quarta-feira, 5 de junho de 2019

Silêncio num poço fundo




Quando o teu silêncio provocar o meu, será tarde. Porque o meu silêncio não será de dedos que não acariciam o teclado mas de dedos que se quedam, numa mão estendida ao lado do leito. Quando quiseres falar, talvez os meus lábios já sirvam apenas para lembrar os beijos dados, com uma tonalidade azulada e fria, tão igual à do meu coração que ainda bate.

O poço é fundo e está cheio de silêncios. Meus. Teus. Nossos. É um tempo de fundamentalismos toscos que justificam para dentro o que carece de explicação plausível. Por que razão me esqueceste? E como podem os quilómetros entre nós ser mais fundos que a profundidade deste poço fundo?

Quando o teu silêncio provocar o meu, será tarde. Os braços pendentes não terão abraço. E o peito parado não terá sopro. E os olhos vidrados não terão lágrimas. As únicas palavras serão de despedida e não serão ditas por mim. As únicas histórias serão contadas por paredes que, como eu, não falam. E, se algum movimento se revelar, será só espasmo. Uma libertação de gases e almas que hão-de perder-se com rapidez no ar, sem que ninguém repare.

O poço é fundo e está cheio de almas. A minha. A tua. A alma de um amor que morreu. Paz à sua alma. Digo. Mas ele vive em mim. E revolta-se. Atira-se. Mas atira-se levando-me com ele, nessa queda que começa no topo e me leva ao fundo desse poço fundo.

Quando o teu silêncio provocar o meu, será tarde. Eu terei estendido as pernas na direção do ocidente, para que me entrem primeiro os pés no pôr-do-sol, e a noite venha tranquila buscar o meu corpo com o seu manto de estrelas. As mãos que me abanam não vão acordar-me e nada que digas me fará sorrir.

O poço é fundo e está cheio de dias que anoitecem. E de noites que amanhecem outra vez. É um círculo e um ciclo, todo feito de quedas e queixumes, que se esbatem e se calam até que não exista voz nem sonho. Só um aroma a bafio, que se estende, inebria e se torna perfume na pele de quem espera. Não por ti. Pela morte. No fundo desse poço fundo.

Quando o teu silêncio provocar o meu, será tarde. Primeiro terá ido, do peito, o sopro. Depois, do coração a vontade. Despir-me-ei primeiro de vestes, depois de sonhos, algures de amor. E, por fim, de palavras. E os cabelos que agarraste entre os dedos. E o rosto onde depositaste carícias. E o corpo de mulher que amaste nas noites, nas tardes, nas manhãs. Todos eles inertes e sem vida, esperarão por algo que já não é o fim do teu silêncio.

O poço é fundo e está cheio de memórias. Minhas. Tuas. Nossas. Do tempo de um começo que prometia não ter fim. E, lá em baixo. Ali. A promessa caiu e quebrou. Como as pernas da minha alma. E a vontade do meu coração. Que agora talvez não mais saia do fundo desse poço fundo.

Quando o teu silêncio provocar o meu, será tarde. Tarde para me vires buscar ao fundo do poço. De lá, terei então voado. Deixando só o silêncio no fundo desse poço fundo.





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1 comentário:

  1. Nenhum poço é demasiado fundo se retirares o lodo que te tolda a visão e impede de caminhar como se de areias movediças se tratassem...Se retirares o lodo e limpares o poço com a tua alma pura, a água será cristalina e ultrapassará o próprio poço!!

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