terça-feira, 30 de agosto de 2022

História de Instagram

 


Alguém deixa um like na minha história de Instagram. E ele informa-me. A pessoa A, B ou C gosta da tua história. Curioso! Eu também gosto!

 

 

Nasci no Solstício de Verão, no ano da queda do Muro de Berlim, do primeiro casamento homossexual, na Dinamarca, e um mês antes de a Voyager 2 atingir Neptuno. Os Da Vinci tinham levado o “Conquistador” à Eurovisão e eu viria a tornar-me profundamente anticolonialista... mas essa música serviria o propósito quando, anos mais tarde, ensinei História à minha sobrinha mais velha, que a cantarolava enquanto respondia aos testes improvisados, com a borracha do lápis de carvão encostada ao lábios pensativos.

 

Quando eu nasci, estava cheia de pais e de avós e de irmãos. Um núcleo pequenino e enorme de gente que me levaria nos braços, me atiraria furtivamente contra sofás, me faria cabanas na praia e me ensinaria a ser gente. Com eles, é verdade, não conheci então nem desde então, o dicionário inteiro. Porque não é preciso saber muitas palavras para saber que a única que importa é “Amor”.

 

Não fui a pessoa com mais amigos na escola... e na maioria dos dias também não tentei sê-lo. Excluem-se as breves crises de pré-adolescente, onde tentei ser igual aos outros. Foram os segundos mais terríveis da minha vida, mas serviram um propósito maravilhoso. Esse, de aceitar que sou essencialmente eu e que é isso que levo em todos os meus passos imperfeitos pelo mundo.

 

Algures, aos 6 anos, a minha professora primária e a minha avó juntaram-se, de forma inconsciente, na criação do sonho que ainda hoje me dá alento para levantar todas as manhãs. Escrever. Então, desde essa idade que pouco fiz além de ler livros e encher cadernos, como se isso fosse a tábua de salvação num mundo condenado às pequenas-mentes e grandes-desastres. Pouco fiz além disso... mas fiz outras coisas... por exemplo, com os mesmos tenros anos, havia de me apaixonar loucamente pelo meu melhor amigo de infância... e haveria de gostar dele assim durante uma década inteira.

 

Talvez por ter aprendido o conceito do Amor com a minha família, amar para mim foi sempre assim. Algo que se prolonga no tempo e que permanece. Aprendi, com a vida, que amar não é um possessivo. Amar é querer que o outro seja feliz. É um: “estarei lá para ti, sempre que precisares”. Mesmo quando a vida nos leva, o que faz, com o tempo, até um novo amor, é o cumprir desta promessa muda. Amor que morre, acredito ainda hoje, não foi Amor. E eu nunca quis o sucedâneo...

 

Publiquei um livro. Arrependi-me de publicar esse livro. Vivi acompanhada e sozinha com o Amor. Adotei uma gata que brinca ao busca e entende quando estou triste. Estudei. Trabalhei em lojas de perfumes e como jornalista. Fui magoada. Magoei pessoas. Tive medo do palco. Perdi o medo do palco. Fiz, à beira do palco, alguns dos melhores amigos que hoje tenho. Apaixonei-me pelo palco. Apaixonei-me no palco...

 

Da ideia da morte, que também trago sempre, e com muitos dissabores pelo caminho, cheguei ao hoje com ombros mais largos do que os que me imaginam ao ver as fotografias. Cheguei com a capacidade incomum de aguentar as vergastadas do mundo e com o desejo de estar na linha da frente nas batalhas pelos direitos humanos e a equidade. Tomei a decisão de ser o melhor eu que posso ser. Tomei a decisão de tentar melhorar-me, não porque acho que sou uma solução, mas pelo menos para não ser mais um dos muitos problemas do mundo. Falho todos os dias. Acerto todos os dias. E vou, na minha condição de ser humano, entre os momentos mais felizes e os mais tristes, construindo esse eu que eu quero ser.

 

Hoje, a pele vazia que se preenche e a respiração que se aprende, de boca entreaberta e maxilar relaxado, ajuda-me a resolver a apneia e o sopro... dá-me vontade de estar viva. Mesmo amando a morte. E, por isso, cumpro a promessa que fiz a essa irmã-de-negro, ao mesmo tempo que lhe peço que espere mais um bocadinho... estou ocupada, no museu dos dias, a olhar para o sorriso mais bonito do mundo, digo-lhe. Ela aguarda, porque sabe que a escrevo. E a honro. E a publico.

 

Um dia, irei com ela. E olho a minha história. Raios! É uma boa história!

 

 

Alguém deixa um like na minha história de Instagram. E ele informa-me. A pessoa A, B ou C gosta da tua história. Curioso! Eu também gosto! Gosto muito...


   Marina Ferraz





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terça-feira, 23 de agosto de 2022

Palácio em segredo (mistérios e encantos)

 


 

O meu pai disse-me, uma vez: é possível ser feliz... até num Palácio. Menina. Dona de todas as vontades dos contos de fadas. Senhora de todos os mistérios e encantos das histórias. Olhei para ele. E não entendi.

 

 

 

Ouvi dizer. O mundo vai acabar. Que acabe! Mas que acabe como deve ser. Quero que a última partícula humana do meu corpo se desintegre de forma natural. Elementar. E, por isso, quero que optemos pela vida mais simples...

 

Agarras-me e eu agarro-te. Procuramos um abrigo qualquer. Sim, meu amor, pode ser uma casa grande, com piscina interior aquecida e campo de ténis. Mas não te preocupes com isso... Ficarei igualmente feliz com um T0 no interior ou uma barraca num bairro da lata. Com uma tenda. Com uma cabana com atilhos mal feitos de fiteira a segurar as canas ocas. E se voar não te importes. - Aposto que, atrás da porta, o vento larga a rudeza. Cansado. Tão cansado de ser vento... Atrás da porta, o vento irá sentar-se na poltrona, descansar olhando a janela e desejar ser sol ou chuva. Qualquer destino lhe parece melhor do que este, de ser vento... – Então, se voar, construímos outra. Ou não construímos nada e deitamo-nos na areia da praia, a olhar as estrelas, questionando, ainda que sem dizer: mas o que é isto?

 

Isto são as estradas para a Morte, irei constatar. E notarei em ti o desconforto dessa ideia. E aceitarei que a minha filosofia é minha. E amarei que tenhas a tua. Não acrescentarei o resto, para não te incomodar... Talvez pouse a mão na tua, por saber que esse ponto de calor me apaga o arrepio da Nortada. E talvez sinta um arrepio lento, de outro tipo, nascer mais a Sul.

 

A pouco e pouco, palavras desnecessárias serão um silêncio cómodo. E aprenderei que silêncio não é vácuo e que estar calada não é admitir tudo, do mesmo modo que querer-te não é negar-me.

 

Ouvi dizer que o mundo vai acabar. Encosto a cabeça no teu peito. E digo-lhe que acabe. Ali. Como deve ser. Com cada partícula do meu corpo a aprender a ser humana além da guerra. Estou cansada de lutar!

 

A lua está crescente. Em todas as suas fases, a lua está crescente. E o meu coração bate de um modo frenético. Não quero apostar, mas acho que o sol se apaga no mar e que és tu que iluminas a lua, quando sorris.

 

Por momentos, quero dizer-te que sou vento. Que atrás da porta largo a rudeza. Cansada, tão cansada, de lutar contra tudo. Qualquer destino me parece melhor. E, aos poucos, quero só estar. Nos teus braços. Sem preferência de onde, de como, de a fazer o quê. Sem querer saber o que almoçar ou jantar, que filme ver ou qual o destino da viagem que os pés fazem. Quero só estar.

 

Arrefece e não sinto frio. Deve ser isto o fim do mundo! Sorris e iluminas a lua. E eu quero não ser vento. Então, pergunto-te se queres apanhar canas e fazer uma cabana. Menina. Dona de todas as vontades dos contos de fadas. Senhora de todos os mistérios e encantos das histórias. Olho para ti. E entendo, finalmente.

 

Salto do amor e uma cabana para a frase do meu pai: é possível ser feliz... até num Palácio.

 

E, hoje, parece-me, de facto, difícil ser feliz num Palácio.

 

Palácios têm muralhas. E muros. E regras terminantes. E eu não soube o que era isso de ser feliz, até tudo isso me tombar... Penso que descobri que o segredo que está por detrás de todos os mistérios e encantos...

 

Então vem... Esquece o palácio!

 

Deixa a cabana, também!

 

Vamos só ficar aqui. Debaixo das estrelas. Em segredo. Só um bocadinho. Está bem? Só até o mundo acabar...


  Marina Ferraz





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terça-feira, 16 de agosto de 2022

Nos livros antigos

 



“Acreditas no Amor?” – uma pergunta inocente. Sorri.

 

 

Tenho culpado o século XXI. O digital. A dinâmica crescente da solidão em grupo. A fugacidade – tão diferente da efemeridade – quando se trata de sentir... Faz-me sentir desolada. Podia desistir. Mas agarro um livro.

 

 

Ela falava na terceira pessoa. Pedia a bênção antes de sair de casa. Cobria o decote e adotava uma postura de recato. Algures, os pais ensinaram-na a tratar da casa e dos lavores. Repreendiam-na se estava à janela ou se desafiava um dos irmãos. Um dia, diziam-lhe, depois de tirar o curso do magistério, teria talvez a sorte do namoro na presença dos pais. O toque era proibido, mas viria com as núpcias. E seria uma esposa capaz. Uma professora primária, título de honra para a raça… ou simplesmente dona de casa, se o marido assim preferisse.

 

Ela sonhava o amor. Sofria por amor. Um amor negado pelos tempos. A vida era algo insípida. Pegava nos livros antigos. Procurava, entre as folhas, sal e pimenta.

 

Eram livros de outros tempos. Falando das festas nas casas senhoriais. Neles, outras moças, com os vestidos da moda, debutavam de branco, dançando com os solteiros, valsas coreografadas com requinte. Uma orquestra tocava, exímia, e todos olhavam, com curiosidade, tentando destrinçar quem pediria a mão de quem naquela temporada de romance.

 

Essas meninas, as dos livros que ela lia, também sonhavam o amor. Também sofriam por amor. Um amor frequentemente negado pelo tempo ou estatuto social.

 

E também elas se refugiavam. Nos livros antigos. Procurando uma história de amor melhor. Possível.

 

Liam sobre o tempo medieval. Sobre as moças da corte e como os seus corações seguiam rumos pré-feitos, longe de perfeitos. Sobre como a paixão, por vezes, nascia fora da linha do destino, ditatorialmente escrita pelas famílias. Também essas sonhavam o amor. Também essas sofriam por amor. Também essas se refugiavam nos livros.

 

As moças dos livros medievais que as debutantes liam, assim como o livro sobre as debutantes que a minha avó lia, assim como o livro que eu leio sobre alguém que, não sendo a minha avó, me recorda dela, naqueles anos 50... há um sentimento comum para todas nós, sejamos reais ou produto da imaginação de alguém.

 

O sonho do amor. A mágoa.

 

São coisas do século XXI. Acharmos que é tudo coisa do século XXI. Culpamos o digital. A dinâmica crescente da solidão em grupo. A fugacidade... mas dos espartilhos aos chapéus, aos vestidos de chita e às Adidas Superstar; por entre os frescos das paredes, que deram lugar às peles de urso, aos quadros realistas e aos posters de cinema... a diferença mora no que é mundano. O sentimento não muda. O sentimento é o mesmo.

 

Trago em mim todas as moças de todas as histórias que li e as de todas as histórias que elas leram. Pergunto-me. Quem me lerá um dia, fazendo-me a mais recente personagem velha das estórias? Quem lerá, de coração moído, encontrando nos livros antigos o conforto que falte então?

 

Perdoo o século e suavizo a mágoa, lendo.

 

Já que a ferida é permanente e rasga a alma, espero que não deixem de imprimir livros novos. Que serão antigos... um dia. E curarão... se não a dor... pelo menos a solidão.

 

“Acreditas no Amor?” – uma pergunta inocente. Sorri. Sorri e quedei-me em questões.

 

              e se eu for a personagem de um livro qualquer?

              e se eu não existir?

              e, se não existo, porque sinto desta forma, tão completa e louca?

 

Nos livros antigos, concluo, está a resposta final. A base do Universo é o Amor.

Talvez, sadicamente, ele seja autor de todos os livros que lemos. E, se o é, o Amor é a coisa mais concreta de todas...

 

Se acredito no Amor?

Acredito!

Plenamente!

 

Mas começo a desconfiar que tudo o resto seja ficção.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 9 de agosto de 2022

Bolas!...

 



Bolas! É preciso deixar cair. E eu, que sou tão boa a deixar cair, não gosto nada. Mas é preciso. Porque é na queda que o voo é mais livre. E é na perda que o encontro é mais iminente. E é nesse largar que se encontram as coisas que merecem ser agarradas junto ao peito. E mesmo essas precisam de ter o espaço para a queda... não convém agarrar, aprisionando... é um agarrar q.b., como diz nas receitas que levam cominhos. Nada nem ninguém é nosso. O espaço da queda é essencial. Bolas! Crescer ensina lições mais difíceis de aceitar do que de entender!

 

 

Duas mãos esquerdas. Aparentemente furadas. É isso que sinto que tenho quando me atiram as bolas, para que as agarre. Duas mãos inúteis.

 

Claro que depressa me lembro que estas mãos embalaram os meus sobrinhos. E que escreveram poemas. E que se deram a amigos em momentos de crise. E que carregam sacos com o dobro do meu peso. E que subiram paredes de escalada (frequentemente sem corda). E que viraram páginas de livros. E que foram amantes sábias do meu próprio corpo. E donas de todos os carinhos que se querem distribuir pela pele alheia daqueles que entram nos confins da nossa alma.

 

Ali, no entanto, a tentar agarrar bolas que caíam sucessiva e insistentemente no chão, as minhas mãos pareciam inúteis. E isso fez-me rir.

 

Sou naturalmente desastrada, mas aprendo depressa. Aprendi a adaptar-me com os tropeços da vida, porque nunca pude fazer outra coisa. Uma bola no chão. Duas. Três. De repente apanhar uma e mesmo assim deixá-la cair. E fazê-la rolar pelo chão por acertar nela ao lançar a mão para a apanhar. E correr atrás dela como um ser-arraçado-de-poodle na praia. E, depois, de repente, ter a memória corporal a funcionar sozinha, entendendo o esquema incompreensível. Agarrar uma. Duas. Três. Tornar a queda-e-apanha de bolas mais ocasional e espaçada no tempo. E pensar no quanto caio, como as bolas, tantas vezes. No quanto me agarro, como às bolas, tantas vezes. E em como a memória corporal não chega ao coração... nunca.

 

O meu coração não cai sempre. Mas quando cai, cai. Não se limita a cair. Esbardalha-se. Cai com estilo. Esparramando-se totalmente nos afetos, completamente ciente dos riscos e, mesmo assim... bolas!

 

O riso pendura-se no canto do lábio. Corro atrás da serenidade e da paz de agarrar os pedaços de mim que têm pouca vontade de ser meus. A felicidade derruba-me. E eu levanto-me, com todas as frases racionais que conheço, apenas para as deixar cair e estilhaçar num olhar. Bolas, bolas, bolas...

 

A descoordenação das duas mãos esquerdas chega ao coração. Tento explicar-lhe que ele é inútil e que, ao contrário das mãos, não se adapta nem aprende. E ele sussurra, lá do seu retumbar louco: É preciso deixar cair. E o problema é esse. Explico-lhe. Eu sou boa a deixar cair...mas não gosto nada.

 

É preciso. Ele diz-me que é na queda que o voo é mais livre, o encontro mais iminente, que é nesse gesto que se encontram as coisas que merecem ser agarradas junto ao peito... Acrescenta, sábio, que o espaço da queda é essencial. E eu sinto vontade de o apertar, como se o estrangulasse. Bolas! Quando é que ele se tornou filósofo e quem é que o promoveu a adulto? Crescer ensina lições mais difíceis de aceitar do que de entender!

 

Dou por mim ali. A ouvir o coração e a tentar agarrar bolas. E as bolas caem no chão. E, quando dou por mim, estou a rir. Estamos a rir. E caem-me as incertezas, os medos, as dúvidas, tudo no chão, lado a lado com as bolas, à medida que as minhas mãos inúteis procuram outras formas de utilidade e me fazem sentir feliz.

 

Bolas! O corpo adapta-se ao gesto repetitivo. Mas a alma não... Vou sempre cair. Penso. E, de lá de dentro, ouço a sabedoria ecoar: Ainda bem... porque é preciso deixar cair!


 Marina Ferraz





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terça-feira, 2 de agosto de 2022

Cativo

 Fotografia de Rui Barroso Photography*
*esta imagem integra o projeto fotográfico "TCHOVA XITA DUMA".


Por favor, mucunha[1]. Levanta essa câmara. Os olhos que te vertem são lente isolada. E o mundo não sabe. Por favor, mucunha. Leva-nos contigo nessa viagem.

 

A tchova é insuficiente. Transporta produtos e gente. Transporta o empoado da História e da cultura. Mas falta-lhe o espaço para carregar também as estórias. As estórias da gente. As estórias contadas em silêncio, de pé na terra batida, a machambar[2], a vender mercancia e almas na beira da estrada, correndo as carreiros na busca de um futuro qualquer...

Temos força, mucunha. Não tomes o pedido por incapacidade ou desazo. Não tomes o pedido por fragilidade ou fraqueza. Vê. Estes braços carregam futuros, como as mulheres carregam filhos. Mas há o ir e o voltar e o ser da terra que nos cultiva gente.

Estendo-te a mão aberta. Sou eterno cativo desta terra seca. Livre dos tempos escravos. Preso à ancestralidade do que me dita o preço da lonjura. Peço-te atenção. Como quem pede chuva para regar o solo. E ofereço-te o sol, no riso de uma criança. A felicidade, compreende, é uma segunda pele sobre a pele, quando nela se traz apenas roupa rasgada e sonhos nado-mortos. E a criança ri. Por favor, mucunha. Levanta essa câmara. Eterniza esse riso. É nele que nos mora a esperança.

Existe muito nos sons das ruas. Um pôr-de-vida estendido da realidade nua até à celebração dos dias. Verás como somos a massa do concreto que edifica nações. Mas há tanto céu aberto. E tanta terra infértil. E tantos homens tristes. E tanto muana[3] que nunca conhecerá as possibilidades da vida simples.

Levamos o mundo. Nos braços. Sobre os ombros. Sobre as cabeças. Literalmente. O seu peso não é apenas físico, concreto... mas alegoria. Antes de sermos livres, fomos escravos. Antes de sermos gente, fomos colonos. E, agora, somos sobra do correr do tempo. O madoda[4] lembra. Lembrando, recorda-nos. Somos gente livre e capaz. Tchova Xita Duma.

Por favor, mucunha. Levanta essa câmara. Melhor é que se disparem câmaras do que armas. Melhor é que se levem memórias do que salvatérios. Leva-nos contigo, nessa viagem. Leva, nela, a imagem eternamente jovem das nossas crianças. Transporta os seus sorrisos. E toda a sua esperança. E toda a esperança que nos são...

Há muito amanhã no hoje que se cultiva, machambando. E todo o amanhã que carregas cabe na imagem que fica atrás do tempo cativo. Mas cativa-o. Para recordares as mães que carregam futuro às costas. E as mulheres que carregam futuro sobre as cabeças. E os homens que o levam dos campos às estradas, e das estradas à cidade, e da cidade ao sonho. E as crianças, que o abraçam num companheirismo leve e lento e cheio de compassos.

As estórias cativas. Leva-as nessa viagem. A tua máquina e a tua memória são a tchova que transporta a nossa alma. Os teus olhos, que te vertem, regam a esperança de que o mundo venha a saber... Khanimambu[5]. Agora, deixa que o mundo saiba – nessa tua lente-olhar - o que nenhuma imagem poderia dizer... mesmo gritando.


 Marina Ferraz



[1] Homem Branco

[2] Cultivar terreno (normalmente do setor familiar)

[3] Rapaz

[4] Ancião

[5] Obrigado





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