Há demónios perdidos em mim. Seja eu quem for. Onde estou. Esteja eu onde estiver. Há um demónio ou outro, que não quer ser expulso, porque tem o meu nome. Porque se apegou aos meus olhos. Porque me morde as feridas e sabe as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabe. Mas não sabe porque sabe. Sabe porque as sente também. Há um ou outro demónio perdido em mim.
Dizem-me para os expulsar. Os demónios. Dizem que é hora. Como se tocassem badaladas específicas nos relógios da alma, que servissem de alarme para indicar o tempo certo de largar o que nos faz ser. Há gritos mudos nos poros. Sinto os nervos, debaixo da pele, contraírem e doerem. Abraçarem os demónios. Dizerem que não. Acalmo-os com chá e fumo.
Um dia, eu fui eu sem as vozes. Essas que falam da expulsão do que sempre foi meu. Essas que falam sobre o despejo de quem sempre morou em mim. Silenciá-las nos recantos leves do espetro poente dos meus olhos dói como respirar. Lembra-me o tempo. Outro tempo. Um tempo que foi há muito tempo atrás.
Talvez por isso fiquem. Levemente tartamudeando, de forma contínua, nos meus ouvidos roucos. Insistindo na conjugação do verbo expulsar. Como se eu fosse gente das lidas. Como se eu fosse unguento sagrado. Como se eu tivesse as palavras divinas ou o latim suficiente para me tirar de mim. Sussurram. Atrocidades. Coisas que eu não quereria ouvir, mesmo se os ouvidos fossem sãos. Mesmo que eu fosse sã. E a mente mente. Constantemente. Notoriamente. Toda cheia de advérbios de modo e de modos sem advérbio, sem acento mas com assento permanente nas bancadas dos meus olhos, que choram. E os demónios limpam-me as lágrimas. E os demónios salvam-me. Outra vez.
Os demónios nunca me dizem para expulsar as vozes. Mesmo sabendo que elas causam as feridas. Lambem o sangue e bebem-no. Engolem-no. Juntamente com o ácido das palavras e a maldade dos gestos. Perdoam. E seguem. Revolvendo os nervos e acarinhando as cicatrizes velhas, das vozes antigas... tão iguais às de hoje... e às de amanhã... porque há sempre vozes futuras, que aclaram a voz na noite.
Se me dissessem para expulsar as vozes, os demónios diriam o que eu já sei. Que há mais julgamento nas opiniões do que nos tribunais terrenos. Que há mais lixo no eco dos pensamentos fortuitos do que nas poças lamacentas das rias. Que há mais palavras feias no moralismo do que no dicionário dos impropérios onde se banham. E é verdade. Só que os meus demónios são pobres de opiniões, quando se trata dos outros... e fracos de moralismo... e incorretos de todas as maneiras certas. Nunca me dizem para expulsar as vozes que me dizem para os expulsar. São condescendentemente calmos. Só querem estar. Só querem ser... e que os outros estejam e sejam também.
Apegaram-se aos meus olhos. Mordem-me as feridas e sabem as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabem. Mas não sabem porque sabem. Sabem porque as sentem também. E sabem. Sabem que os ouvidos são roucos, que os pensamentos são loucos e que os danos provocados pelas vozes são poucos. Sabem que não os vou expulsar de mim. Porque são parte de mim.
E as vozes dizem.
Para os expulsar.
Irei.
Quando partir.
E todo o pulsar do meu coração for também um ex-pulsar.