terça-feira, 25 de maio de 2021

Sem lágrimas

 

 Fotografia de Analua Zoé


Dentro de nós há cidades destruídas. Somos as cidades destruídas que trazemos dentro.

 

 

As imagens são claras. Ela caminha por entre os destroços de pedra. Respira o pó. Tem, nos braços, o corpo inerte e mole da cria que, agora, é somente carne dilacerada e carcomida pelas circunstâncias. Olhamos para ela e queremos que chore. Queremos que chore porque os traços da mágoa se evidenciam, deformando-lhe o rosto. Conseguimos ver os poros emanar os fluídos da alma rasgada. Conseguimos escutar o grito mudo, exalado pelas mãos que acarreiam o cadáver. E ela não chora.

 

Nas ruas, os corpos fuzilados, de crânio aberto e sangue seco manchando a pele, têm marcas de tortura. Formam filas organizadas no chão. Alguns, de olhos vítreos e abertos, indagam o espaço numa busca pétrea pelo deus que não lhes salvou a vida. Em seu redor, as palavras roubadas dos lábios encobrem-se no peito. Nenhuma família reclama os corpos. Os mortos não reclamam. E os vivos não choram.

 

Adormecida, no ninho quente e materno dos lençóis, a criança é acordada por um bombardeamento. Senta-se na cama, igual a qualquer outra cama. Esfrega os olhos, como qualquer outra criança. Ouve as bombas como música. Ouve-as como a uma oração. E ali fica. Com a naturalidade de quem nunca acordou com outro som ou conheceu outra realidade. A bomba cai. A criança não chora.

 

 

O mundo desaba. Corpos dilacerados. Cidades destruídas. Fome. Frio. Ar putrefacto. Histórias que se repetem e são unas para alguém. A morte e a destruição. Sensações rarefeitas construídas, falta a falta. O andar do tempo sobre o abismo dos impossíveis e a nossa passividade, disfarçada de distância e impotência.

 

Marejam-me os olhos. E choro. Percebo que sou privilegiada. Por isso. Por poder chorar. E penso. Roubaram-lhes as lágrimas.

 

As lágrimas.

Os filhos.

A cidade.

A vida.

 

 

Dentro de nós há cidades destruídas. Somos as cidades destruídas que trazemos dentro. E o fogo cruza-nos o céu dos olhos que choram. Ficamos. Bombardeados. Imagens que vemos. Que não vemos. Que desligamos no canto superior direito do comando. Cedemos à dor líquida do que está distante. Limpamos o rosto. Temos mais vergonha do choro do que da pútrida raça humana, que de humana tem tão pouco.

 

Somos autores da história que não vivemos. Sobram-nos os recursos. E choramos.

 

Eles não! Roubaram-lhes as lágrimas. Há só pontes em ruínas sobre o rio cheio de mágoa. Nada liga as margens entre dor e dor. Há um povo que acorda para a morte. Ou não acorda.

 

 

Roubaram-lhes as lágrimas.

 

Ninguém chora…








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terça-feira, 18 de maio de 2021

Sonhos de framboesa

 



O sonho arde na garganta. Bebida entusiasta e quente. Doce. Com muitas estrelas gaseificadas no copo. E o gelo ondeando na viagem, tinindo contra o vidro. A transparência é da alma e os sorrisos condensam. Sopra a tonalidade rubra de uma framboesa fora de época. E passa um satélite, algures. Lentamente. Trilhando o céu como se espiasse. O copo. O sonho dentro do copo. Os corpos.

 

No canto iluminado do meu ciúme nasce um poema qualquer. Fio de lágrima, estendido desde a ponta agreste que rasga os lábios até à mesa, esse mar de muitas marés, onde permanecem as histórias que ninguém conta.

 

Existe vazio e plenitude, no lugar onde são pleonasmo. Nenhuma contradição os modela. Os degraus são feitos de essência mareada, onde todos os nuncas e todos os sempres parecem gastos nas histórias infames da nossa infância triste.

 

A pele que se toca é firmamento. Choque elétrico, feito nessa sabedoria itinerante, que se fez de fogo-fátuo. Convidam-se os mortos a beber. Inebriados pela ideia da vida que se esvaiu dos seus sopros mornos e que perdura no passar zumbido de algum inseto triste.

 

Deixo marcados na areia os meus passos. Crateras lunares de traça certa, onde se exibe o número e a malha da sola de todos os concretos que eu nunca tive.

 

Dispo-me de certezas e levo, nua, a única que me sobra. Sonho de framboesa. Na bebida. Quente. Ponteada de gelo e sabores agridoces. O encontro dos copos faz um som que vibra no Olimpo e acorda Baco.

 

Não há nuvens no céu. As suas lágrimas vastas são, nesse sonho, somente oceano. Encolho-me no âmago de tudo o que não se diz e disperso na infinitude sem dono do horizonte negro que me povoa a mente.

 

Chovem. Estrelas e catástrofes. Pensamentos estivais de uma neve fofa, caída no copo, lado a lado com a framboesa.

 

O sonho arde na garganta. O gelo derrete e o corpo acende. O vento agita o fogo. Eu suspiro. A vela apaga-se. Passa um satélite, algures. Lentamente. Trilhando o céu como se espiasse. O copo. O corpo. O gelo e o fogo e as escarpas de pensamento que os unem num só.

 

Amoras, framboesas, morangos. Pensamentos e histórias e lugares sem dono. As primeiras cerejas da estação quente. E o passado todo condensado no vidro fosco.

 

Os satélites do céu poderiam ser bombas. E o copo poderia ser casa. E a framboesa poderia ser sangue. Há muitas vítimas deste frio quente sem nome. E o sonho? O sonho (sobre)vive.

 







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terça-feira, 11 de maio de 2021

Exorcismo


Fotografia: Miguel Pião

Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Peçam-lhe que me exorcize os demónios. Estou farta de escalar paredes. O chão está em chamas. Sorrio.

 

 

Não sou eu que olho a janela. Quem a olha, hoje, são os demónios. Esses que me povoam a história e a vida, como se história e vida fossem parcelas de uma mesma coisa, toda feita de costumes e eternidades.

 

Os demónios gostam mais das noites escuras e preferem que durma. Desgastam-se nas horas de assombro, em que os acordo e irrito, sujeitando-os ao universo constante, linear e todo cheio de concretos que é o amor.

 

O chão arde e os meus pés descalços palmilham lentamente as lajes. Passo a passo, numa dança constante de segundos e décadas e séculos e milénios de uma mesma coisa. Essa que é o fogo que o chão exala e a alma bebe e os demónios odeiam e querem regar de água benta.

 

Sim! Os meus demónios querem ser exorcizados. Alegam que mais vale o inferno. Que o meu amor é destino pior. Que a minha mágoa lhes traz a memória dos tempos da purga, quando ainda tinham alma e conheciam a dor. Pedem que coloque este apelo que vos lanço, enquanto escalo as paredes, com o chão em chamas. E sorrio. Louca. Louca. Louca. Louca. No tempo antigo da loucura. Quando não era doença mas condição. Quando não era incapacidade mas raça, linhagem, casta e posto hierárquico. Uma espécie de vírus transmissível pelos olhos que se evitavam na rua.

 

Todas as fogueiras onde ardi me fazem rir agora. Uma Divina Comédia, presa aos níveis circulares que Dante viu e aos outros, os multiuniversos externos onde o inferno colide com um ardor no peito, feito azia, que se expande nos poros do indizível.

 

Os meus demónios querem ser exorcizados. Alegam que mais vale o inferno. Que o meu amor é destino pior. Imploram-me, nas horas de assombro, que peça ajuda. Esta. Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Peçam-lhe que me exorcize os demónios. Estão fartos de escalar as paredes de mim. Estão fartos do chão em chamas que eu sou. E choram.

 

Convivo bem com eles. Os miseráveis demónios que olham a janela e me povoam a história e a vida. Mas eles querem um inferno mais pequeno. Menor. Querem retornar aos círculos dantescos, onde só veem, da dor, o que a dor diz ser.

 

Por isso, peço. Em seu nome. Chamem alguém que perceba dessa coisa que é Deus. Que, de Deus, eu só conheço o Adeus. E eles dizem que não serve.

 




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terça-feira, 4 de maio de 2021

Espiga


 

“Não é cortando as espigas mais altas que as mais baixas se elevam”

- Autor desconhecido

 

 

A mim?! Sim, também! Tantas vezes a mim! Mas não sou uma exceção. Sou só mais uma espiga, num campo de espigas condenadas a sobreviver ao vento, a lutar contra o vento, a persistir… Sou só mais uma espiga a saber que a altura dos meus sonhos incomoda quem vive na sombra das suas próprias limitações e que, por isso mesmo, eles julgam…

 

Julgam. Mas julgam mal. Porque acreditam, ingenuamente, com uma qualquer devoção sacrossanta, que a destruição dos outros é criadora dos caminhos que os elevam ao sucesso. Mas o sucesso não é um lugar. E os cadáveres dos outros não são degraus. E, ao vergarem quem estava erguido, continuam subjugados à sua pequenez, de alma árida, de pensamento estéril, de vida tacanha, de mesquinhez…

 

Mas tentam. Constantemente. Cortar. Cortar é mais simples porque o vento fere e erguer os braços demora e o tempo arrasta-se e o esforço do corte é menor do que o da sobrevivência perante a força bruta dessa aragem, mãe de tempestades e realidades atuais e cruas.

 

Cansados antes do começo do esforço. Desistentes antes da tentativa. Senhores do caminho-mais-fácil-e-mais-curto porque o outro é sinuoso e agreste. Donos de convicções podres. Filhos de uma Era de facilitismo e comodidade. Esperam. E, quando esperar não basta, atacam. Cortam. Destroem. Acham que crescem assim. Acham que ganham assim. Acham-se melhores assim. Por caminho, cegos, eles ferem e causam dano. Toda a gente perde.

 

São feitos de armas afiadas e pouco mais. Justamente por isso, menores. Pequenos. Agressores. Justamente por isso, vazios. Cortam. Destroem. Seja por palavras ou atos. O que for mais simples e imediato… tanto faz!

 

A mim?! Sim, também! Tantas vezes a mim! Mas não sou uma exceção. Sou só mais uma espiga, num campo de espigas condenadas a sobreviver ao vento, a lutar contra o vento, a persistir… Sou só mais uma espiga a saber que a altura dos meus sonhos incomoda quem vive na sombra das suas próprias limitações.

 

Não lhes desejo mal. Que cresçam! Que cresçam e parem de tentar reduzir quem, em redor, já cresceu. O sol é de todos. O sol é de todos os que erguem os braços e aceitam que o tempo se arraste e se esforçam por sobreviver à força bruta dessa aragem, mãe de tempestades e realidades atuais e cruas.

 

Sou só mais uma espiga a saber que a altura dos meus sonhos incomoda quem vive na sombra das suas próprias limitações. Mas eles cortam. Destroem. Fico a vê-los chegar com as facas.

 

Fecho os olhos e respiro fundo. Quando me cortarem a vagem, talvez se espantem. Serei só uma espiga, num campo de espigas. A abrir as asas e voar. Para ser só mais uma ave num céu sem fronteiras. 


 Marina Ferraz






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