Eu adoro ouvir as pessoas que defendem o indefensável. Há algo de absolutamente tranquilizante no imenso vazio que preenche as suas mentes, onde o cérebro, se existiu, desertou. Resta um espaço oco e de ecos. Como uma sala abandonada de uma fábrica de fertilizantes orgânicos, com a luz entrando pela janela dos olhos e mostrando as manchas nas paredes, qual gravuras rupestres pintadas a dedo por bebés tristes a quem não mudaram a fralda.
O vazio entre as paredes soa pacífico. Isto, embora imagine que a proliferação bacteriana provocada pelos resíduos de adubo e lixo, bem como a rega frequente da Tirania justifique o cheiro nauseabundo das palavras que lhes saem pela boca, enquanto mastigam pastilhas elásticas com sabor a Os-Media-Disseram. Seja como for, adoro ouvir as barbaridades que dizem. Deixo notas, em forma de lembrete frequente, a mim mesma, dizendo que é importante querer o bem de toda a gente. E, por isso, mesmo detestando as mensagens, eu adoro ouvi-las na voz das pessoas ocas.
“Eu não acredito que há fome em Portugal...”, “eu acho que as imagens
da guerra são criadas por IA”, “eles dormem na rua porque querem”, “mesmo que
seja uma criança que tenha sido violada, ela deve levar a gravidez até ao fim”,
“não dou para a Cruz Vermelha, nem para o Banco Alimentar porque os armazéns
estão cheios de produtos estragados e os beneficiários deitam os produtos fora”,
“eutanásia é matar velhinhos”, “os estrangeiros e os pretos deviam ir para a
sua terra...”.
Adoro. Fico feliz, na verdade. Ainda bem! Que bom!
Porque quem o diz, não passa fome. Porque quem o diz, não está a fugir da guerra. Porque quem o diz não dorme em cima de cartão, nem nas tendas dos jardins. Porque quem o diz não foi violado na infância, nem engravidou do violador, nem tem dificuldades que o impeçam de criar um filho. Porque quem o diz nunca soube o que é precisar de pedir ajuda para ter o que comer, o que vestir. Porque quem o diz não está com uma doença terminal e a sofrer de forma indizível a cada respiração. Porque quem o diz não teve se emigrar para se proteger ou encontrar uma oportunidade de trabalho, ou de enfrentar a vida com dificuldades maiores só por questões relacionadas com a melanina.
Adoro que haja quem o diga. O indizível. Quem o defenda. O indefensável. Por entre o nauseabundo de palavras que não consigo subscrever, escolho o amor em vez do ódio. Ainda bem! Quem bom! E, quando o digo, ofendem-se.
O eco da bondade no vazio entre as paredes da sala abandonada da fábrica de fertilizantes orgânicos que têm dentro traz a memória do pensamento que deveria povoá-lo. De repente, por um momento, a tranquilidade é abalada. E nenhum tirano sabe fazer mais do que deixar que as ideias injustificadas, injustificáveis, sejam mais do que verborreia. Quem não tem argumentos, fala muito para não dizer nada. Discorrem longamente sobre as teorias, como quem tenta explicar as razões pelas quais a Terra é plana. Porque sabem que também eu não passo fome ou vivo na rua. Que também eu não enfrento a guerra, o racismo, a xenofobia, a doença indizível ou a gravidez indesejada. E que, mesmo assim, escolho estar do lado da História onde se colocam os que defendem a equidade, a justiça e a paz.
Dentro da minha própria cabeça, sinto o pensamento doer. É para isso, também, que servem os cérebros. Para nos dizer, um dia, que tiremos da boca a pastilha elástica com sabor a Os-Media-Disseram e a colemos debaixo da carteira. E é então que abrimos o livro. Um atrás do outro. E descobrimos que tudo é um ciclo. De onde vimos. Para onde vamos. É absolutamente assustador! E, de algum modo, encontro paz quando encontro esse vazio, todo cheio de uma placitude que eu não conheço... com paredes pintadas a gravuras rupestres – agrestes e rudimentares - pintadas a dedo por bebés tristes a quem não mudaram a fralda.
Eu adoro ouvir as pessoas que defendem o indefensável. Há algo de absolutamente tranquilizante no imenso vazio que preenche as suas mentes.
CONVITE
26JUN - 19H | Adega Belém | Adega LêBem
- Convidados, Poesia, Artes, Open Mic | Festa de Anos Marina Ferraz
Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com