terça-feira, 27 de abril de 2021

Prazo de validade

 



Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja.

 

Quando caímos no mundo somos mais um lugar-comum. Gente que dizem perfeita, se calha ter todos os dedos nos pés e nas mãos, como se a falta de um mindinho interessasse para definir a essência do eu. Gente que dizem viva porque chora e que incentivam a chorar, naquele primeiro minuto, para, depois, tentarem silenciar o choro durante o tempo de uma vida. Somos expelidos do corpo alheio. Nunca rasgaremos outro corpo com igual violência e nunca alguém nos amará com maior intensidade do que o ser residente nessa casca rasgada por nós. E informam-nos que somos perfeitos. Não somos. Dizem-nos o nosso nome. Que não escolhemos. O mundo embala e sussurra. Vais morrer, um dia.

 

Nascemos sem memória de nascer e crescemos sem memória de crescer. O confronto com morte é uma das primeiras realidades recordadas pelos olhos que assistem ao desaparecimento das gentes, numa cadeia que pode ou não ser ciclo. Que pode ou não ser linear. Sabemos o quê e não o quando. Mesmo antes de compreendermos a diferença entre os quês e os quandos. Mesmo quando ainda estamos a tentar perceber certos e errados que alguém estipulou, enquanto escrevia obras de ficção religiosa.

 

Às vezes, olho as fotografias dos idos e esqueço-me que não sou um deles. Porque os imagino no meu ouvido, a quererem dizer que me amam. Outra vez. A quererem dizer que eu sou digna de amor. Outra vez. E condenados ao silêncio. E penso. Amo-te. Mas não digo. E penso. Serei digna do teu amor? Mas não pergunto.

 

O prazo de validade encurta. Gasto as respirações que me sobram, sabendo que as subtraio da lista do eu. A imagem, cada vez mais certa, do dia em que a palavra presa na garganta emudeça torna-se mais cancerígena em cada respiração. Talvez vire tumor. Talvez me mate. Talvez me coma as entranhas e me faça una com o Universo, para que me olhes nas noites de nuvens altas.

 

Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja. Para que saibamos que vamos desaparecer e não saibamos o dia, a hora, o minuto e o segundo do nosso desaparecimento. Para que tenhamos a morte destinada mas não possamos organizar os nossos afazeres, dizer adeus, marcar antecipadamente o velório do nosso corpo perecido. Foi, talvez, a única dádiva ofertada pelos Deuses.

 

Daqui a algumas horas. Daqui a alguns dias. Daqui a alguns anos. Quando o eu que sou não for e o eu que posso vir a ser tiver esgotado as possibilidades, não importará que tenha feito tudo certo. Os ventos soprarão nas mesmas direções e a noite seguirá o dia. E a palavra calada na minha garganta será mudez. E o silêncio perpétuo será entrecortado pela poluição sonora que fazem as cidades e pela canção entoada pelo mar.

 

O prazo de validade é curto. Sejam horas. Ou dias. Ou anos. O prazo de validade é curto. Sabemos o quê e não o quando. E há um motivo para que assim seja. Há um motivo para que assim seja. Por favor. Deixa-me dizer-te que te amo.


 Marina Ferraz






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terça-feira, 20 de abril de 2021

Um imóvel à venda

 


 

PARTE I – O anúncio

 

Excelente vivenda T4 com vista para a Serra da Boa Viagem e o Mar.

A vivenda conta com boas áreas, traduzidas em espaços amplos e funcionais.

 

Inclui piscina, terraço, churrasqueira, jardim, garagem para 2 carros e lavandaria/arrumo.

 

Tem ainda:

4 Quartos (um dos quais suite e 3 deles com armário)

1 Cozinha ampla com despensa

2 Salas

3 Wc’s

2 Varandas na parte superior (vista mar e vista serra)

 

Certificado energético D

 

  

PARTE II – A Carta

 

Marina,

 

Talvez não te recordes de mim nos melhores termos. É coisa de humano, lembrar o pior e esquecer o bom. Mas eu recordo-me de ti. Lembro-me de te ver entrar, com olhos cheios de sonhos. Trauteando uma música qualquer da rádio. Magicando um poema qualquer. Subiste as escadas e olhaste pela janela do quarto que viria a ser teu. Pousaste o olhar na linha do horizonte, sobre a listra azul do mar. Suspiraste. Apaixonaste-te por mim. E eu por ti.

 

Nenhuma de nós estava interessada no zumzum da agente imobiliária. Nenhuma de nós estava interessada nos olhares que os teus pais trocavam, discutindo em silêncio, no permeio da conversa interminável da vendedora, como eu não era nada do que eles queriam. Sim, eu ouvia aqueles pensamentos sobre a moradia isolada e térrea e branca e com portadas castanhas. E sabia que eu era geminada, com três pisos, amarela e com persianas verdes. Mas tu? Tu olhaste a janela da frente e viste mar. Olhaste a janela de trás e viste serra. Poemas vertiam-te do sorriso. Apaixonei-me por ti. E pedi. Por favor, que esta seja a minha pessoa. Por favor, deixa-me ser a casa dela.

 

Quando te conheci, ainda não estava completa e, quando vieste, ainda não era a tua casa. Trazias areia nos pés e risos pendurados no canto da boca durante o verão. Cabelo sempre desgrenhado e alegria na fuga da cidade. Foi por isso que me senti triste quando vieste, desalentada, chamar-me casa. Com lágrimas nos olhos que queriam estar longe.

 

Visitam-me. Mas não sabem que te sentavas no escuro sobre o parapeito e que as lágrimas manchavam a pedra, até secarem outra vez. Não viram o teu quarto virar parque de campismo, montado com mantas, para agradar à tua sobrinha mais velha. Não entendem que sentiste literais e figurativos formigueiros dentro daquelas quatro paredes com vista mar.

 

Hoje, olharam o escritório e disseram que era “acolhedor”. Mas eles não sabem do riso preso nas malhas das carpetes, nas noites de piza, que só aconteciam nos dias bons, nos dias maus e nos outros dias. Depois do teste de matemática. No dia em que deste o primeiro beijo. Quando ganhaste um concurso nacional sobre Saramago.

 

Magníficas as vistas sobre a serra. Dizem. Apaixonados pelo pátio amplo e pelo verde da encosta. Mas sabem lá que estão a pousar o olhar na história do teu primeiro amor, trocado e vertido em seiva no lugar que convida a que te tornes quem és. E sabem lá que, ainda humana, voaste para a piscina anualmente, em todos os solstícios de verão, vestida e sem voto na matéria! E sabem lá que te sentavas no banco com a tua avó, aproveitando beijos de sol e festinhas no cabelo agreste.

 

Detesto as visitas. Talvez um pouco mais as tuas porque não gostas de mim. Mas todas. Porque eu te vi entrar e apaixonares-te por mim uma vez. Porque fui o teu abrigo quando o mundo lá fora foi o teu inferno e me associas ao inferno que não te fui. Porque nenhuma das pessoas tem o brilho dos sonhos pendurado no canto de lábios que sorriem.

 

Dos sonhos – quase todos - que te ajudei a concretizar, trazes sempre a memória do esforço. Quase esqueces que estas paredes e estes tetos foram a fortaleza imemorial que sempre albergará as tuas histórias de sucesso, seja na escrita, no trabalho ou no amor.

 

Eu sei. Quem olha, vê um imóvel. Tenho quatro quartos, um deles transformado em sala de leitura, três casas-de-banho, uma das quais pertencente à suite. E tenho duas varandas no piso superior, uma com vistas sobre a serra verdejante e outra com vistas sobre o oceano e o melhor pôr-do-sol da região. E tenho pátio amplo com piscina e jardim e churrasqueira. E uma cozinha grande e uma sala grande e um piso inferior que pode ser transformado em qualquer coisa, mas que a tua mãe idealizou como lavandaria, garrafeira, sala e garagem.

 

Do meu semblante impecavelmente limpo, ninguém diz que sou uma espécie de passagem para a Nárnia que é a vida. Mas para ti fui. Recebi uma sonhadora que queria escrever e pari uma escritora para o mundo. Fui a fábrica dos teus concretos.

 

Preciso que me deixes ir. Porque, em breve, uma família vai entrar e trazer os filhos. E eles trarão olhos cheios de sonhos. E eles vão olhar pela janela onde plantaste as lágrimas e sonhar. Não importa se os pais querem uma casa isolada e térrea e branca e com portadas castanhas. Os mais pequenos vão apaixonar-se por mim. E eu por eles. Havemos de agarrar também aqueles sonhos para os tornar reais.

 

Tenho raízes de ferro cravadas na terra mas alma estendida nos limites das minhas paisagens de serra e mar.

 

Por favor. Larga o tom formal. Vende-se moradia T4 com piscina, churrasqueira e garagem para 2 carros na Figueira da Foz. Sê realista. Mereço isso.

 

Por ora tua,

A casa da Figueira

 

 




 

PARTE III – A Resposta

 

Cara casa,

 

Tens razão. Desculpa. Vou escrever outro anúncio.

 

Por ora tua,

Marina

 

 


 

PARTE IV – O Anúncio Final


Temos, para adoção responsável, uma amiga de longa data, sob o formato de imóvel geminado de 3 pisos. Tem uma piscina adequada a voos de solstício, uma churrasqueira ideal para apanhar banhos de sol no Inverno e duas varandas impulsionadoras de sonhos que se tornam reais, com estímulos de maresia e ar serrano. Conta com parapeitos confidentes em qualquer um dos quatro quartos, sendo que o da frente é particularmente bom ouvinte nas noites de lua cheia e na hora do ocaso. A sala é perfeita para convívios de estilo italiano e propensa a batota durante jogos de Monopólio. Lugar ideal para famílias com filhos sonhadores que precisem de uma fortaleza para construir o futuro e de um “armário mágico” para o mundo dos sonhos. Ideal também para adultos que queiram redescobrir os prazeres da vida e rir até que a barriga doa.

 

Se vos parecer que se coaduna com os vossos gostos e estilo de vida e quiserem adotar este ser especial, por favor enviem mensagem privada. 



 Marina Ferraz






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terça-feira, 13 de abril de 2021

Uma luz acesa

 

 Fotografia de Analua Zoé




Para a minha avó


Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Conforto. A imagem do conforto acesa nessa luz que não apagavas. O teu toque de afago no meu rosto. Iluminado. Pela luz acesa. E o meu semblante doente, contrariando o sono. Um trejeito de enjoo que parecia eterno aos olhos infantis de um tempo moroso. E tu. A aliviares a dor e o desânimo. Consolando-me com as mãos enrugadas e pintalgadas de pontinhos mais escuros por entre a palidez. Com a luz acesa.

 

Menina-escuridão, de saúde frágil, quase sempre apaixonada pela sombra, eu deixava-me seguir o ritual pagão que os teus lábios católicos entoavam. Não é dormir. Só descansar. A luz fica acesa. E acesa estava, quando adormecia, sentindo o calor das têmporas febris na almofada.

 

Acordava, por vezes, com as tuas mãos trocando-me a roupa molhada por outra. Ou com o seu toque frio na minha testa, para me medires a temperatura à moda antiga, antes de enfiares na minha axila aqueles velhos termómetros de mercúrio que já ninguém usa. Água fria com açúcar para o enjoo. Xarope de cenoura caseiro para a tosse. E a luz acesa para acalmar a alma.

 

Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Acesa ficava, também, a minha fé no placebo. Esse que provinha da chama quente da luz da mesinha de cabeceira, pequeno sol errante que se alongava pelas paredes brancas do teu quarto, cortado pela figura roliça do teu corpo idoso, sonolentamente alerta a todos os meus pequenos trejeitos.

 

Eras o curativo das indisposições meninas que vinham com os vírus e bactérias do mundo. Tanto que, à medida que a criança enferma dava lugar à adulta sadia, me habituei a que ponteasses também, com suturas de afago, os males da minha alma.

 

Dizias. Descansa, a luz fica acesa.

 

Já não era porque houvesse uma lâmpada na mesa do teu quarto a iluminar as paredes. Já não era porque me deitasse na tua cama, com as tuas mãos pousando ocasionalmente na minha testa. Era porque sabias que a luz brilhava e oravas. E acreditavas nas orações que me dedicavas com um fervor só teu.

 

Habituei-me, na solidão dos dias, a deixar a luz acesa nos dias de indisposição. Mais tarde, habituei-me a deixá-la acesa nos dias em que o tempo ruía, deixando-me pequenos pontos de nada por entre as ameias do torreão da vida. A luz acesa era-me conforto, iluminando o escuro dos sentidos, dos sentimentos, dos pensamentos mais negros.

 

Gostava que ainda dissesses. Descansa, a luz fica acesa.

 

Mas, quando a tua luz se apagou, descobri depressa que a iluminação aclara os vazios da ausência.

 

Acontece que a luz-conforto não vinha da lâmpada mas de ti.

 

Deito-me e apago as luzes.

 

É mais fácil, assim, imaginar o teu afago no meu rosto.

 

É mais fácil, assim, deixar que sejas a minha luz.

 

É mais fácil assim.

 

 Marina Ferraz






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terça-feira, 6 de abril de 2021

Melhor

 


Tu achas-te melhor, não achas?

 

Acho. Por acaso é verdade. Acho mesmo. Há dias em que, ainda sem abrir os olhos, já o pensei dez vezes. E o confirmo quando olho o espelho, ainda sem maquilhagem e com remelas no canto dos olhos, ponteando o negro da maquilhagem que não consegui remover na véspera. Com o cabelo desgrenhado, a querer fugir do liso e a ganhar um toque selvagem nos nós e ondas ocasionais. Olheiras estendidas até à clavícula e uma borbulha a nascer na testa. Diretamente antes de vestir o fato de treino para fazer uma aula de ginásio qualquer. Olho para dentro de mim e para o meu reflexo, atiro-me um beijo com a mão e pisco o olho ao eu-refletido. Digo-lhe: tu és melhor.

 

Ser melhor não é ser melhor do que ninguém. Ser melhor é ser-se humano em construção. Ter a força de pôr cinco despertadores e levantar-me no toque do quarto. Aprender a gostar de uma imagem sem filtros. Ter coragem de treinar sete meses seguidos, com 15 dias de pausa intervalados e muito ocasionais e continuar a insistir que “hoje” é dia de fazer 31 flexões de braços porque ontem fiz 30 e, há sete meses atrás, não fazia duas sem sentir dores.

 

Ser melhor é chorar de cansaço, quando termino o trabalho às 3 da manhã, mas estar a pé às 9 horas do dia a seguir, preparada para continuar a lutar pelo meu sonho. E ir. Independentemente do cansaço. Fazer a jornada do dia com igual rigor, sem me permitir o espaço do queixume, que nada faz além de moer e acentuar os traços da fadiga. Dizer: força, só mais um esforço. Mesmo quando sei que não há um “só” na frase e que o esforço é perpétuo porque existem caminhos sem retorno e esta foi a vida que eu escolhi.

 

Ser melhor é ir ao supermercado num dia de mau humor, mas ter aprendido a cumprimentar os funcionários e tratá-los com simpatia, deixando uma piada que lhes cultive riso nos lábios e lembrando, no nosso âmago, que os outros não são culpados das nossas frustrações. É dar uma palavra de alento se, mesmo sem tempo, um amigo precisa de nós a meio do dia, para rever um texto, para um desabafo breve ou para um abraço virtual. É não esquecer que nós somos uma por entre sete mil milhões de pessoas e saber o nosso lugar no mundo. Não esquecer que, enquanto nos deliciamos com o sabor rico do nosso prato favorito, algures alguém colhe migalhas do solo infértil e se encolhe para morrer de fome. Falar sobre o privilégio de se tomar banho com água potável com meio mundo a morrer de sede. Ou simplesmente ter a noção de um espaço que termina nos limites do corpo para respeitar o espaço de alguém.

 

Ser melhor é ser-se melhor hoje do que se foi ontem. Tentar arduamente ser melhor profissional, melhor atleta, melhor artista. Ou outros melhores, noutras situações que não a minha. Tentar arduamente, em qualquer circunstância, ser melhor pessoa. Melhor ser. Melhor humano. Melhor ser humano, sempre que possível. Construir o eu que se quer ser, a pouco e pouco. Assumir que o trabalho jamais estará completo, por muito que se faça, por muito que se tente. E estar bem com o caminho. E aceitar que não há destino de chegada mas apenas caminho para andar. E melhorar o passo, a passo e passo.

 

Ir dormir. De cabeça leve e sem peso no peito, depois de desmaquilhar mal o rosto, para começar de novo amanhã. Sair à rua de cabeça erguida no dia a seguir. Saber que estamos no caminho certo… mas ainda não estamos lá!

 

E ouvir. Tu achas-te melhor, não achas?

 

Acho. Nem imaginas como acho!

 

E acho por isto mesmo. Porque sei quem eu era ontem. E, hoje, sou melhor.


 Marina Ferraz






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