terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Expulsar

 


Há demónios perdidos em mim. Seja eu quem for. Onde estou. Esteja eu onde estiver. Há um demónio ou outro, que não quer ser expulso, porque tem o meu nome. Porque se apegou aos meus olhos. Porque me morde as feridas e sabe as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabe. Mas não sabe porque sabe. Sabe porque as sente também. Há um ou outro demónio perdido em mim.

 

 

Dizem-me para os expulsar. Os demónios. Dizem que é hora. Como se tocassem badaladas específicas nos relógios da alma, que servissem de alarme para indicar o tempo certo de largar o que nos faz ser. Há gritos mudos nos poros. Sinto os nervos, debaixo da pele, contraírem e doerem. Abraçarem os demónios. Dizerem que não. Acalmo-os com chá e fumo.

 

Um dia, eu fui eu sem as vozes. Essas que falam da expulsão do que sempre foi meu. Essas que falam sobre o despejo de quem sempre morou em mim. Silenciá-las nos recantos leves do espetro poente dos meus olhos dói como respirar. Lembra-me o tempo. Outro tempo. Um tempo que foi há muito tempo atrás.

 

Talvez por isso fiquem. Levemente tartamudeando, de forma contínua, nos meus ouvidos roucos. Insistindo na conjugação do verbo expulsar. Como se eu fosse gente das lidas. Como se eu fosse unguento sagrado. Como se eu tivesse as palavras divinas ou o latim suficiente para me tirar de mim. Sussurram. Atrocidades. Coisas que eu não quereria ouvir, mesmo se os ouvidos fossem sãos. Mesmo que eu fosse sã. E a mente mente. Constantemente. Notoriamente. Toda cheia de advérbios de modo e de modos sem advérbio, sem acento mas com assento permanente nas bancadas dos meus olhos, que choram. E os demónios limpam-me as lágrimas. E os demónios salvam-me. Outra vez.

 

Os demónios nunca me dizem para expulsar as vozes. Mesmo sabendo que elas causam as feridas. Lambem o sangue e bebem-no. Engolem-no. Juntamente com o ácido das palavras e a maldade dos gestos. Perdoam. E seguem. Revolvendo os nervos e acarinhando as cicatrizes velhas, das vozes antigas... tão iguais às de hoje... e às de amanhã... porque há sempre vozes futuras, que aclaram a voz na noite.

 

Se me dissessem para expulsar as vozes, os demónios diriam o que eu já sei. Que há mais julgamento nas opiniões do que nos tribunais terrenos. Que há mais lixo no eco dos pensamentos fortuitos do que nas poças lamacentas das rias. Que há mais palavras feias no moralismo do que no dicionário dos impropérios onde se banham. E é verdade. Só que os meus demónios são pobres de opiniões, quando se trata dos outros... e fracos de moralismo... e incorretos de todas as maneiras certas. Nunca me dizem para expulsar as vozes que me dizem para os expulsar. São condescendentemente calmos. Só querem estar. Só querem ser... e que os outros estejam e sejam também.

 

 

Apegaram-se aos meus olhos. Mordem-me as feridas e sabem as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabem. Mas não sabem porque sabem. Sabem porque as sentem também. E sabem. Sabem que os ouvidos são roucos, que os pensamentos são loucos e que os danos provocados pelas vozes são poucos. Sabem que não os vou expulsar de mim. Porque são parte de mim.

 

E as vozes dizem.

Para os expulsar.

 

Irei. 

Quando partir.

 

E todo o pulsar do meu coração for também um ex-pulsar.

 

  Marina Ferraz





Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!


 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Não faz mal, vida

 



Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te. E faço-o porque não quero carregar o peso da mágoa, a angústia do tempo... todos esses pedacinhos de ressentimento. Não faz mal, vida... está tudo bem.

 

 

O dia nasceu enevoado, mas limpei as nuvens do céu com o pano do pó. Esfreguei os cantinhos azuis, até resplandecerem raios. Deixei que eles viessem secar-me a roupa estendida, com aroma a sabão de Marselha e verão.

 

Senti que o frio adensado ainda me prostrava os pensamentos. E acendi a lareira. Fiquei a observar a forma como os ramos secos reclamam, à medida que se transformam em cinza. E a forma leve, quase maternal, como o fogo os envolve, como se os embalasse, antes de os destruir.

 

Pensei em ti. Vida. E em todas as formas como me deste os ramos secos do peito. E em todas as formas como me apagaste, com as tuas chuvas e pós, o fogo da alma. E senti. O toque ressentido dos dedos – os teus dedos – a roçar as feridas, gélidas e purulentas, do que o tempo não sarou.

 

Por momentos, quis culpar-te, sabes?! Culpar-te pela mágoa que me provocaram os dias. Pela invisibilidade do eu. Pelo tremer no escutar do meu nome nos corredores. Pelo “hoje não, quem sabe um dia!”. Pelo “adeus” pincelado de sabores e brisas e promessas. Pelas pegadas que o mar apagava, junto à Foz. Pelas oportunidades, arrancadas das mãos secas, com os cadernos meio escritos, meio por escrever. Pela chamada das seis, eternamente calada no silêncio do meu telemóvel. Por momentos... quis culpar-te... mas não faz mal, vida!

 

Não quero carregar a culpa, seja ela tua ou minha. Não quero esse peso em mim, alheio ou não. O rancor é uma cicatriz eterna e funda, que enraíza e mói, até que tudo seja frio e seco, como os ramos que jamais serão cinza. Decidi limpar as nuvens por dentro com o pano do pó, deixar os raios resplandecer. E acalmar o meu próprio frio com o reacender de fogos antigos e abraços renovadamente eternos. Queimar a animosidade nas fogueiras de uma inquisição só minha, onde todas as bruxas são salvas e toda a tirania se reduz ao nada.

 

Cheira a sabão de Marselha e a um universo de possibilidades.

 

Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te.

 

Não faz mal, vida.

 

Sobrevivi.


 Marina Ferraz





Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Bolinha amarela

 

Fotografia de Hans

Quando era pequena, contavam-me muitas vezes, em tom de anedota, uma longa, longa história chamada A Bolinha Amarela.

 

Esta história falava-nos do Pedrinho, criatura nascida entre a fortuna, que desde cedo teve acesso a… tudo.

 

A história, que lenta e dolorosamente se conta ano a ano, mesmo para criar um entretém de tempo infinito na piada cuja punchline parece não chegar nunca, leva-nos do primeiro aniversário do Pedrinho até à sua precoce morte, aos vinte e tal, travando em cada aniversário e Natal, para nos dar conta de que esta criatura pedia sempre aos pais, como prenda, uma bolinha amarela.

 

Da história, ficamos a saber que o moço, na sua rica família, recebe nestes eventos os melhores brinquedos, viagens, um apartamento de luxo, um Ferrari, um iate… enfim: um gigante e luxuoso conjunto de tudo! Até ao momento culminante da história, onde, espetando-se com o seu caríssimo Ferrari, todo entrevado, no hospital e a mal conseguir falar, perguntam a um Pedro moribundo se ele quer alguma coisa. E a resposta é: uma bolinha amarela. Consternados, os pais finalmente perguntam: Mas para que queres tu uma bolinha amarela?. E ele responde: Quero uma bolinha amarela porque… e morre.

 

Eu sei que é suposto ser uma anedota. Ou, pelo menos, uma história de quase uma hora, onde as expetativas da punchline são hilariantemente frustradas. Mas, numa análise mais crítica, também é uma boa forma de olhar para a realidade quotidiana de uma sociedade meio surda, meio cega, totalmente orientada para o próprio umbigo… e que nem sempre considera o outro enquanto ser pleno, completo, individual, capaz de desenvolver ideias próprias e de ter desejos únicos e concretos.

 

Apercebo-me disto quando enuncio pedidos simples, sobre o que eu quero; e me tentam dar mais, melhor. Apercebo-me disto quando digo que não quero algo, e mo oferecem à mesma, porque é bom, porque é útil, porque “vais ver que te dá jeito”.

 

Talvez, por vezes, as pessoas prefiram a sandes mista ao restaurante gourmet; passear junto ao mar em vez de ir às Maldivas; estar quietas e em silêncio, em vez de experimentar uma one-lifetime-adventure; uma bolinha amarela a todos os luxos do mundo.

 

Acredito que a pessoa mais especial não é a que nos oferece as coisas mais caras, mas a que dedica uns minutos da sua atenção para ouvir verdadeiramente o que queremos, do que precisamos, como pode ajudar… É aquela que consegue despir-se de si para entender o outro, que respeita que as necessidades e as vontades alheias podem não ser iguais à sua.

 

A individualidade é mesmo assim. Ser e deixar ser é mesmo assim. É tão fácil… e tão, tão raro...

 

Exprimo, sem pudor, o que quero e não quero. E gosto de coisas pequenas. Simples. Das bolinhas amarelas da vida…

 

Não me interessa se o Pedrinho morreu muito rico, porque nunca teve o que queria. E não importa como acabava a justificação do Pedrinho porque, sejamos francos, se ninguém o tinha ouvido até ali…

 

Eu sei que estamos no meio de uma pandemia… mas acho mesmo que estamos a precisar mais de reforçar a nossa humanidade do que a nossa imunidade…

 

Por isso, uma sugestão:

Vamos ouvir mais…

Ser mais…

Ser melhores…

 

Porque só eu sei como desejo a todos que encontrem essa bolinha amarela que - vá-se lá saber porquê - é tão pouco… e tão importante!



 Marina Ferraz





Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O quinto shot

 


Depois do quinto shot a conversa talha-se em inglês. O inglês é simples e acompanha o ritmo do pensamento. Alerta a bartender para a ideia de que acabaram os copinhos cheios de absinto de 80% vol. A partir dali, só suminho pintalgado de álcool e olhares de confirmação, para ver se estamos bem.

 

Sabemos que o inglês a alerta, mas não nos importamos. Queremos só a pacatez de estarmos as duas, sentadas no balcão do bar, meio obscuro, a beber um bocadinho acima do razoável, obrigando os fígados a arcar com as consequências de todas as escolhas feitas nos momentos em que o coração domina o cérebro.

 

Ela diz-me uma ou duas coisas que eu já sei. E eu respondo com três ou quatro que ela já sabe. E sorrimos uma à outra. Ponteando a conversa com exclamações de apreço. Tive saudades tuas. Damos as mãos.

 

Levo sempre comigo um cansaço que me confere o ar inegável de quem inveja os mortos. E ela esconde-se nas camisolas desportivas – usualmente da secção infantil de rapaz – e sorri-me, meio preocupada com as olheiras.

 

Devemos ser esquisitas. Quando nos perguntam se queremos e precisamos de mais alguma coisa, queremos somente o que enche os 44 ml do copo arrefecido, duas rodelas de limão e sal. Devemos ser esquisitas. Brindamos sempre ao mesmo e com a mesma intenção. E até levamos livros e cadernos e cartas de tarot para o bar.

 

São histórias que se repetem. Que se repetiam. Que nunca eram a mesma história, mas condensavam um universo de pequenos universos do que pode ser narrado em loop. Simples. Como o quinto shot que nos levava ao twist linguístico.

 

I believe I’m a bit drunk now.

Me too.

We’ll be fine...

 

Era para termos ficado. Bem. Mas o bar fechou. A pandemia veio. Os bares abriram – não aquele, outros – e a entrada foi-nos vedada por novas normas. Somaram-se mais normas e novas portas fechadas. Beber ao balcão tornou-se perigo de saúde pública. Beber na via pública é proibido... e pedem que mantenhamos a distância. Não da bebida... uns dos outros. Menos afetos, menos toques, menos contacto...

 

E claro que o álcool não importa nada para a minha história com ela. Não cumprimos a política do não-afago. Continuamos a encontrar-nos quando o tempo permite e a deixar cair dos lábios expressões que enunciam a saudade. Reviramos os olhos às circunstâncias e aos rebanhos. Mas sentimos – eu sinto – que nos roubaram um espaço que era nosso, numa tradição que era nossa... e que faz falta.

 

 

Aos bocadinhos, os arcos-íris ridículos que penduraram em todo o lado – vai ficar tudo bem – perdem a cor e o sentido. Levam-me àquele balcão de bar, onde me sentava com a minha melhor amiga...

 

E, olhem... não me lembro... mas devo ter bebido cinco shots. Porque só me ocorre uma palavra. E está em inglês. Fuck!

 

  Marina Ferraz





Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!