terça-feira, 28 de junho de 2022

Arco-íris nas frestas

 




Abri os olhos. Dormias. E eu abri os olhos... Havia um arco-íris na janela. Pintado de pôr-do-sol. Rasgando as frestas.

 

 

O cansaço que adensou era fruto de noites acordadas. E da vida. Pesava um bocadinho sobre os ombros e descansámos a cabeça na almofada. Calor nascendo da pele. E suavidade. O som de uma música feita de silêncios que dizem poesia no fim da tarde. Só um bocadinho. Ao som das trovas mudas. Só um bocadinho.

 

Os olhos fecharam. Levemente. Habituados à insónia. E lembro-me de pensar que não queria dormir porque tinha medo. Logo eu. Eterna aventureira de todas as coisas descuidadas. Tinha medo. De acordar. E ser tudo um sonho bom... apenas.

 

O sono venceu a batalha contra o medo. Tudo – sempre – me vence a batalha contra o medo. Eu não sei viver senão lutando. Todos os dias. Contra tudo o que me assusta, me amornece e me limita... e, do sono ao sonho, foi um salto muito breve. E ela veio. E ela disse: olha o arco-íris.

 

Os olhos, meio enrugados, sorrindo no vislumbre lento da noite a cair. E eu agarrei-a levemente. Com saudade. Olhei. Sabia que era um sonho e ela também. Mas aceitou-me o toque leve e a inalação do cheiro das violetas do seu perfume-pele. Olha o arco-íris. Repetiu. E eu contei-lhe: dizem, sabes? Que quem encontrar o fim do arco, encontrará um pote de ouro. E ela repetiu. Olha o arco-íris.

 

Acordei desse sono. Breve. Tão breve. Abri os olhos. Dormias. E eu abri os olhos... Havia um arco-íris na janela. Pintado de pôr-do-sol. Rasgando as frestas. Tonalidades que vinham do vermelho, do laranja, do azul, para o verde-mar... passando por todos os toques de luz que permeiam as cores. Sorri. Havia o recorte do teu corpo e uma explosão de pigmentos a invadir o quarto. Senti-me novamente menina. Sorvendo a novidade da vida, com suavidade... cor a cor...

 

E os tons mais quentes aqueceram-me por dentro. E o calor de mim amoleceu-me a alma. E os olhos fecharam. Muito devagarinho. Levando ainda, consigo, o pôr-do-sol que rasgava a janela. Adormeci novamente. E lembro-me de pensar. Eu vi, avó, eu vi o arco-íris. Mas foi um pensamento breve, na vigília alquebrada, na fímbria entre a consciência e o delíquio. E deixei-me ir. Adormeci. Um sono pesado na leveza dos pensamentos, despido dos medos ancestrais e de perguntas sem sentido. Um sono despido de sonhos.

 

O tempo do sol não é o dos ponteiros. O tempo da vida não é o do sol. Senti-me voltar a mim, primeiro. E a alma a voltar ao corpo depois. De onde vens? Perguntei-lhe. Mas ela, que vinha daquele pôr-do-sol-arco-íris, não sabe como falar antes do café. Então, ficámos de olhos fechados, bebendo do som da respiração e do silêncio da música do fim da tarde.

 

Quando, por fim, abri os olhos, ainda dormias. Mas abri os olhos... O arco-íris na janela, pintado de pôr-do-sol, tinha dado lugar à tonalidade-noite. Uma noite jovem, ainda com resquícios de dia. Mas noite. E foi ela que me envolveu, acalmando-me os medos. O laranja apagado na frestinha inferior, deixa o espaço acinzentado no destaque de todas as outras, com as luzes breves da rua.

 

Acordas e olhas para mim. Um gesto breve e simples e de afago, que me envolve. O teu calor na pele fresca.

 

O sono tinha passado. Provavelmente posto no mesmo mar que levou o sol. E, nesse abraço, olhei pelas frestas. Um último rasgo de arco-íris na janela. Uma última linha alaranjada. E pensei. É aqui. Avó. É aqui. Encontrei o pote de ouro... 


 Marina Ferraz





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terça-feira, 21 de junho de 2022

Deitada no chão

 

 


 Tenho dado por mim. Deitada no chão. A inspirar. A expirar. A sentir(-me).

 

 No último mês já me deitei no chão da minha casa e de casas que não a minha. Já me deitei em praias. Sobre a terra da mata. Na relva. Em teatros e até na sala de um velho casino.

 

Em tempos, deitei-me no chão, tentando perceber as sensações de um corpo sem sensações. Achei que, deitada no chão, ficava mais perto da morte. Porque é isso que as pessoas fazem. Não é? Morrem e são esquecidas num chão qualquer...

 

Mas os poetas – percebo agora – não são gente que se deite e morra. São sementes. E há muita vida semeada no chão onde me deito. Uma espécie de tranquilidade que brota do peito no sentir do solo. Como se toda a história do “eu” se enraizasse. Como se dela crescessem os brotos verdes do amanhã. E, aos poucos, estendessem os braços ao sol. E, aos poucos, fossem árvore da vida. E dessem flor. E dessem fruto. E eu sorvesse, desse fruto, o sumo da inspiração que me rega de sensações.

 

Em tempos, deitei-me no chão, tentando perceber as sensações de um corpo sem sensações. Hoje, deito-me nele para sentir. Em tempos, deitei-me no chão para simular a morte. Hoje, deito-me nele para viver a vida.

 

O chão é o mesmo. Mas eu não sou.

 

Mudei. É preciso aceitar que o corpo de ontem não é o corpo de hoje. Que as escolhas de hoje não serão as mesmas de amanhã. Que a diferença entre o querer e o não querer, o estar e o não estar... é um segundo. Deitada no chão, fecho os olhos. Porque tetos e estrelas povoam também a alma. E preciso de me olhar dentro, para crescer. De aceitar que mudar é processo. De entender que aprender dói... mas vale a pena.

 

Tenho dado por mim. Deitada no chão. A inspirar. A expirar. A sentir(-me). Viva. Com vontade de o estar. Viva. Derretendo os músculos no solo, até ser solo. Sentindo a acalmia da vida, misturada com o compasso retumbante do coração.

 

Dou por mim deitada no chão. Sei coisas que não sabia. Sobre magia, maioritariamente. Mas não só. E perguntam-me quando soube. Mas eu não sei quando soube. Deito-me no chão. Só por um minuto. Digo a mim mesma. Só por um minuto. A alma vagueia e retorna ao corpo. Quero estar viva. Mas os ponteiros enlouqueceram.

 

O tempo que passa para o mundo parou para mim. Largo o teto. Largo as estrelas. Perco-me de quem fui. Sou e estou feliz.

 

Em tempos, deitei-me no chão, tentando perceber como será estar-se morto. Hoje, deito-me nele para me estender no térreo de todos os meus sonhos novos.

 

E talvez eu tenha sabido aí. Por isso mesmo. Porque senti claramente as asas. E o céu no horizonte. E a liberdade de ser. E, sendo, me fez falta o chão.

 

 

Em tempos, deitei-me no chão, tentando perceber as sensações de um corpo sem sensações. Penso que ainda gostaria de saber. As sensações de um corpo sem sensações. Mas sinto. Profunda e inegavelmente. Não encontrarei esta resposta no soalho.

 

Descobrir essas coisas da morte leva tempo. E o meu tem parado muitas vezes... para me deixar viver em pleno, deitada no chão.



 Marina Ferraz





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terça-feira, 14 de junho de 2022

Dos 16 aos 83

 



Sinto-as. Dentro de mim. Nem sempre sabem muito bem o que fazem. Mas não há problema. Porque sabem muito bem quem são... e isso basta.

 

 

Eu não nasci como nascem os outros. Novos e frescos. Bebendo da vida a novidade do mundo. Sou velha desde que me lembro. Tudo sempre me pareceu evidente e gasto. Sempre tive perguntas para colocar sobre as definições fechadas e os conceitos sem espaço.

 

É verdade. Isso não me impediu de me surpreender com as folhas das árvores e a música que cria vento. Nem de me deixar inebriar pela forma das rochas junto ao mar. Nem de me perder pelos recantos mornos da poesia. Mas não me surpreendi, inebriei e perdi porque o mundo fosse novo. Foi justamente porque ele era velho. Sábio. Repleto de maravilhas. De magia. E eu, una com ela, me quis tornar quem eu era.

 

Percebi depressa que, dentro do peito, trazia uma velha. Uma velha tão velha que não tinha idade. Mas nunca quis deixar de lhe celebrar a vida. E imagino-a com o seu rosto vincado de rugas e vivências, pelos seus 83 anos.

 

A velha em mim é sábia. Anciã. Serva da Natureza e Mãe do Mundo. Sabe coisas que me repete, em ensinamento, cantando em surdina, como se me embalasse pelos dias. É meiga e cuida de mim. Tenta cuidar dos outros, usando para isso as minhas mãos. Demora-se, por vezes, nas frestas da pele, regando-a de carícias, tentando sarar as mágoas do mundo. A velha sabe. Melhor do que ninguém. Toda a gente tem uma história triste. Toda a gente é a história triste de alguém. A velha não julga, porque julgar demora tempo e ocupa espaço de alma. Simplesmente, tenta acarinhar da melhor forma que sabe – com os séculos e milénios que cabem nos 83 anos que lhe imagino – essa verdade da vida, tão evidente e tão frequentemente olvidada – estamos todos a tentar ser felizes.

 

Mas, ainda que essa velha permaneça em mim, por vezes calma e abnegada, por vezes rezingona e rabugenta, o facto é que não está só. Percebi depressa que, dentro do peito, trazia uma adolescente. Do pior tipo. Daquelas que têm 16 anos e não querem crescer. Que se entusiasmam com a paixão. Com a amizade. Com o amor. Com as possibilidades... Que querem viver como se a vida coubesse toda num dia só. Que dão pulinhos de alegria quando recebem uma mensagem boa. Que se esquecem que vão morrer um dia. Que acham que vão morrer sempre que a vida tem uma contrariedade. Que acreditam ter entendido tudo e que vão frequentemente contra uma parede de cimento porque não querem desacelerar nas curvas do caminho.

 

A adolescente é insensata e impulsiva. Amedronta-se facilmente com as voltas inesperadas do mundo. Da vida. Mas quer vivê-las. Vive-as. Com uma intensidade louca. Tem muito para dar. Ainda não sabe bem a extensão do que tem para dar. Mas sabe que tem... e insiste que quer. Quer porque quer. Um dia, quando for a velha, entenderá porque quis...

 

Vou dos 16 aos 83 anos muito depressa. Oscilo facilmente entre a sensatez e a imprudência. E fico, por vezes, a vê-las discutir em mim, seguindo-lhes o discurso como quem assiste a uma partida de ténis de mesa.

 

Não faças isso! – Só se vive uma vez – É uma irresponsabilidade. – Quero ser livre-livre. – Vá, descansa um pouco. O mundo ainda estará lá amanhã – Se estiver! – Estará...

 

Deuses. Ouço-as. E amo-as tanto que até me arrancam um sorriso só de as pensar, nessas discussões por tudo e nada.

 

Abraço-me com os dois braços porque quero dar-lhes esse amor. Dizer: obrigada por me ensinares a encarar o mundo de frente. Dizer: obrigada por não me deixares levar a vida tão a sério. Dizer: enquanto aí estiverem, eu nunca irei estar só.

 

Mas, de repente, tenho 32. E caminho para os 33. E tenho uma adolescente de 16 anos aos pulinhos dentro de mim. E tenho uma velha rezingona de 83 anos, com críticas na ponta da língua.

 

No fim, peço-lhes levemente com licença. Mergulho novamente no ventre da minha mãe. Durmo um bocadinho ali, para descansar dessa verdade que é não ter nascido como nascem os outros. Novos e frescos.

 

Sinto-as. Dentro de mim. Nem sempre sabem muito bem o que fazem. Mas não há problema. Porque sabem muito bem quem são... e isso basta.

 

Mas há muito tempo para ir dos 16 aos 83. E o hoje é feliz-feliz. Então, por vezes, tenho a idade do meu bilhete de identidade. Olho em redor. Deuses! A vida é um lugar maravilhoso para se estar.

 

 Marina Ferraz





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terça-feira, 7 de junho de 2022

A Matemática do Tempo

 

Fotografia de Bru-nO

Não gosto muito de Matemática. Nunca gostei de Matemática. Mas gosto ainda menos da Matemática do Tempo. O exercício dos regimes ditatoriais sobre os ponteiros do relógio irrita-me. Esse, que garante que em cada hora cabem sempre exatamente sessenta minutos. E que em cada minuto cabem sempre sessenta segundos. E que em cada dia cabem sempre vinte e quatro horas. Desculpem. Acho que sou negacionista... mas o tempo não tem métrica certa. Como a poesia contemporânea... ou pelo menos a minha...

 

 

Desconexão. Um luxo moderno. Raro. Desligar o telemóvel. Ou não olhar para ele. Não querer saber das redes sociais. Parar com aquele toque irrealista entre stories, que passa por elas em contínuo e sem ver metade. Esquecer o relógio. E o trabalho.

 

Uma corrida muito lenta, de passadas-caracol, pela dinâmica da vida. Inalar o ar pelo nariz. Exalar pela boca. Deixar que se solte da garganta o grito que acumula aos poucos. Esquecer que existe grito, por esquecer que existe mundo. Ter, da memória, somente a memória. Desligada do peso que já teve e que já não tem e que não pode voltar a ter... porque o hoje não tem – ou é o que dizem – tempo para trazer o ontem dentro de si.

 

E conexão. Um luxo moderno. Raro. Que pode dar-se quando o telemóvel está desligado. Ou não olhamos para ele. Quando não queremos saber das redes sociais nem temos espasmos no polegar, que passa stories em contínuo, sem ver metade. Quando esquecemos o relógio. E o trabalho.

 

Um estar que é só estar. Trocas de pensamentos gratuitos. Despreocupados e sem pressa. Uma respiração lenta, entrecortada de histórias e risos que não se passam à frente com um toque. Memórias na ponta da língua, que se esbatem no tema seguinte e vêm leves. E planos. Para outro dia. Para outra altura. Para o futuro. Esse futuro igualmente leve... porque o hoje não tem – ou  é o que dizem – tempo para trazer o amanhã dentro de si.

 

Tempo. O luxo do tempo. Quando as horas passam num segundo e não damos por elas. Quando a alma encontra o espaço exato para se encaixar com o agora, para estar no agora... mesmo se o passado e o futuro ondeiam nas conversas, preenchendo-as levemente... suavemente.

 

É tão incrivelmente raro, que parece estranho. Parar. Esquecer a corrida contra o tempo, que – dizem os puristas dessa Matemática do Tempo  só tem vinte e quatro horas por dia.

 

Não gosto muito de Matemática. Nunca gostei de Matemática. Mas gosto ainda menos da Matemática do Tempo. Porque, às vezes... só às vezes... o tempo não é linear. E as horas parecem segundos... e, quando damos por nós, é outro dia... e temos quase a certeza de que o dia anterior ainda não era para ter terminado... que teve horas a menos.

 

Não gosto da Matemática do Tempo. Não porque me perca nela, como me perco a contar os trocos. Nem porque me sinta confusa, como quando é preciso dividir por dois dígitos. Nem porque me esqueça dela, como da tabuada que a minha avó tanto tentou fixar entre os meus neurónios... que claramente eram de Letras e Humanísticas. Não gosto da Matemática do Tempo porque nos diz que cada dia tem só vinte e quatro horas e que só cabem sessenta segundos num minuto e sessenta minutos numa hora.

 

O tempo não é linear. Ainda me lembro de que nas aulas de Matemática, os noventa minutos demoravam três horas a passar. E, naqueles momentos em que nos podemos dar a esse luxo, ainda consigo esquecer-me das horas... e reparar que passaram horas e horas, quando julguei que tinham sido apenas alguns minutos...

 

 

Se o século XV foi o século das conquistas e o século XX o da revolução digital, o século XXI é o século da falta de tempo. É a história mais comum dos nossos dias: não ter tempo para nada... e ver tudo como uma perda de tempo. Porque cada dia tem só vinte e quatro horas e só cabem sessenta segundos num minuto e sessenta minutos numa hora... e nunca é suficiente.

 

Não gosto da Matemática do Tempo. Na verdade, não gosto de Matemática. Do tempo devo gostar... porque nunca quero perdê-lo...

 

Mas sabem que mais? Ter horas inteiras que nos parecem minutos é o verdadeiro luxo da modernidade. E, com isso, aprendi uma Lei do Tempo que a Matemática não pode ensinar: o único momento em que não perdemos tempo é quando nos perdemos no tempo...


 Marina Ferraz





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