terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Balanço

 


 

Oscila. É mesmo assim. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontece e mãos que não largam as cordas.

 

Balanço.

 

Mãos ocasionais nas costas. Que empurram. Que elevam. Ou magoam. Ou derrubam.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

 

Despedi-me do negro dos tetos e das paredes húmidas. Do ninho. Dos pequenos mamíferos que roíam rodapés. Havia paredes com o meu nome ao largo dos eucaliptos. Mandei abaixo paredes e selei portas. Pintei tudo de branco e descobri o covil que havia de ser um lar. Lá, onde lendas urbanas aterram, de asas abertas; abri os meus próprios trilhos. 

Era uma emoção que me desabotoava o mundo ao mesmo tempo que o mundo encerrava com o aviso de uma pandemia. E havia um pouco de ruído interno nos meus órgãos, ao assinar o papel que firmava de meu aquele pequeno espaço de vista verde. Sim. Havia. Ruído. Soava. Bem dentro dos pulmões.

 

Não era Covid. Era só emoção.

 

O cheiro da tinta e os móveis amontoados junto à parede. Salas inteiras de narrativa fílmica. Gente que trazia promessas, junto com almas pardacentas, desamor e palavras moles. Segredos dispersos que me drenavam a conta bancária e a sanidade mental. O retorno inesperado do desalento, sob o teto onde, tantos anos anntes, a depressão nascera. E o pré-aviso do adeus, adiado com pedidos e orações e justificado em muitas horas de mãos agarradinhas, junto à almofada, contando histórias que já tinham sido contadas. Todas as noites. Todas. Menos uma. Aquela onde as estrelas caíram junto ao lago e as apanhei, para as guardar nos bolsos. Meses de clausura no inferno e uma noite de paraíso cantando na voz das constelações. Um aperto dentro do peito, que ora doía, ora vibrava.

 

Não era Covid. Era só expetativa.

 

O retorno. Três pinheiros sediados na frente da marquise adornada com esperanças infundadas. A incapacidade de gerir a caruma acumulada nos anos e o salto para a atividade física como se ela fosse um templo. O culto da arte do não pensar. E o pensamento que me perseguia, quando eu corria à velocidade de 7.4 com inclinação 2. 

O pensamento apanha-nos sempre. Mas a caruma é mais leve quando o passo é apressado, ainda que, de repente, na corrida contra as marés do tempo, nos encontremos com a realidade da respiração difícil. Não conseguir respirar. Ou conseguir… mas a custo.

 

Não era Covid. Era só motivação.

 

O adeus. Aquele. O do pré-aviso já feito. Frio incontrolável de mãos pousadas no medo que se eterniza quando se eterniza também a história do amor pela incapacidade de criação de histórias que se acrescentem às demais. O tempo esgota.

E o vazio. E a solidão. E a perda. E o luto. E trazermos 90 anos de histórias connosco, tentando encaixá-las à força nos nossos 31, como se coubessem, para que não morram também.

Uma dor que pontua o peito. Mas que se estende até todas as frestas, arestas e superfícies do eu, até não haver parte sadia em nós.

 

Não era Covid. Era só saudade.

 

A noite. Um coração que acelera. Justificativas no fundo do copo do vinho quente, que se bebe. Palavras caladas num espaço deserto que é meu. Palavras em catadupa, a pintalgar os meus poemas, que ninguém entende. E ainda bem. Cartas viradas, sem remetente. Querido futuro…

O tempo dos lírios. Um frio invernal nas minhas noites quentes. E, algures, uma respiração que falha. Descompassa. Explode. Uma respiração que falha.

 

Não é Covid. Garanto. Não é.

 

É o balanço. Constante. Oscila. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontecia e mãos que não largavam as cordas. A escolha entre o medo e o céu.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

Largo.

 

Agora largo. Não sei se com fé nas asas ou na maciez do solo.

 

Sustenho a respiração.

 

Não é Covid. É esperança no futuro.


Marina Ferraz



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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Poemas paridos

 



Eu não nasci. Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Monstro. A minha mãe não sabia que, no parto, expelia para o mundo um ser diferente. Até o meu pai, que vê defeito em tudo, me achou perfeitinha. Tinha os dedinhos todos nas mãos e os dedinhos todos nos pés.

 

Longe deles, esses seres que me fizeram entre luz e trevas, estava a compreensão de que, dentro do meu cérebro pequeno e ainda subdesenvolvido, as correntes elétricas passariam de forma distinta, em tempestades agrestes de relâmpago e trovão simultâneos. Longe da mente desses amantes que me geraram numa noite de outono, estava a compreensão de que eu não poderia ser, em pleno, uma menina como as outras. Essas que nasciam, como as pessoas e que diziam ter nascido ao longo de toda a vida, nessa condição de gente.

 

Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Como sou bicho - monstro - eu fui parida. Vim ao mundo a ferros e colei a placenta da minha mãe à carne. Esvaiu-se em sangue, tolerando a dor do inimaginável para me ter. Sentiu o peso anémico do mundo nas pernas. E o peso desesperado da insónia quando, durante meses me carregou sobre o peito, para que dormisse. Eu fui a primeira força imobilizadora que ela conheceu. Uma espécie de paralisia do sono muito própria, com tentáculos manipuladores construídos de choro e birra.

 

A minha mãe foi, não duvido nem por um instante, a primeira vítima do monstro que eu sou. Mas também foi uma das tutoras mais presentes em todos os momentos da minha vida e, nas lides do amor, o perdão é fácil. Criou-me, sem rancor pela dor causada no parto e foi sem rancor que me acompanhou na minha própria mágoa, quando em menina, jovem e adulta continuei a ser monstro.

 

Os meus horizontes sempre foram demasiado distantes. As minhas estradas demasiado longas. As minhas pernas demasiado curtas. E a minha mente demasiado. Toda feita de excessos, eu agucei a lâmina dos meus dedos, cortando aqui e ali tudo o que me parecia errado, até não haver mais nada que se cortasse senão o vazio e a solidão que, por serem cortantes, não podem cortar-se.

 

Eu não nasci. Em alguns dias gostava de ter nascido. Como nascem as pessoas que só querem abrir os pulmões, respirar, seguir atrás das outras, casar, ter filhos, ter netos, morrer tranquilas e acreditar numa vida eterna. Mas eu não nasci. E também não verguei. Selvagem, louca, cheia de vazios, eu fui sempre a manchinha persistente no cristal. O traço fora de contexto. A linha sem sentido do poema. O acorde desafinado da canção.

 

Nunca desejei o mal e sempre soube bem quem queria ser. Mas o universo tinha outro plano para mim. Este. De me prender à racionalidade, ao raciocínio e às folhas de papel.

 

Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Tornam-me os dias difíceis de aceitar e deixam-me afundar no meu mar de emoções pouco sadias. Há quem conte conquistas, eu conto textos. Há quem conte amores, eu conto histórias de gente que feri. Há quem conte que nasceu.

 

Eu não nasci. O mundo pariu-me. E não me pariu simplesmente, embora me tenha parido só. Pariu-me para causar sofrimento. Pariu-me para ser monstro e disse-mo, colocando-me no ventre da minha mãe e fazendo dela a primeira vítima do meu caos.

 

O mundo pariu-me para causar sofrimento e tenho medo dos passos que dou fora das linhas coordenadamente alinhadas da tela do computador. Porque quando o mundo me pariu para causar sofrimento, não se lembrou do papel imenso do amor. Não se lembrou de que a bondade é aço. Não se lembrou de que o perdão é espada. O mundo pariu-me. Mas quem me criou não foi o mundo. Foi a minha mãe. E ela criou-me para amar.

 

Então, ainda que tenha sido parida e condenada a ser caos num mundo confuso, continuei a usar a bandeira do amor. Um amor caótico e obscuro, onde multiplico todos os nadas do mundo por infinitos de mim, sempre com resultados nulos.

 

Faço-me mãe nas folhas. Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Rasgam-me por dentro, como em tempos eu fiz. Dormem no meu peito, provocando-me insónias. São incompreendidas pelo mundo, embora a olho nu sejam palavras normais. Entendo a dor da minha mãe e o seu amor, olhando os meus versos. Entendo como é possível que, olhando para mim, ela não encontre os traços bravios que me fazem monstro. Também os meus poemas paridos me parecem exemplares. Quando olho os meus poemas paridos, eles nunca parecem paridos. Parecem simplesmente poemas. Parecem simplesmente meus.

 

E não são.


Marina Ferraz



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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Promoção da Semana

 

 Fotografia de Michael Gaida


Eu já fui uma dessas pessoas. Dessas que acompanham folhetos e promoções. Que visitam sites de antevisão. Que elaboram listas de dois quilómetros, catalogadas por hipermercado e secção, definindo a rota dentro e entre estabelecimentos, de forma a garantir a eficácia e a economia máxima.

 

A poupança acontece.

 

À medida que os super e hipermercados, com os seus preços inflacionados somam os lucros de milhões, nós congratulamo-nos pelos vinte ou trinta euros que poupámos. Ou que teríamos poupado – eventualmente – se não os tivéssemos gasto no combustível enquanto dirigíamos de um centro comercial para o próximo.

 

A poupança acontece.

 

Por acontecer, eu já fui uma dessas pessoas que faz do linear uma trincheira e que desenha círculos em torno das imagens promocionais mais apelativas. Eu já fui uma dessas pessoas que sabe em que dia começa a promoção, em que dia termina e qual o melhor dia para ir às compras considerando os folhetos, os cupões, os talões, as mensagens, os emails e a ofertas especiais de aniversário da marca, do meu aniversário, do Natal, do Ano Novo, do Dia da Mãe, do Pai, do Primo, do Vizinho e do Estranho Que Podemos Vir a Conhecer Daqui a Uma Década.

 

Já fui uma dessas pessoas que conhece as datas das sextas-feiras mais negras e das segundas-feiras mais digitais e dos finais de semana mais cor-de-rosa.

 

A poupança acontece.

 

Carrinhos cheios de produtos carregam-se em sacos. Riscam-se, aqui e ali, produtos listados. Discute-se sobre se devemos levar o produto com o melhor preço, o produto com a melhor relação de qualidade-preço, o produto com a melhor relação de quantidade-preço ou o produto com a melhor relação de vida saudável-preço.

 

De repente, tudo é um mar de dúvidas que se estendem até à caixa para o feliz momento da poupança, que afinal não é tão feliz, quando nos apercebemos de que o gasto é efetivo e a necessidade pela maioria dos produtos que fazem “bip” nas mãos da fatigada operadora de caixa são desnecessários.

 

Olha-se o talão, à espera de ver validado o sentimento. Esse. O da economia. Recebe-se dele, com maior agrado, o valor que deveríamos ter pago e onde a soma comprova que tudo valeu a pena. E, vejam bem! Saíram novos talões para que voltemos a poupar depois. Vejam bem! Ainda por cima, também podemos poupar no combustível mais caro das gasolineiras mais caras, uns quantos cêntimos por litro!

 

O esforço empregue parece valer a pena. Cria-se um ciclo vicioso, que se estende, que se repete. Lista atrás de lista, sempre de olhos postos na ideia do gasto que não se quer ter. Sempre dizendo o mesmo:

 

A poupança acontece.

 

Sim. A poupança acontece. Mas é cara. O preço dela nunca baixa e não existe promoção que lhe valha. Custa tempo. Custa paz de espírito. Custa, em alguns casos, a vida.

 

Custa. A. Vida.

 

Deixei de estar disposta a pagar a vida pela poupança. Deixei-me de folhetos. Deixei-me de listas. Deixei-me de análises caóticas.

 

Quando largamos, é fácil compreender que não vale a pena. A nossa paz é um preço alto demais e nem a soma de todas as promoções anuais me paga os anos de vida perdidos no processo.

 

No folheto dos meus dias, a única promoção da semana que me interessa agora é ser feliz. A luta por essa felicidade implica não ser essa pessoa que fui. E, é certo: não fazer essa gestão de economias não é uma rotina que me poupe gastos, mas poupa-me o desgaste.

 

O preço da poupança é demasiado alto e não o quero pagar.

 

E sim, eu sei, há qualquer coisa em promoção algures que me faria poupar imenso. Sim, sim… eu conheço a história.

 

Mas, olhem, sabem que mais?! Não me digam. Poupem-me! Estou ocupada com a promoção do meu bem-estar.


Marina Ferraz



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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Colisão

 



 Fotografia de Analua Zoé


Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase dita, no rescaldo do dia que tinha passado, enquanto despia a pele e se deixava ser somente alma, no centro da sala fria.

 

Havia muitas histórias nas impressões digitais da pele que despia. Todas essas histórias, criadas pelo excesso, pareciam vazias quando o dia terminava e sobrava solidão. O excesso de amor, de desejo, de vontade de sorver o ar… tudo se transfigurava em vazio.

 

Por um lado, admitia: era bom ser alma! Chegar a casa, descalçar as normas sociais, despir a pele, atirar os órgãos para a cadeira da desarrumação… e deixar o silêncio inebriante regar as arestas tortas do pensamento. Por uns momentos. Antes de o silêncio gritar. Um grito agudo, cortante, compulsivo. Um grito que trazia vozes ancestrais dos tempos remotos do mundo, acordando ossos despidos que forram as capelas ermas e o chão das metrópoles.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que deixava de fazer sentido quando a pele, despida e largada num canto, servia apenas de brinquedo solto ao gato irrequieto, que preferia sempre mordiscar o mindinho da mão direita, vá-se lá saber porquê.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, ela fitava a cadeira e todos os seus órgãos vitais. O coração, meio apodrecido dos desgostos, era o eterno guerreiro que contava histórias aos outros, enquanto ela aproveitava a condição de ser livre. Nessa noite, a história que ele contava era bonita. Efémera. Mas bonita. Sobre copos de vinho quentes no Inverno quedado e olhos fechados no sentir de outras formas de calor. Nessa noite, a história que ele contava, fazia o cérebro contrafeito e irrequieto saltar da cadeira e correr de um lado para o outro, querendo encontrar a linha da meta para ter uma resposta concreta para todos os seus equívocos. E o fígado arrotava, levando a mão à boca e pedindo perdão pelo incómodo. E os pulmões bebiam das palavras do coração como se fossem ar. E um sistema digestivo inteiro revolvia, com fome de voltar ao passado.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, a alma sabia que despir-se de corpo era atroz. Os órgãos pareciam sempre meio perdidos, ainda que a pele se divertisse, estendendo o mindinho direito ao gato, que só parava de roê-lo quando a inquietude do cérebro chamava a sua atenção.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que, enquanto se secava, a alma repetia na sua cabeça e que a levava até ao tempo em que descobrira que a perfeição é tão imperfeita quanto a imperfeição é perfeita. Dependia das perguntas essenciais. Quem? Quando? Onde? Porquê?

 

Mas ela estava cansada. Cansada dos ponteiros. Cansada da solidão. Cansada do silêncio. Cansada do grito que ainda soava, desse silêncio só, todo cheio de promessas e de memórias.

 

Agarrou os órgãos um a um e vestiu a pele. Olhou ao espelho. Vestida de corpo não parecia uma alma que queria ser perfeita mas apenas humana. Uma camuflagem grosseira que lhe permitia sair à rua e fingir que era como os outros.

 

Despediu-se dos órgãos, para que adormecessem. E da pele, para que se acalmasse. E do gato, que continuava a tentar roer o mindinho direito, agora vestido e carnudo.

 

Com os vasos lacrimais perfeitamente encaixados nos olhos, culminando no espaço onde as pálpebras se encontram, chorou. Estava cansada. Tão, tão cansada. Da perfeição e do resto. Deixou a morte colidir com a vida. Deixou a vida colidir com a morte. Da colisão nasceu o caos imperfeito da noite.

 

Depositou-se, assim vestida de corpo, na alcova. Sonhou que era imperfeita e que, ainda assim, lhe queriam bem.

 

Acordaria na manhã seguinte. Para tentar ser perfeita. Outra vez.

 

Marina Ferraz



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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Louva-a-deus

 


O louva-a-deus pousou numa folha que se agita. O vento sopra e dizem que é advento. Sou mais crente da sacralidade de ventos do que de adventos e coloco mais fé na Natureza do que nos homens, ainda que esses homens sejam profetas. Mesmo assim, quando o vento sopra e mo dizem – que é advento – toda a minha formação de berço começa, aos poucos, a agitar-se no meu peito pagão.

 

Há gente que louva a deus. Escrevendo deus com maiúscula, como se fosse uno. Mas é nas filas para as lojas do centro comercial que se celebra a dádiva. Com sacos amontoados entre mãos, dividindo o peso. Dois sacos de um lado, dois sacos do outro e o peso da alma a meio. É tempo de ter as mãos cheias. Demasiado cheias para se unir em oração ou para dar carinho ou para estender moeda que sirva de esmola a alguém que tem fome.

 

O prazer divino do nascimento do senhor – palavra que frequentemente também escrevem em maiúscula – é celebrada na mesa da consoada, com o recheio de prateleiras integrais do supermercado. Não falta o bacalhau – cujo preço, já ridículo, sobe sempre – nem a couve portuguesa – que, entretanto, já esgotou vinte vezes numa estratégia comercial que continua a funcionar ao final de anos e anos de uso – nem as cinco variedades de bolo – incluindo aquela que sobra sempre porque ninguém gosta de fruta cristalizada… mas é tradição – e ainda o pão e a broa e o vinho e o sumo e as bebidas digestivas.


Pela casa, começam a nascer homens de vermelho. Um deles dependura-se na inexistente chaminé da manjedoura e ameaça cair em cima do burro com o peso obeso do seu corpo de plástico. Lança-se a discussão irada sobre quem vai pôr o menino nas palhinhas e quando. Até que alguém ganha a discussão. E ninguém se fala durante três dias. Oportuno, até, esse silêncio familiar, para que se escutem melhor as canções de Natal que já passam na rádio, criando introspeção sobre temas tão importantes e pertinentes como a pessoa que deitou fora um coração no ano passado ou o facto de um Pai Natal voyeurista estar a vir para a cidade.

 

Há gente que louva a deus. Não falta ouvi-las louvar, na fila das compras. “Oh meu deus” isto; “Oh meu deus”, aquilo. Frase que precede ou é dita a par, frequentemente, com o seu ódio a macerar pelos outros. As pessoas detestam-se. Com toda a paz e amor do mundo, encafuam-se no mesmo espaço para tentarem ocupá-lo, conquistadoras implacáveis da última caixa de bombons ou do “eu sou primeiro” quando cruzam a linha de chegada da sua corrida pelos corredores e atingem a caixa em simultâneo.

 

O vento sopra e dizem que é advento. O vento arrasta as folhas e o advento arrasta a fé. Ambas de rojo pelo chão e muito mal tratadas. Antes que o advento acabe, os católicos terão certamente cedido a pelo menos quatro dos pecados mortais. Mas está tudo bem. É tempo de introspeção. De olhar para dentro. Essa coisa tantas vezes egoísta de ver o eu, sem se ver além de nós.


Algures, na mesma planta, muito menos consciente de si e muito mais consciente dos ventos, o louva-a-deus deixa-se mover na dança da brisa e camufla-se, verde com verde. Pausadamente convivendo com a realidade da vida, sem corridas nem pressas. Observando a Terra que gira e a noite que cai e o dia que nasce. E, como ele, nas minhas passagens junto às lojas sob as luzes de Natal que custam milhões de euros ao país, eu camuflo-me e vou reparando nos músicos desesperados e nos pedintes famintos que estendem a mão, ignorados como se fossem parte da paisagem.

 

O vento sopra e dizem que é advento. Sinto-me como a folha e a fé. Um bocadinho de rojo no chão. O meu Sol renasce no primeiro dia de Inverno. Penso que quero levantar-me cedo para o ver nascer. Sem sacos, sem luzes, sem bagagem e sem discussões.

 

Paro para escutar o violinista de rua durante alguns minutos, debaixo da estrela de luz. Deixo cair uma moeda a seus pés e vejo que ele me sorri, enquanto sigo com o vento.

 

O vento está frio. O advento está mais.


Marina Ferraz



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terça-feira, 24 de novembro de 2020

A pessoa que eu quero ser

 



Uma coisa que nunca compreendi é a razão que leva as pessoas – podendo ser o que quiserem – a decidirem ser cruéis. Penso sempre que algo de muito errado terá certamente acontecido para que os corações ficassem frios, vazios de emoção ou empatia, levando consigo os traços de humanidade e substituindo-os por uma crueza que espelha a rispidez da vida e do mundo.

 

Tenho pena dessas pessoas. As que escolhem ser más. Tenho penas delas. Normalmente não lhes digo. Mas tenho. Tenho pena porque sei que existem eficazes estratégias entre os demónios do tempo, nos caminhos humanos, para azedar as palavras na boca e os gestos nas mãos. E a dor que se inflige ao outro é tantas vezes a nossa. E a ofensa que se diz ao outro é tantas vezes parte da nossa incapacidade de ver algo bom em nós; parte da nossa baixa autoestima.

 

Num momento ou outro, já todos fomos essa pessoa. Essa que - podendo ser o que quiser – decide ser cruel. Nem todos o fizemos de propósito. Alguns terão feito isto por inexperiência. Outros, por necessidade de retaliação. Outros ainda esqueceram, por segundos, que devem perguntar a si mesmos: quem é a pessoa que eu quero ser?

 

Muitas pessoas não sabem isto. Muitas pessoas não pensaram nisto. Na verdade, a maioria das pessoas – presas à noção de “personalidade” – discordará. Mas eu acho que a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. Há um momento, quando a consciência de estarmos vivos se abate sobre os nossos ombros, no qual o nosso papel secundário na determinação do “eu” desaparece, para dar lugar a um espaço onde somos mestres, protagonistas e artesãos da nossa própria conduta e da nossa própria forma de ser. Definimos quem queremos ser. E quem queremos ser importa porque pode mudar tudo, de um segundo para o outro.

 

Claro! A observação ajuda, mas não é tudo! O espírito crítico impera e o raciocínio treina-se. Olhar e pensar sobre o que se vê é tantas vezes o que nos transforma nessa pessoa que querermos ser. Tantas vezes, por olharmos para a crueldade vazia de quem podendo ser o que quiser escolhe mal, decidimos, antes de tudo, o que não queremos ser. E o resto constrói-se, peça a peça, gesto a gesto, palavra a palavra.

 

A pessoa que eu quero ser, por exemplo, é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou. Todos os dias, quando chego a casa, ela recebe-me à porta. Esfrega-se nas minhas pernas, feliz com o meu retorno. Ela não acha que eu a abandonei nem que fica aborrecida pela minha ausência: parece acreditar que todas as minhas saídas são imperativas e que ansiei tanto por voltar a vê-la como ela queria voltar a ver-me.

 

Acreditando que sou dedicada, a minha gata não leva a mal se eu a tiro do colo para pegar no computador e trabalhar. Em vez de mudar de divisão ou simplesmente me dar o habitual desprezo felino, ela deita-se ao meu lado e dorme, enquanto trabalho. Ela também acredita que eu sou afetuosa e meiga. Por isso, na primeira oportunidade, é no meu colo que se enrosca e dorme um pouco mais, com o motor ligado, a ronronar por horas a fio.

 

A minha gata acredita que eu sou generosa. Não encontra em mim traços somíticos. Não acha que sou egoísta. Então, mesmo quando estou a comer algo que ela adora – como frango, melão ou fiambre – ela limita-se a sentar e a esperar com uma calma nada típica de bicho que eu termine e lhe dê a sua parte.

 

À noite, quando se põe debaixo das roupas, encostada a mim, ela acredita que eu sou altruísta e que a cama foi especialmente feita a pensar nas duas. Nestes momentos, ela mostra-me que acha que eu sou humana e frágil e ensina-me que não existe nada de errado na fragilidade, encostando-se à minha barriga e aceitando os soluços do choro como se fossem naturais, enquanto se aninha mais e mais, confortando-me.

 

Não existe lugar para onde ela não me siga, esperando sempre o melhor de mim. E eu gosto dessa pessoa que ela acha que eu sou. Então, mesmo quando não estou com ela, é isso que eu tento ser. Presente e altruísta, meiga e humana, uma pessoa que retribui, que dá, que pensa nos outros e aceita os seus gestos de afago.

 

Se o sou todos os dias e em todos os momentos? É claro que não! Falhar faz parte de se ser humano. Mas a pessoa que queremos ser é muito mais importante do que a pessoa que somos. E tento carregar sempre comigo a pergunta. Quem é essa pessoa? Essa que eu quero ser? Faço a pergunta nas inspirações e tento expirar a resposta.

 

A pessoa que eu quero ser é a pessoa que eu imagino que a minha gata acha que eu sou.


Marina Ferraz



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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Vergada

 Fotografia de Analua Zoé


Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos.

 

 

Andei sempre vergada. Habituada a sobrar, comecei a encantar-me pelas sobras. Fosse a migalha do pão, a equipa de futebol que não ganha há cinco décadas, a religião que se queimou nos autos de fé ou o gato da ninhada que ninguém quer adotar. Porque é preto. Remelento. De pelo feio e mal cuidado.

 

Ganhei o hábito de me baixar. De me curvar. Ombros desnivelados e olhos no chão. Descobrindo que caem ao solo muitas regras infundadas quando o pensamento vagueia.

 

Foi vergada que descobri que não faz mal ter um pensamento vagabundo. Na verdade, o pensamento vadio é justamente o melhor. Sai da caixa e dorme com universos mais vastos. Não se importa muito com os constructos sociais. Evolui. Faz a diferença.

 

Fiz coleções com o desperdício. À medida que se desperdiçavam direitos, fui agarrando neles e guardando-os nos bolsos, juntamente com todos os c’s, p’s, tremas e acentos que, aparentemente, já não tinham uso na linguagem. Mas não apanhei só letras soltas e direitos inúteis. Da sucata do desperdício retirei também palavras inteiras, quando ainda toda a gente as usava mas já ninguém as sentia.

 

Vergada, fiquei com bolsos cheios de amigos que não dariam um passo por mim. De amantes que não sabiam amar. De promessas que não seriam cumpridas. E de muitas, muitas desculpas, que se colavam debaixo dos tampos das secretárias, como pastilhas elásticas roídas, mastigadas e esquecidas, sem sabor nem propósito.

 

“Amor” foi a palavra mais bonita que guardei. De a ver desperdiçada aqui e ali. Tão gasta e puída com os séculos de uso. Tive pena dela – da palavra “amor” – e agarrei-a. Juntei-a à coleção de inutilidades que colhia das lixeiras da vida.

 

Vergada, de ombros desalinhados e olhos no chão, descobri que o amor pesava mais sozinho do que tudo o resto e, em alguns momentos, deixei-me cair de joelhos na gravilha. Levantei-me sempre. Caminhei sempre. Vergada e domada pelo peso servil que apliquei ao amor desperdiçado que tinha apanhado por caminho.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Não era mais do que a pessoa vadia, de alma ignóbil, recolhendo os desperdícios e as sobras que o mundo criava. Apaixonada pelos astros, pelos Deuses Antigos, pelos gatos pretos e as equipas de futebol que perdiam e desciam de divisão. E um pouco mais pelas letras que colecionava e pelo amor gasto, que me exigia, todos os dias, a força que eu não tinha para o carregar.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Mas ir vergada, para mim, era só ir. Andei sempre vergada. Procurando no chão os restos. As sobras. O desperdício.

 

Foi no meio de muitos c’s e p’s perdidos e sem uso que percebi que, de facto, estava apta a lutar. Fosse pelo amor colhido ou pelo futuro incerto ou pelos ideais que frequentemente ainda me pediam o trema. O trema. Mas não o tremor. Não o temor. Colhi coragem, na pilha dos desperdícios. E não tenho medo de nada.

 

Disseram-me que vergar as costas era sinal de subserviência. Penso que poderiam estar certos. Mas não estavam. Porque eu não preciso de olhar nos olhos de ninguém para saber o que a alma tem dentro. O desperdício que lhes mora aos pés, nas camadas de palavra e nojo lançadas ao chão dizem muito sobre a podridão das almas. E o amor descartado dizia muito sobre o vazio do peito. E a recusa do fértil dizia muito sobre o eco das mentes.

 

Entendendo muito do mundo e da vida, acabei por erguer-me. Quando me ergui, disseram-me. Que vergar as costas era sinal de subserviência. Sorri. Andei sempre vergada. Tenho os bolsos cheios de excessos e de letras descartadas que me escrevem autos de dignidade. Uma mente vagabunda que não se limita ao horizonte pequenino do que está definido na linha que começa com maiúscula e termina com um ponto final. Tenho as entrelinhas e os inconcretos. Não faço vénias nem a pessoas nem a conceitos. E fortaleci todos os meus músculos transportando amores maiores do que a vida nos bolsos, caindo e levantando-me sem apoio nem amparo nem ovação.

 

Andei sempre vergada. Descobri cedo que o horizonte que me punham em frente aos olhos era mais limitado que o chão, onde continuavam a deitar quase tudo o que tinha valor.

 

Andei sempre vergada. Sou escrava do meu desejo de ser livre. E entendo. Que vergar as costas seja sinal de subserviência. Mas, lamento. Não sou servil. Não sirvo mais do que as minhas vontades, que colhem desperdícios e constroem muralhas de tesouros e sonhos e ousadias.

 

Entendam. Com os bolsos cheios de amor e letras soltas, descobri que também eu, por ser sobra e desperdício, era digna das palavras e do afeto. Distribuí por mim mesma muito do amor, até ele não me pesar. Só faço vénias ao que trago dentro. E o amor próprio é arma. O amor próprio é consciente e seguro.

 

Andei sempre vergada. Mas nunca me vergaram.

 

Andei sempre vergada. Mas não me podem vergar.


Marina Ferraz



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terça-feira, 10 de novembro de 2020

No fundo do meu copo de vinho

 Fotografia de Raul Pinto


Tenho a mente irrequieta. Tento travá-la. Estender a mão imaginária em frente ao nariz e dizer: para de ser besta. Mas a mente não para. Aponta, por sua vez, o dedo ao coração. E ele está demasiado desgraçado e feito em lascas para sequer ripostar. Responde, lá no seu melodramatismo ridículo: sim, sim… sou o culpado de todos os males do mundo.

 

Canso-me de os ouvir. Desisto. Agradeço aos elementos que me fazem mortal, humana e adulta. Afogo-me em taninos. Sirvo um copo de vinho. Seja para bebê-lo em vez de pensar ou para pensar enquanto o bebo.

 

O móvel dos meus livros tem fantasmas agarrados. Um deles, imagino, agarra num copo ambarado para brindar comigo. Outro, queixa-se ao fim de um gole mal dado que já atingiu o limiar da embriaguez. O mais teimoso de todos, insiste que eu devia estar a fazer planos estratégicos para reunir os dissidentes num qualquer golpe revolucionário equivalente ao 25 de Abril, mas que funcione…

 

No móvel dos livros, além de fantasmas, existem obras literárias. Convivem alegremente, nele, as estrelinhas de Florbela, de Pessoa, de Saramago e de Lídia Jorge; mas também a plebe do prazer imediato e simples, com narrativas fantasiosas sobre mágicos e vampiros e amores eternos, pela mão menos genial de autores de best-seller que comprovam a força do marketing, do consumismo e do capitalismo modernos.

 

A meio do copo de vinho, eu já li títulos que não deviam povoar a mesma estante. E já pedi a três autores com o Nobel da Literatura o favor de não se ofenderem com os romances de cordel que dormem a seu lado.

 

Algumas histórias na estante, confesso eu aos fantasmas – porque ninguém vivo teria a paciência de escutar-me – são um pouco do que me tornou quem sou. Eternamente presa a um amor que vai além-corpo para provar que a eternidade é um espaço de nós. Não fosse – confesso-lhes – E estaria agora nos braços de alguém, a fazer algo carnalmente mais produtivo do que falar com quem não responde.

 

Um dos fantasmas acende um cigarro e outro diz-me que não posso pensar assim. E eu continuo a beber o líquido castanho-avermelhado, como se fosse o sangue de um qualquer messias por nascer.

 

Penso naquelas pessoas que se sentem tristes e confessam os seus pensamentos mais tenebrosos. Doeu tanto que pensei que ia morrer. Frase feita e comum. Da qual eu discordo com a força de um exército. A mim dói tanto porque sei que não vou. Não disto. Não agora. Vou ter de viver, de conviver, de partilhar o sofá e o vinho com a dor. E de acordar amanhã para repetir.

 

Vem a saudade. Desse amor que começa a tornar-se mais patente quando dois terços do copo se esvaziou e que salta dos livros que povoam a minha estante, lançado de mão em mão num jogo da batata quente pelas mãos dos meus mortos. Ninguém quer segurá-lo e eu também não. Queima. Queima como só a saudade sabe queimar, numa chama azul-inglesa. Essa que é tristeza patenteada e debruada a dor.

 

Engulo. A mágoa, a tristeza e o vinho. Deixando manchas ponteadas, como reticências infinitas ou céus de estrelas rubras no vidro.

 

No fundo do meu copo de vinho existe literatura. É um conto impossível de mil páginas, onde o amor ainda terá muito a dizer depois da contracapa.

 

Às vezes, numa sala cheia, há vazio. Vem de quem já partiu há tanto tempo, que o esquecimento deveria ter tomado o seu lugar. Mas não é esquecimento. É vazio. E é assim que percebes que não é afeição mas amor.

 

Pouso o copo na mesa e os olhos na estante. Subitamente, estou sentada a assistir à interminável discussão da mente com o coração que se vitimiza e assume, sem pudores, que é culpado de tudo. Até do que não sabe. Até do que não viu.

 

Os Fragmentos de Mim estão perigosamente perto d’As Intermitências da Morte. Mas nem o fragmento é morte, nem eu sou digna daquele lugar na estante. Sou só alguém que gosta da assombração das gentes que foram e das histórias que ficaram no passado, deixando mais vazios do que memórias. Sou só alguém com uma mente irrequieta e intempestiva. Com um coração cansado e desiludido. Insistindo na literatura que mora no fundo do corpo e do copo de vinho.

 

Não deixo de pensar, olhando o copo vazio, que o vinho acabou mas o amor não.

 

Nem todas as narrativas acabam só porque alguém escreveu “fim”.

 



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terça-feira, 3 de novembro de 2020

Confronto com o eu

 


Embati contra mim mesma. Violentamente. Num instante, em frente ao espelho, descobri que aquela era eu. Não se parecia muito comigo. Mas, aproximando-me da imagem e deixando que ela fizesse o mesmo, percebi que era eu e que estava velha. Ergui o sobrolho. Trejeito de espanto que ela me imitou. E tentei justificar que estava cansada. Mas nem ela nem eu queríamos saber de desculpas.

A rua era viral e a tirania também. Aos bocadinhos, contaminando uma mente aqui e outra além, preocupava-me mais a entrada furtiva da ditadura do que qualquer doença. Doença, contei eu ao meu reflexo, era a pacatez do povo, que via acontecer e anuía. Cachorrinho de bagageira que não aprendeu nada com a História.

Presa na moldura do espelho, aquela figura cansada que era eu, quis saber o estado das coisas. Contei-lhe que as pessoas tinham medo umas das outras e que usavam máscaras. As máscaras serviam para esconder o medo mas revelavam quem elas eram. Nunca antes, na História do Mundo, as pessoas tinham usado máscara para revelar a sua identidade… – expliquei-lhe – Nunca se viu tão bem o que as pessoas são! – e acrescentei – As máscaras desvelam o que vai além dos sorrisos falsos. E, olha: é tão triste, tão oco, tão vazio, tão egoísta e ignóbil… que a prática do distanciamento social me faz sentido…

Contei-lhe da prisão domiciliar globalizada. Contei-lhe do imoral sentido da solidão imposta em lares e centros para a diferença, onde as pessoas morriam de abandono. Contei-lhe como morrera também, certamente do vírus, a constituição nacional e como se ligavam às máquinas os direitos humanos. E expliquei que os países corriam atrás da vacina – nova corrida espacial pela bandeirola em Marte – que virava tema central da narrativa pró-temor dos media.

Presa na moldura do espelho, a figura parecia ainda mais cansada. E senti-me quase mal ao explicar-lhe que não era apenas isto que se estava a passar. A doença virou negócio. A pequena mercearia de que tu gostavas fechou e o teu bar ameaça fazer o mesmo. – equaciono um suspiro porque, mesmo sem o vírus, me sinto sem ar - Os pequenos concorrentes, que já nada faziam de concorrência às grandes superfícies, estão condenados a desaparecer. As grandes marcas investiram na doença e fizeram dela – como de tudo o resto – uma forma de terem lucro.

Idealizo o cartaz. De letras garrafais, colocado em frente aos olhos cegos de quem nada quer fazer: Bem-vindo às epidemias na sociedade de consumo, provavelmente eternizadas pelos interesses capitalistas, aos quais pouco interessa que as pessoas vivam, contanto que paguem.

Embati contra mim mesma. Violentamente. Com um cansaço a causar olheiras densas no peito. Por dentro. Descubro-me velha. Estou a envelhecer sem que me permitam a vida. E questiono quantas pessoas estão a evitar viver com medo da morte.

A figura do espelho pergunta-me porque não faço alguma coisa. E eu pergunto-lhe o que posso fazer. Fica o silêncio entre nós. Nos dois metros que nos separam. Nenhuma de nós está a usar máscara. Talvez devêssemos usá-la, para abafar os soluços. E óculos de sol também. Para esconder as lágrimas.

Afasto-me. Deixo o meu reflexo com a sua dor porque a reflexão me incomoda. Olho a janela. A rua deserta além da janela. A rua viral como o despotismo dos ricos.

 

Dói-me o peito.

Dói-me o peito e não consigo respirar.

Hiperventilo.

 

Embati contra mim mesma. Violentamente. Não é o vírus mas a tirania que me está a deixar doente.

 



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terça-feira, 27 de outubro de 2020

A melhor parte do meu coração II

 


Para a minha avó


Há um órgão muscular em nós. Ele bombeia o sangue e retira do ar o oxigénio que nos permite a vida. Dizem que é uno. Mas – já o disse - eu discordo!

 

A discordância não é gratuita. O meu coração está repartido. Rasgo-o e reparto-o. Noutros peitos. E é assim, com as peças dispersas do coração, que me sinto completa. No amor. Porque é ao amor que eu pertenço.

 

A incompletude das minhas aurículas e ventrículos raras vezes me incomodou. Sempre foi mais como o relógio que dá sinal na hora da mágoa. Com uma chamada, que atravessando linhas e satélites me caía no ouvido. Ainda que fosse por segundos. É um fenómeno estranho e quase surreal. As outras partes do meu coração sabem quando ele parte. Talvez, noutros peitos, sintam igual dor. Talvez, afinal, mesmo repartido, um coração nunca deixe de ser uno…

 

É só que…

 

Há muitas partes do meu coração a odiar as palavras. E eu escrevo.

 

É só que…

 

Uma respiração profunda, que dilacera. Punhais cortando o peito. Punhais rasgando a carne. E o sangue é translúcido. O sangue cai no rosto. O sangue não é sangue. O sangue é lágrima.

 

É só que…

 

Mágoa. Dor. Desespero. Mãos frias. Tão frias. A ausência aterradora de cheiro. A vontade do que é recíproco e não chega. Vozes embaraçadas. Palavras embasadas. Visões embaciadas. E uma sala inteiramente repleta de nada.

 

É só que a melhor parte do meu coração parou.

 

Os corações repartidos nunca sabem verdadeiramente que pode parar apenas uma das suas partes. Acreditam que, quando uma parar, pararão todas. E talvez eu tenha morrido e não saiba. E talvez eu tenha morrido e esteja viva.

 

A melhor parte do meu coração parou. Fiquei sem ninguém que me ensine os mais puros conceitos de amor, de família, de saudade e de perfeição. Os Deuses antigos ficaram mudos e as suas sinfonias foram substituídas pelo grito ensurdecedor do silêncio.

 

E, antes do silêncio, a chamada. A voz muda. O escutar de palavras minhas, mínimas, despidas de qualquer pedido e repletas de revelações que já tinham sido feitas um milhão de vezes. Estou aqui. Gosto de ti. Adoro-te.

 

Podia ter dito outra coisa. Aguenta. Não morras. Não vás. Mas, ouvindo na distância essa parte de mim, tive medo de sujeitá-la à dor. Porque essa parte – sem dúvida, a melhor do meu coração – teria certamente ficado apenas para me dar o que eu pedia, como me deu tudo o resto, ao longo de uma vida inteira.

 

Sem pedido que a agarrasse a este plano, a melhor parte do meu coração parou. Com ela, levou a mulher que me fez gente. A mentora que me deu todos os princípios da vida. A amiga que nunca me abandonou. Levou a linha que separa o estar sozinha de ser só.

 

As pessoas odeiam as palavras. Principalmente as duras, sem eufemismos. Como doença. Morte. Fim. Eu não. Mas odeio que não haja palavras duras o suficiente para explicar o que sinto. E que me sobre silêncio, enterrado debaixo de muitas camadas de terra e algumas flores.

 

A melhor parte do meu coração parou.

 

Tenho o coração repartido. E partido também.





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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Olhos verdes

 

Fotografia de Analua Zoé


Às vezes, os meus olhos ficam verdes. Os olhos verdes favorecem-me. Olho para eles e sinto-me mais bonita. Como se pudesse conquistar o mundo.

 

Acontece que os olhos verdes são um traço que, da infância para cá, tenho perdido. Nasci com os olhos castanhos. Clarinhos, um tom acima do da avelã. Mudam de cor. Mas é só o marejar do castanho dos meus olhos que os torna verdes. Quando a mágoa se transforma em água e transborda pelo recanto remelento do olhar.

 

Raramente verdes, os meus olhos aprenderam com a vida a engolir as cascatas. Foram secando, da infância até hoje. Ressecando-me a pele e a experiência do mundo. Deixando-me com os rebordos quebradiços e crestados, numa rispidez quase crónica que, cronicamente, me deixa só.

 

Aprender a não chorar com os desgostos é consequência dos próprios desgostos. E da idade. E da maldade do universo humano. Com o passar dos anos, cursos inteiros de teatro caseiros fazem da vida um palco constante. Aprendemos a sorrir às agruras como se elas não existissem. Exibimos essa mentira formal e socialmente aceite. Deixamos que nos escureçam os olhos. E o coração.

 

Sim! A vida tem tornado os olhos verdes muito raros em mim. No meu rosto existem, quase sempre, os olhos castanhos com que nasci. Raiados de sonhos que ninguém vê e de mágoas que poucos conhecem. Raramente choro e não gosto de chorar. Gosto de ter uma força titânica, toda feita de rocha e gelo. Ainda que isso me torne, também a mim, rocha e gelo. Desmerecedora de amor ou carinho alheio. Eternamente sozinha, caminhando descalça numa estrada enregelada e coberta de espinhos.

 

Inevitavelmente, contra todos os meus esforços, algo ou alguém me motiva as lágrimas que recuso. E eu choro. E, quando eu choro – essas raras vezes - fico com os olhos verdes. Mas eu já não acho que são os olhos que clareiam. Penso que é a alma que, livre desse negrume que acumulo sempre quando tento ser forte, se deixa aclarar até que o castanho seja avelã e a avelã seja verde-azeitona.

 

Já foi preciso muito pouco. Mas, hoje, para eu chorar, preciso de muito ou de alguém que me seja muito. Quando acontece, quando alguém tira isso de mim, recebe-me os olhos verdes. Tem a minha versão mais bonita. Porque eu sou mais bonita quando choro. Mais leve. Mais humana.

 

Tu tinhas um choro fácil. E sempre detestei ver-te chorar, por mais bonita que ficasses. Na ideia de perder-te, de repente, os meus olhos ficaram verdes. Os olhos verdes favorecem-me. Olho para eles e sei que devia sentir-me como se pudesse conquistar o mundo.

 

Os meus olhos estão verdes e eu devo estar bonita. Mas o meu mundo eras tu.

 

Os meus olhos estão verdes e eu devo estar bonita. Olho para eles, no reflexo do espelho.

 

Sou uma rapariga bonita de olhos verdes.

 

Mas como é que eu vou viver sem ti?

 

 Marina Ferraz



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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morrer sem ti

 

Fotografia de Analua Zoé

Convido-te para a celebração do meu perecimento. Peço que, se guardas no teu peito réstia de amor por mim, possas reservar-me um momento e vir. Ver-me. Nesse dia. O do meu desaparecimento. Gostavas que lá estivesses quando eu morrer.

 

Perdoa este convite inesperado. Inusitado. Quebrando o silêncio-mãe que patenteaste e sobre o qual deténs todos os direitos de propriedade emocional. Perdoa o convite. Mas penso que seria triste morrer sem ti.

 

Pensa comigo. Nasci num dia de Verão e vivi sempre com frio. A regulação térmica do meu corpo e da minha alma sempre foi insuficiente para que eu conseguisse manter-me confortável. Ao longo dos anos, mal recordo calor nas noites senão aquele que bebi do teu corpo, quando me agarravas, puxando-me para ti como se abraçasses o mundo. Não era o corpo que me aquecia, embora aquecesse. Era algo que, internamente, se afogueava na ideia de um “para sempre” presunçoso e cheio de si, que nunca viria a ser. Então, nessa hora, a hora de arrefecer para sempre, gostava de ir com a sensação calorosa da tua presença. Por favor, se puderes, se conseguires, vem…

 

Seria triste morrer sem ti. Perpetuar essa rotina de todos os dias, que tem sido morrer, de-va-ga-rinho. Continuar a sentir as células na sua apoptose louca e desvairada. Senti-las a apagar, uma a uma, dizendo sempre, antes de se corromper, que foram felizes contigo.

 

É verdade. Morrer sempre foi um sonho. Até o sonho morrer. Mas descubro, a cada segundo, que não quero verdadeiramente morrer assim. Sem te ter por perto, para te olhar o rosto uma última vez. Não quero morrer sem ti. E, se te convido para a celebração do meu perecimento é tão só por isso: por querer encontrar novamente o desejo da morte. Uma morte melhor do que a vida. Como talvez todas as mortes sejam.

 

Vem. Peço-te. Penso que seria triste morrer sem ti. Tombar, por fim, no último suspiro, sem que lá estivesses. Sem poder olhar os teus olhos enquanto os meus perdem a luz, astros cadentes, carentes, de um sonho que nunca foi e sempre doeu.

 

Sim. Penso que seria triste morrer sem ti. Seria triste morrer como vivi. Olhando para o lado oco da cama, cheio de ecos. Mas a vida já não importa e nada te peço sobre ela. Mas penso que seria triste. Morrer sem ti. E peço que venhas.

 

Hoje, com tanto para contar, nesta narrativa de mil sóis postos na tela, eu imagino que todas as minhas mágoas tenham sido brandas ao lado desse destino. De todas as minhas sentenças, a pior seria essa. Morrer sem estares lá. Pior do que não te ter conhecido ou não poder encontrar-te nos recantos da vida ou não poder, contigo, partilhar o mundo. Morrer sem estares lá seria como nascer sem que a minha mãe lá estivesse. Vazio e inócuo e despropositado.

 

Penso que seria triste. O mais triste de todos os destinos. Morrer e não estares lá. Morrer no embalo da solidão. Morrer e não poder olhar-te nos olhos. Morrer e não estar lá quem nos matou.

 

    Marina Ferraz



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terça-feira, 6 de outubro de 2020

A melhor parte do meu coração

 



Para a minha avó


Há um órgão muscular em nós. Ele bombeia o sangue e retira do ar o oxigénio que nos permite a vida. Dizem que é uno. Dividido em quatro cavidades, é certo, mas uno. Insistem que é apenas num corpo que esse órgão cumpre funções. Mas eu discordo!

 

Eu, por exemplo, tenho o meu coração repartido. Ao longo da vida tenho cortado paredes coronárias, musculadas e inúteis, para as repartir noutros peitos. Escolho, usualmente, aqueles peitos aos quais gosto de me encostar, para receber bênçãos e abraços. Porque é assim que, por vezes, encaixo as peças dispersas, como legos cardíacos, encostando o meu peito a outro peito para sentir os batimentos coordenados do amor.

 

Aurículas e ventrículos aprenderam, em mim, a viver incompletos. Na verdade, reclamam, por vezes, daquelas partes mal empregues, deixadas em peitos que nunca mais se encostaram ao meu. Mas regozijam-se diariamente. Pelo menos duas vezes mas, na maioria, três. A primeira pela manhã, a segunda pelas cinco da tarde e a terceira às nove da noite. Nestas horas, a melhor parte do meu coração, se não se encosta a mim, costuma ligar. Um abraço distante mas que locomove as peças do meu peito, arranjando espaço para uma voz que completa, de alguma forma inusitada, os vazios que se formam naquele espaço intercostal onde a ponta cardíaca é mais forte.

 

Justificando plenamente a divisão muscular que, ao longo da vida, fui efetuando, essa parte do meu coração – que é, não duvido, a melhor delas – vai ensinando muito sobre a vida e os seus mistérios. Alguns dos conceitos que me deixa são tão preciosos que nenhum dicionário ousaria tê-los. Dá-me novos conceitos de amor, de família, de saudade e de perfeição.

 

Não duvidem. A melhor parte do meu coração é muito simples e totalmente perfeita. Mora num peito sem defeitos. Ali, onde bebés deitaram as cabeças de cheiro a caramelo e lágrimas se verteram e mãos crentes bateram levemente, ao Domingo, pedindo perdão sem ter pecado. A melhor parte do meu coração bebe do toque abnegado de uma mulher que é mãe de muitos filhos que não gerou, muitos dos quais nascidos da filha única, gerada e feita num amor que tudo tolerou.

 

Quando o telefone toca – pela manhã, às cinco e às nove – toca-me também essa plenitude de receber novamente o encaixe perfeito da melhor parte do meu coração. Um coração tão bom que não precisa de bater depressa para tocar uma sinfonia cantada na voz dos Deuses antigos.

 

Um dia – deixem que vos conte - esta parte do meu coração quase parou. 28 vezes por minuto, determinava um compasso assustador que me fez crer que, no dia seguinte, uma parte do meu coração pararia. Lento e fraco, sem capacidade para avigorar as células do corpo, esse coração, que mal batia, ainda dedicava 28 batimentos por minuto a todas as pessoas que amava. E ainda dizia, com voz débil, aos senhores de bata branca: a minha filha e as minhas netas estão lá fora. Como se dissesse: elas importam e eu não. A minha filha e as minhas netas estão lá fora.

 

Estávamos. Lá fora. Eu, com as sobras do meu coração partidas, num desvario de orações pagãs para que aquele pedaço de coração – a melhor parte do meu coração – encontrasse o ritmo do sonho do amanhã. E ela, tão cansada, podia facilmente ter adormecido o peito cadente nas horas dessa noite para descansar da vida e de todos os seus (muitos) desgostos. Mas, em vez disso, repetia aos senhores de bata branca: a minha filha e as minhas netas estão lá fora. E essa parte débil do meu coração acendeu-se novamente. Pelas filhas e as netas que aguardavam. Pelos outros. Como tinha feito – além de filha e dos netos - pelos pais, pelos irmãos, pelo marido, pelos estranhos, pelas pessoas que a maltratavam e pela ideia de Deus.

 

Encosto o meu peito ao dela. Dizem que há um órgão muscular em nós. Que é uno e vive apenas num corpo, cumprindo funções. Encosto o meu peito ao dela. E discordo. Ao longo da vida, tenho repartido o coração. Cortado paredes coronárias, musculadas e inúteis, para as repartir noutros peitos. Encosto o meu peito ao dela e sinto que completo o meu com a sua melhor parte.

 

Dentro desse peito que não é meu, hoje, uma parte do meu coração faz anos. A melhor parte do meu coração faz anos. E celebram-se os anos desse coração que bateu e bate ainda. Constantemente pelos outros.

 

Encostada a esse peito onde me mora a melhor parte do coração, ouço cantar nos ouvidos sentimentos e conceitos. Existem 90 anos de conselhos neste abraço. E a noção de plenitude. Aproveito os ensinamentos. Principalmente o conceito. Esse. Que não vem no dicionário e me faz celebrar, hoje, a vida. Esse. Perfeição: a grandiosidade escondida na simplicidade das coisas.




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