As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares
nascem. E os glaciares derretem. E a preocupação humana é pouca. Mas, quando
existe, faz-se em lágrimas. Que choram. As lágrimas têm lágrimas vertidas no
seu próprio rosto de gota. Um choro que se faz pranto. Um pranto que se
evapora. Até adensar as nuvens. Essas de onde caem chuvas que aumentam o caudal
dos rios.
Bruscamente envolvida pela história dos ciclos, também eu
sou água que verte. Verto a minha própria história de gente. E, por ser gente
com história, acredito que exista valor na parte de mim que escorre. Ainda que
ela escorra em tinta.
Nunca imagino que vá estar, do outro lado do meu lago
sangrento de ideias, alguém que compreenda as bestas escondidas na
superficialidade do fundo de mim. Porque as feridas causadas pelos homens estão
à frente. E são tudo o que se vê quando não se rasga a camada da carne dos
textos.
As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares
nascem. E os glaciares derretem. Se eu me afogar, não faz mal. Fui só mais uma
pessoa que não andou na chuva, com o medo de ter cabelos humedecidos, roubando
horas de esforço num encaracolar indesejado. Fui só mais uma pessoa que não
mergulhou no rio, com medo do gelo cortante na pele. Fui só mais uma pessoa que
não salvou os ursos polares. Se eu me afogar, não faço falta ao mundo.
Mas. Mas. Eu também fui outra coisa. Também fui o riso em
noites de temporal. Danças de pés descalços em chafarizes de pedra, com as
gotas grossas caindo no meu corpo. Menina nadando debaixo de cascatas. Mulher
abençoando a pele com o toque das águas, num agradecimento às ondinas, às
sereias e às ninfas. Amante da terra. Apaixonada pelas paisagens de gelo
agreste que, de tão extensas, são fotografia do amor que se pôs e me lembram de
passados que aconteceram (quase) agora. Se eu me afogar. Se eu me afogar, quem
é que vai dizer às ondinas e às sereias e às ninfas que se escondam na chegada
dos homens que não entendem? E quem vai amar a terra? Fazer amor com as flores
primaveris? Entregar um fio de cabelo por cada pedra roubada que ornamenta um
altar vivo e cheio de plenitudes?
As chuvas caem e os rios aumentam o caudal. E os mares
nascem. E os glaciares derretem. Se eu me afogar, chuvas continuarão a cair e
rios continuarão a entrar pelas margens. E os oceanos continuarão a embater na
costa como se dissessem “acordem”. E os glaciares continuarão a derreter porque
as pessoas só sabem salvar-se a si mesmas. Mas, e se eu não me salvar? E se eu
derreter, como os glaciares? E se eu deixar que vertam todas as lágrimas que
acumulam dentro do meu peito?
Esse choro inundaria o mundo. Destruiria o mundo. Faria do
mundo uma gigante roda de águas salinas e emocionais. Mas não se preocupem.
Primeiro, encherei um copo. Depois, uma banheira. Depois, um quarto. Nesse
quarto vou afogar-me. Se eu me afogar, o mundo nunca vai saber que eu podia ter
inundado o universo de dor. Se eu me afogar, apenas eu terei partido e tu(do)
estará(s) bem. Se eu me afogar, não choro mais.