pele. Que rasgam os músculos e os órgãos. Que partem os
ossos e lhe retiram a medula do tutano, dissecando cada parte dos tecidos
gelatinosos, até ver a célula e o núcleo e a alma que reside dentro.
Conheces o feio de mim e viste-me
insana nas conversas mais naturais. Rainha da não circunstância e imperatriz da
falsa conversa feita. Com visões irreais e irrealistas sobre o mundo e as
pessoas. E dureza circunstancial, expressa rigidamente com frieza. Também sobre
o mundo e as pessoas.
Conheces o feio de mim. Tenho a
certeza de que olhaste para a candura dos meus gestos e viste a puta veterana
que eu sei ser. E tenho a certeza que, no encontro lascivo e obsceno dos
palavrões fáceis que me rasgam as conversas, conseguiste encontrar os traços da
menina perdida e inocente que, ao longo do tempo, passou pelo inferno e
sobreviveu, guardando nuances de fantasia no peito.
Conheces o feio de mim e nunca o
negaste. Por mais que os poemas me saíssem bem e as ações transmitissem
preocupação e apego pelos outros. Por mais que os toques de chefe na cozinha se
traduzissem em receitas executadas com mestria. Por mais que encontrasses
exemplos do meu eu a sair de mim e a mudar de caminhos e planos para ajudar
alguém. Por mais que eu me esforçasse por ser, nos meandros do trabalho, mais e
melhor do que todos os profissionais do mundo. Nunca viste perfeição em mim.
Soubeste sempre que eu era totalmente imperfeita. Errada e erro. Peça fabricada
com defeito, sem lugar neste mundo ou noutro, se o há.
Conheces o feio de mim e não tens
pudor nenhum em dizê-lo. Em mostrá-lo. Em deixar que eu o saiba. Conheces o
feio de mim. É-te tão evidente quão feia eu sou, que não consegues conceber,
sequer, que eu pudesse ser outra coisa que não este erro, com pernas de medidas
desfasadas e anca torta, a caminhar pelo mundo, fingindo que vai direita.
Conheces o feio de mim. Com os
olhos, rasgaste cada tecido, do cutâneo ao ósseo. E descobriste uma matéria
muito própria, com a qual nenhuma normalidade se constrói. Conhecedor dos meus
defeitos, imperfeições, vícios, exageros, carências, devassidões, hipérboles e
demências, fizeste a coisa mais corajosa do mundo. Gostaste de mim.
Muito mais monstro do que mulher.
Muito mais feia do que bonita. Muito mais errada do que certa. Olhaste para
mim, como espelho onde se refletia o teu corpo. Esse que, quando reduzido à
alma que fica dentro do núcleo da célula do tutano do osso, também não sente
que tem lugar em algum lado. Nesse olhar, conhecendo e reconhecendo o feio de
mim, talvez tenhas descoberto que pertencemos ao mesmo Reino, à mesma espécie,
à mesma jaula.
Monstro, como eu, abriste também o
peito para me mostrares o espaço que toda a gente negou e maltratou. Depositei
nele o material fragmentado do que um dia tinha sido o meu coração. E achei que
estava em casa, pela primeira vez.
Conheces o feio de mim. Conheces,
como quem conhece a rota diária das suas visitas ao sonho da não existência.
Conheces o feio de mim. Tão profundamente que é como se não precisasses de
conhecer mais do que a tua própria essência. Conheces o feio de mim. A ponto de
não teres medo que também eu explore o que fica dentro do núcleo das tuas
células. Conheces o feio de mim…
Mas depois olhas-me. E, quando me
olhas, é o mundo que é feio. Sinto-me gente. Melhor do que gente. Monstro. Olho
para ti. Sinto que somos feitos da mesma matéria de sonho. Sei que, para sermos
iguais, tens no âmago uma feiura inerente, que o mundo despreza e condena. Mas,
Deuses, é justamente por isso que eu acho que és tão bonito…
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