terça-feira, 28 de abril de 2020

O feio de mim


Fotografia de Raul Pinto



Conheces o feio de mim e viste-me nua sem nunca me teres despido. Olhos de mel, que atravessam a camada de maquilhagem e a da pele. Que rasgam os músculos e os órgãos. Que partem os ossos e lhe retiram a medula do tutano, dissecando cada parte dos tecidos gelatinosos, até ver a célula e o núcleo e a alma que reside dentro.

Conheces o feio de mim e viste-me insana nas conversas mais naturais. Rainha da não circunstância e imperatriz da falsa conversa feita. Com visões irreais e irrealistas sobre o mundo e as pessoas. E dureza circunstancial, expressa rigidamente com frieza. Também sobre o mundo e as pessoas.

Conheces o feio de mim. Tenho a certeza de que olhaste para a candura dos meus gestos e viste a puta veterana que eu sei ser. E tenho a certeza que, no encontro lascivo e obsceno dos palavrões fáceis que me rasgam as conversas, conseguiste encontrar os traços da menina perdida e inocente que, ao longo do tempo, passou pelo inferno e sobreviveu, guardando nuances de fantasia no peito.

Conheces o feio de mim e nunca o negaste. Por mais que os poemas me saíssem bem e as ações transmitissem preocupação e apego pelos outros. Por mais que os toques de chefe na cozinha se traduzissem em receitas executadas com mestria. Por mais que encontrasses exemplos do meu eu a sair de mim e a mudar de caminhos e planos para ajudar alguém. Por mais que eu me esforçasse por ser, nos meandros do trabalho, mais e melhor do que todos os profissionais do mundo. Nunca viste perfeição em mim. Soubeste sempre que eu era totalmente imperfeita. Errada e erro. Peça fabricada com defeito, sem lugar neste mundo ou noutro, se o há.

Conheces o feio de mim e não tens pudor nenhum em dizê-lo. Em mostrá-lo. Em deixar que eu o saiba. Conheces o feio de mim. É-te tão evidente quão feia eu sou, que não consegues conceber, sequer, que eu pudesse ser outra coisa que não este erro, com pernas de medidas desfasadas e anca torta, a caminhar pelo mundo, fingindo que vai direita.

Conheces o feio de mim. Com os olhos, rasgaste cada tecido, do cutâneo ao ósseo. E descobriste uma matéria muito própria, com a qual nenhuma normalidade se constrói. Conhecedor dos meus defeitos, imperfeições, vícios, exageros, carências, devassidões, hipérboles e demências, fizeste a coisa mais corajosa do mundo. Gostaste de mim.

Muito mais monstro do que mulher. Muito mais feia do que bonita. Muito mais errada do que certa. Olhaste para mim, como espelho onde se refletia o teu corpo. Esse que, quando reduzido à alma que fica dentro do núcleo da célula do tutano do osso, também não sente que tem lugar em algum lado. Nesse olhar, conhecendo e reconhecendo o feio de mim, talvez tenhas descoberto que pertencemos ao mesmo Reino, à mesma espécie, à mesma jaula.

Monstro, como eu, abriste também o peito para me mostrares o espaço que toda a gente negou e maltratou. Depositei nele o material fragmentado do que um dia tinha sido o meu coração. E achei que estava em casa, pela primeira vez.

Conheces o feio de mim. Conheces, como quem conhece a rota diária das suas visitas ao sonho da não existência. Conheces o feio de mim. Tão profundamente que é como se não precisasses de conhecer mais do que a tua própria essência. Conheces o feio de mim. A ponto de não teres medo que também eu explore o que fica dentro do núcleo das tuas células. Conheces o feio de mim…

Mas depois olhas-me. E, quando me olhas, é o mundo que é feio. Sinto-me gente. Melhor do que gente. Monstro. Olho para ti. Sinto que somos feitos da mesma matéria de sonho. Sei que, para sermos iguais, tens no âmago uma feiura inerente, que o mundo despreza e condena. Mas, Deuses, é justamente por isso que eu acho que és tão bonito…





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terça-feira, 21 de abril de 2020

Um amor de conto de fadas



Fotografia de Analua Zoé 



Disseram-me que eu queria um amor de conto de fadas. Desculpem. Não. Já não. Agora não. A última coisa de que estou à procura é de um amor de conto de fadas.

Eu tive um amor de conto de fadas. Daquelas narrativas meio desenhadas, onde não temos a certeza se saltámos o ecrã e tomámos forma animada, num universo onde os ratinhos nos calçam os sapatos e os passarinhos nos penteiam os cabelos.

Nesse meu amor de conto de fadas, tudo começou com canções. Elas entravam pela janela aberta na tela do computador. E inebriavam os olhos que marejavam, sorvendo a água das nuvens e fazendo raiar o sol pelas frestinhas do vidro, de onde pulavam arcos-íris, quarto dentro.

O meu amor de conto de fadas beijou-me numa noite de fogueiras acesas na praia e numa noite onde rebentaram cores dispersas pelo céu noturno, em fogo-de-artifício. Nessa noite, para nos ver, até a lua se chegou um pouco mais perto da Terra, como não fazia há séculos e, por séculos, tornará a não fazer.

O meu amor de conto de fadas entrou na minha vida com as mãos vazias mas de coração pleno e olhos cheios de mar. Disse-me que todo o nada que tinha se enchia com a esperança de ser meu. Então, encostados a um símbolo papista e de olhos postos num mundo pagão, com vistas até ao infinito esclarecedor do mar e sobre as copas de mil árvores, ele pediu-me. Tinha trejeitos de criança na voz, como se temesse, mas um jeito de príncipe encantado, banhado de sol e sombra, na tarde mais quente do ano. E eu dei-me. Completa. Sem pôr medidas e sem fazer planos de contenção para o caso de tudo correr mal. O sol aquecia o ar e a paixão aquecia as veias. Arrefecemos nus, algures, numa cama aos pés de um Palácio de Pedra.

Avançou a história do meu amor de conto de fadas. Os sons de canção passavam por debaixo das portas e pelas fechaduras. Era um musical feito pelos melhores produtores do mundo. A encher-me a vida e o peito. A permear cada pedacinho meu. Princesa encantada no reino da dívida fácil, paga de bom grado com mãos desertas que sabiam que a plenitude residia noutras mãos.

Deuses. As mãos. Se não se davam aos pianos e às cordas de guitarra, davam-se às minhas. E era tudo o que um conto de fadas pode ser. Mas, vocês sabem, não há conto de fadas sem enredo nem enredo sem desgraça. Todos os romances sem intriga poderiam ser apenas uma receita de bolos. E, por isso, um amor assim teria dias escuros e negros. Sombrios e desesperados. Por entre eles, só a esperança de que os protagonistas não sucumbissem às trevas.

Somos humanos. Não podemos deixar de sucumbir ao que, tão concretamente, trazemos dentro. Lutei contra fumo. E o fumo dispersava à minha volta. Prendia-se às minhas roupas. Aos meus cabelos. À minha pele. Havia mares de inverno nos olhos que, outrora, me tinham sido doces e a sua mágoa gelava-me a alma e fazia-me sentir que o vilão era eu.

Um dia, percebi que os amores de contos de fadas terminam no momento da união por um motivo. Há histórias que não devem continuar além do clímax da sua felicidade. Mas somos humanos. Não podemos terminar a história encostados a um símbolo papista e de olhos postos num mundo pagão ou enquanto arrefecemos nus, algures, numa cama aos pés de um Palácio de Pedra. Então, aceitamos que, lá à frente, vamos morrer muitas vezes às mãos do amor. E cada fim é uma morte, de onde não renascemos inteiros.

É que os contos de fadas são histórias irreais e nós somos humanos. Nós somos humanos e feios. Reais como o mundo.

Desculpem. Não. Já não. Não quero um amor de conto de fadas. A última coisa de que estou à procura é de um amor de conto de fadas. Desta vez, para variar, gostava de um amor de verdade.




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terça-feira, 14 de abril de 2020

Bem... vai ficar tudo qualquer coisa

Fotografia de Mauro Hilário


Olá, eu não sou o Covid-19 mas corro o risco de, pelo final deste texto, te fazer sentir febril ou com falta de ar. Porque outra coisa que eu não sou é uma mente optimista, a pintar arcos-íris na janela e a dizer que vai ficar tudo bem. Então, se a ilusão é o teu objetivo, peço-te: não leias o que eu tenho para dizer.

Eu sou uma pessoa comum. Que, como todas as pessoas comuns, tem família e amigos e vida social. No meu núcleo mais próximo, existem pessoas muito afetadas pela situação, em termos económicos; pessoas que se encontram num verdadeiro estado de pânico com a situação; pessoas que estão a lidar muito mal com a necessidade de se manterem fechadas entre as quatro paredes da casa. E eu, que sou uma pessoa comum, não sou uma delas. O facto de não estar – pelo menos por agora – numa situação de desemprego; de não sentir medo profundo de ser contagiada; de estar previamente habituada às quatro paredes – não muito firmes – da minha casa; coloca-me numa posição privilegiada para fazer algo bastante simples: olhar.

Na minha praceta veem-se passar algumas pessoas. A janela da minha sala dá diretamente para uma pastelaria que continua a vender pão e, por vezes, há fila. Entre as pessoas, cumpre-se o espaço de segurança e a maioria das pessoas usa luvas descartáveis e máscaras. No chão, junto aos contentores que ficam a meio caminho entre a minha casa e a pastelaria, as luvas estão caídas. Nas janelas, em redor da praça, as pessoas penduram roupa, esteja sol ou não, incluindo cobertas pesadas e almofadas que indiciam limpezas de Primavera e tédio. Em algumas marquises, colam-se desenhos infantis, provavelmente feitos nas mãozinhas inocentes das crianças da casa, com arcos-íris. As redes sociais espalham notícias. Umas são verdade; outras, mentira. Algumas são brincadeiras claras e, mesmo nessas, existe quem acredite.

Por entre a realidade da minha praceta e a realidade da Internet, surge a verdade de quem trabalha em áreas bem específicas e nos dá conta dos números. O número de infetados (que não é real porque escasseiam testes), o número de mortos, os números do PIB deste e daquele país. Mentes iluminadas garantem que é possível que o tempo de isolamento venha a provocar uma recessão pior do que a de 2009 mas dizem isto com mil e uma ressalvas sobre tudo o que ainda não se sabe.

Retiro, dos medos das pessoas no meu núcleo, sejam eles sobre saúde ou economia; das palavras dos especialistas; dos números dos jornais exatamente o mesmo: ainda não se sabe.

Eu não sei, pelo menos.

Não sei quando vou poder voltar a beijar a minha avó no rosto e a dar-lhe um abraço.
Não sei quando poderei dar a prenda de anos ao meu sobrinho.
Não sei quando poderei sentar-me para celebrar um evento em família na mesa de casa dos meus pais.
Não sei quando poderei subir novamente ao palco para defender os meus poemas, sob o olhar atento e contente dos meus amigos.

Eu não sei.

Não sei se os meus amigos do mundo da música vão conseguir manter os seus trabalhos quando isto acabar ou se terão dinheiro para se sustentarem e às suas famílias até poderem voltar aos seus trabalhos.
Não sei se os projetos que tinha para lançar este ano não vão ficar na gaveta até ao ano que vem (ou para sempre).
Não sei se o abalo económico que os meus clientes vão sentir não vai fazer com que cortem no que é dispensável.
Não sei se eu não sou dispensável.

Eu não sei.

Parece-me algo ridículo ler, aqui e ali, que vai ficar tudo bem. Também me parece ridículo ler, aqui e ali, que não vai ficar tudo bem.

Bem… vai ficar tudo de alguma maneira, isso é certo! Mas falta saber como.

Pouco se sabe sobre o vírus e nada se sabe do futuro.

Querer saber o futuro sempre foi e há-de ser a nossa febre. Não saber o futuro sempre foi e sempre há-de ser o nosso maior sufoco.

Eu não sei. Não sei se vai ficar tudo bem. Imagino que, para milhões de pessoas, ficar tudo bem já nem sequer seja uma possibilidade.

Eu não sou o Covid-19 e acho que não estou infetada por ele. Mas sou uma pessoa comum. E as conjeturas, as frases feitas e as alucinações teóricas humanas são uma grande parte do que, neste momento, me está a deixar doente.





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terça-feira, 7 de abril de 2020

Eternos


Fotografia: Miguel Pião


Eternos. Eles eram eternos. Tinham colocado aliança no dedo. Mas nem era por isso. Eles eram eternos, mesmo antes de chover arroz nas suas cabeças. Mesmo antes de Deus o aceitar. Porque eles nunca tinham precisado da aprovação de nenhum Deus. O amor deles era Deus. E a única religião de que precisavam.

Lembro-me dele sem ela. Rapaz de cabeça no ar. Que não sabia data nenhuma de cor. E não ligava a pormenores. E não queria saber que partido ganhara as eleições. E lembro-me dele a dizer que a vira pela primeira vez no dia dois de Setembro. E a dizer que notara, no dia dezasseis, que ela tinha feito nuances no cabelo, que agora dançava ao vento, acobreado. E de me dizer que a direita ia ganhar força com os acontecimentos da política atual e como isso seria mau para a liberdade dela, que era artista, selvagem e indomável.

Eternos. Eles tinham-se ligado pela primeira vez, sem falar. Porque a música estava demasiado alta e eles já sabiam o nome um do outro. E a tesão nasce no fundo dos copos do bar. Dançaram juntos. Ao longe, vi o trocar de um primeiro beijo de língua. Foi assim que se uniram pela primeira vez. Pelas línguas afiadas com as quais, mais tarde, se renderiam às ruas, gritando pelos Direitos Humanos e pelos direitos dos Não Humanos.

Lembro-me dela sem ele. Ativista de coração rijo. Dizendo que o amor era o cartaz que erguia em nome da liberdade de ser. Feminista. Vegan. Amante de animais e da Natureza que honrava. Senhora do seu nariz. E o amor que se foda. E lembro-me dela. A dizer que ele era o centro de um universo só seu. E que, um dia, era ao lado dele que queria construir um mundo melhor. E que, ao lado dele, queria criar crianças melhores, que soubessem o lugar de fala de quem teve a sorte de nascer no hemisfério do privilégio e o usassem bem.

Eternos. Eles eram eternos. Ambos desconectados das leis universais com o desejo de se encontrarem no desencanto e de o tornarem brioso outra vez.

A eternidade deles era tanta que ninguém, jamais, convidou ambos para um evento. Era consensual: se um vinha, o outro estava. Eles eram o membro que completava o corpo inacabado do outro. Amavam-se tanto que nunca cabia um átomo entre eles.

Crianças rasgaram-lhe a carne. E eram o rosto de ambos cantado ao sol. Eternos. Eles eram eternos no primeiro choro dessas crianças. E, por elas, diziam, o mundo seria melhor.

Eternos. Eles eram eternos. Fazendo um mundo melhor, filho a filho. E, de repente, já havia cem manifestações, trinta abaixos assinados e três filhos para o provar. Eles eram eternos.

Mas, um dia, ela confessou. Estou farta. E, um dia, ele disse. Deve haver algo melhor à minha espera. E, um dia, a eternidade deles morreu-me à frente dos olhos, a par com a esperança, já tão escassa, desse amor de conto de fadas.

Disse-lhe que esperava que ela encontrasse melhor. Disse-lhe que esperava que ele encontrasse o que procurava. E fiquei triste pela inevitabilidade da morte do eterno.

Eles eram eternos. Hoje, quando há um evento, é preciso convidar os dois. Trocam palavras cordiais e falam pelos filhos.

Ela não sabe em que dia ele a conheceu e também já não sai à rua com cartazes. E ele, de repente, encontra no fundo do copo de gin uma espécie de comunhão com o futuro que despreza.

Olho para eles. Eternos. Não foi o amor que morreu. Foram eles.






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