terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Não faz mal, vida

 



Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te. E faço-o porque não quero carregar o peso da mágoa, a angústia do tempo... todos esses pedacinhos de ressentimento. Não faz mal, vida... está tudo bem.

 

 

O dia nasceu enevoado, mas limpei as nuvens do céu com o pano do pó. Esfreguei os cantinhos azuis, até resplandecerem raios. Deixei que eles viessem secar-me a roupa estendida, com aroma a sabão de Marselha e verão.

 

Senti que o frio adensado ainda me prostrava os pensamentos. E acendi a lareira. Fiquei a observar a forma como os ramos secos reclamam, à medida que se transformam em cinza. E a forma leve, quase maternal, como o fogo os envolve, como se os embalasse, antes de os destruir.

 

Pensei em ti. Vida. E em todas as formas como me deste os ramos secos do peito. E em todas as formas como me apagaste, com as tuas chuvas e pós, o fogo da alma. E senti. O toque ressentido dos dedos – os teus dedos – a roçar as feridas, gélidas e purulentas, do que o tempo não sarou.

 

Por momentos, quis culpar-te, sabes?! Culpar-te pela mágoa que me provocaram os dias. Pela invisibilidade do eu. Pelo tremer no escutar do meu nome nos corredores. Pelo “hoje não, quem sabe um dia!”. Pelo “adeus” pincelado de sabores e brisas e promessas. Pelas pegadas que o mar apagava, junto à Foz. Pelas oportunidades, arrancadas das mãos secas, com os cadernos meio escritos, meio por escrever. Pela chamada das seis, eternamente calada no silêncio do meu telemóvel. Por momentos... quis culpar-te... mas não faz mal, vida!

 

Não quero carregar a culpa, seja ela tua ou minha. Não quero esse peso em mim, alheio ou não. O rancor é uma cicatriz eterna e funda, que enraíza e mói, até que tudo seja frio e seco, como os ramos que jamais serão cinza. Decidi limpar as nuvens por dentro com o pano do pó, deixar os raios resplandecer. E acalmar o meu próprio frio com o reacender de fogos antigos e abraços renovadamente eternos. Queimar a animosidade nas fogueiras de uma inquisição só minha, onde todas as bruxas são salvas e toda a tirania se reduz ao nada.

 

Cheira a sabão de Marselha e a um universo de possibilidades.

 

Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te.

 

Não faz mal, vida.

 

Sobrevivi.


 Marina Ferraz





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