terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Forca

 

Fotografia de Hélio Silver
Modelo: Ana Pessoa


Cordas. Momentos. Nós.

 

Nós. Cordas. Acordas e os momentos foram. Nós. Um tempo passado qualquer. Até ser só silêncio. Cordas. Filamentos unidimensionais vibrantes. Teoria. Unindo cada elemento da Natureza. Quero ser. Natureza. Com ela como ela é em nós. No nós. Nos nós. Digo que está na hora. Aprendo-os, um a um.

 

Formo o laço com a ponta que a precede e seguro-a. Puxo a parte comprida para o solo. Laçada. Da ponta mais longa num entrelaçar sem culpa. Uma laçada a mais. Espaço reduzindo. Laçada afastada. Robustez. Puxo, entre mão e mão, criando distância entre ponta e ponta. Nós. Nós como nós. À distância.

 

Leio sobre sucesso e silêncio. O papel da noite. O papel da hora na qual se esquece a vida. E sobre a estaca. Nova. Ou a ventoinha. Estável. Ou o vão de escada. Pedra-mármore.

 

Uma última dança de pés pendentes. Descalço os pés. A sola do pé é sonho desenhado no bailado do fim. E os momentos dançam. Nós firmes. Cordas robustas. Espaço e hora alinhados com o horizonte do (a)mar.

 

Orgulho-me da forca. Da suavidade do seu toque sobre a pele, ardendo de desejo. Pelo vibrar dos filamentos. Teoria. Unindo-me à Natureza. Até sermos nós.

 

É um salto e um deus velho, com prefixo e prótese. Um salto. Um sopro. O último. Seria o último. No nós. Nos nós. Nas cordas. Mas o tempo vem. A corda parte. A corda desata. A trave estala. O chão. O momento. O sôfrego engolir do ar. A falha. E o riso. Sempre o riso. Desse fantasma imprudente que me ensina sobre as laçadas e me observa as tentativas loucas do fim que não vem.

 

Incapaz de cumprir o meu propósito, pergunto-lhe o que me falta. Logo a mim, que aprendi sobre os nós e as horas e as estacas. Logo eu, que escolhi a corda certa e o momento exato. Sorri. Ri. Responde-me que não é sobre o que me falta.

 

Presa ao insucesso e ao fracasso - desconhecido dos outros, mas tão profundo em mim – sinto a espiral de desencanto ao lembrar a forca ineficaz, sempre falha no cumprir do meu ímpeto.

 

É antes – asseverou - o que tens de sobra. O que pões nessa forca sempre te fará viver mais um dia...

 

Perguntei. O quê?

 

Sorrindo, respondeu-me:

 

Uma cedilha.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Filosofia

 


“Nenhuma doença faz bem à saúde.”

- António Costa

 

 Filosofia. Pura. Da que faria corar Aristóteles e equivocaria Platão. Epicuro poderia discordar, já que defendia que “não se pode não ter medo quando se inspira o medo”. Mas não deixa de ser filosofia. A filosofia da constatação do óbvio. Algo similar à que pinta nas retretes das estações de serviço, de Norte a Sul. E que, de tão óbvia, parece certa, embora, na prática, dois dedos de testa cheguem para a questionar.

 

Eu poderia, no geral, concordar. Sobre a doença. Que não faz bem à saúde. Mas não é verdade. E não o é por várias razões.

 

Para começar, toda a imunidade que construímos ao longo da vida provém – literalmente - de uma reação física à doença. É ficando doentes que o corpo cria anticorpos. À medida que combate vírus e bactérias e partidos políticos. É assim que, ao longo do tempo, nos tornamos imunes às viroses, às infeções e à estupidez mórbida.

 

Na maior parte dos casos, a doença é o que cura a doença futura, com ou sem a ajuda de medicação extra – sim! Que ninguém nega o papel incrível da ciência no processo! – Mas, aqui, um aparte: se não fosse a doença e a curiosidade humana sobre a doença, nenhuma cura teria saído dos laboratórios. Diriam, com toda a sua sabedoria, os homens que os ocidentais tomam por incultos, que é preciso o veneno da cobra para se curar a mordida.

 

E se a doença não for curada, numa análise muito pessoal, acho também que faz bem à saúde. Nunca se ouviu falar de um morto que ficasse doente. Talvez todas as doenças mortais façam, na realidade, bem à saúde.

 

Sobre a classe política portuguesa e todas as suas demonstrações de eloquência, posso ainda asseverar que me fazem sentir que a doença teria, se em escala e proporção letais e ubiquamente orientadas para esta categoria social, o potencial de fazer muito bem à saúde do país, que continua num remoinho de decadência às mãos de pobres tontos que vivem de chavões, lugares comuns, usura e contas offshore.

 

Simone de Beauvoir, também ela filósofa, desta feita existencialista, disse um dia que “começamos a morrer assim que nascemos”. É nesse caminho que estamos. Eu estou. Estou a morrer. Cada dia a mais é-me um dia a menos. Estou a esgotar o tempo. A subtrair as respirações. A ter uma contagem cada vez menor de sístoles e diástoles.

 

A vida é curta. Não quero vivê-la com medo. E recuso a ideia da doença que faz mal à saúde. O que faz mal à saúde é isto. Saber que vou morrer. Que não tenho medo da morte. Mas que me assusta a ideia de morrer sem ter vivido. E que é isso que querem que faça. Para não adoecer...


 Marina Ferraz





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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

As putas

 

Fotografia de Hélio Silver


Eu sou uma puta. E, desculpem. Pensei o conceito. Conclui que sou puta com muito orgulho!

 


Dizemos. De pequeninas. Às nossas crianças. Às meninas, principalmente. O mundo está a mudar. Podes ser o que quiseres. Sê forte. Independente. Ama-te. Podes ser o que quiseres. As mulheres podem ter gostos, desejos, vontades. Já têm voz. Lutaram pela voz. Encontraram a voz. Mereceram a voz. Conquistaram-na. Sê. Sê essa mulher pela qual as mulheres do passado lutaram tanto…  Dizemos. De pequeninas. Porque queremos acreditar. Mas esquecemo-nos de as avisar. Nem todas as mulheres são assim. Só algumas. As que a sociedade não chama de mulher. Mas de puta.

 

O exercício de olhar para as mulheres fortes que nos rodeiam é imprescindível. Para aquelas que aprenderam a falar, sem medo das palavras. Para aquelas que, degrau a degrau, conquistaram aqueles parcos 13% de cargos de chefia que fizeram manchete de jornal. Para aquelas que vivem a sua sexualidade ao limite do que julgam certo, sem prestar conta do número de parceiros e sem negar que gostam do prazer pelo prazer. Para aquelas que falam sobre qualquer tema, em qualquer lugar, com desenvoltura. Para aquelas que vestem o que querem. Para aquelas que não prestam contas a ninguém e que se bastam. Um toque de orgulho bate no quadrante feminista, feminino, do peito. Bate, não bate?! E, depois, paramos. Perguntamos a toda e a cada uma delas: alguma vez te chamaram de “puta”?

 

É um teste que já fiz. Mas não se guiem por mim. Façam. Perguntem. Perguntem à vossa mãe, à vossa irmã, à vossa avó (que até vai à igreja todos os dias e se benze quando vê uma mini-saia). Perguntem à vossa colega, à vossa chefe, à vossa amiga, à vossa professora. Perguntem a alguém que admiram. Todas somos, fomos ou iremos ser putas na boca de alguém.

 

Ser puta, hoje em dia, já não é uma profissão. É, ao que parece, uma forma de respirar realizada por mulheres. Mais pelas mulheres que não cumprem os padrões de conformidade com a norma arcaica patriarcal e misógina. Mas, em última análise, por todas as mulheres.

 

Algumas são como eu. Naturalmente putas. Putas como as putas são quando isso significa ser-se mulher e não ter medo disso. Putas como quando o orifício que nos determina o sexo não é uma falta, mas antes um bónus no género. Putas como quando o corpo não nos enoja nem nos envergonha e não é a inércia, a apatia, a passividade e o emudecimento a talhar a pauta da nossa sexualidade e das nossas conversas sobre a sexualidade.

 

Tenho a certeza de que as profissionais do sexo poderão ofender-se. Por lhes roubarem um título inerente – que os anos vulgarizaram a ponto de perder a tonalidade ofensiva, quando se trata de trabalho efetivo – mas chamaram-me puta. Rotularam-me. E eu tenho de concordar que, nas noções do moralismo e do machismo, devo ser. Puta. Provavelmente tenho conversas de puta. Visto-me como uma puta. Penso como uma puta. E só não fodo como uma puta porque nunca ninguém me pagou!

 

Enquanto as palavras de suposta ofensa me entram pelos ouvidos, eu penso nas palavras que dizemos às nossas crianças e de como nos esquecemos de as alertar. Penso como se tornou simples colocar o rótulo – antes tão pernicioso – agarrado ao toque do feminino selvagem. Penso e concluo: quem as diz não podia estar mais certo! Eu sou puta. E, desculpem. Se ser puta é ser eu, sou puta com muito orgulho! Porque percebo que, hoje, qualquer mulher que reclame para si os mesmos direitos que um homem naturalmente tem o é, foi ou será.

 

Desculpem se, quando eu durmo com alguém, isso me faz galdéria. Um homem seria garanhão.

Desculpem se, quando eu falo de sexo, isso me faz rameira. Um homem seria espirituoso.

Desculpem se, quando eu sou eu, me torno a vergonha da família. Se eu fosse um homem, seria o seu orgulho.

 

Reservo-me o direito de ser a galdéria, a rameira, a vergonha da família. Reservo-me o direito de ser “a puta”. Reservo-me o direito ao meu próprio corpo e à minha própria voz. Reservo-me o direito de ser eu.

 

E sim, estou puta! Estou puta e sou puta. Aparentemente. Por isto: porque me reservo o direito de pôr dentro de mim quem e o que eu quiser, desde que haja consenso. E, desculpem, a misoginia, o preconceito e as mentes retrógradas não entram em mim, nem com promessas de céu, nem com noções de politicamente correto, nem com o pedido para que eu me reduza para encaixar no mundinho pequeno dos outros. Talvez seja, de facto, puta. Mas não me vendo por tão pouco.

 

Não aceito que prendam a minha feminilidade com cordas nem que me acorrentem às ideias de um conservadorismo fora de prazo de validade. Serei a puta, então. Mas não me vendo. Não me rendo. Porque sou eu com orgulho, como as putas devem ser, perante um mundo que, aparentemente, ainda é (um)a Rua (de) Direita.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Voodoo

 


A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

 

Usaram a lã de carneiro para encher o bonequinho. No seu esqueleto, a cruz católica, que ainda se honra sem regra nem diploma, formando os bracinhos abertos à espera que caiam soluções do céu. Colocaram o tecido de máscara, forrado de falta de empatia, para o fechar e aconchegar no seu requinte de perfeição. E uma primeira agulha para coser cuidadosamente as bainhas. E uma segunda para desenhar olhinhos cruzados nas órbitas. E uma terceira... para nos proteger. E dizem que tem a intenção do que nele se verte. Mas... quem verte o quê?

 

Das intenções, não sei. Mas deitaram sal nas portas dos restaurantes, dos ginásios e das discotecas. Não vá entrar o demónio, pelas mãos de quem não tem o seu próprio amuleto. E lá vemos os incautos favoritos, a agitar o seu bonequinho de voodoo à porta. Orgulhosamente. Parte da solução de todos os problemas menores. Os Protegidos. Os Protetores. Os Promotores da Ordem. Mil elogios em horário nobre. Seja!

 

Eu estou cansada de brincar com bonecas. Aliás, eu nunca fui muito fã de bonecos. Estava entretida. Mesmo na infância. Com os livros. A perceber como, em tempos, outros discursos (ou os mesmos), moviam outras massas (ou as mesmas), levando-os a outros separatismos (ou aos mesmos) e criando outras manchas negras no mundo (ou as mesmas). Diziam-me que os livros abriam os horizontes, mas frequentemente me ordenaram que os largasse e fosse brincar. Teriam medo de horizontes abertos?

 

Acho que tinham. Medo. Porque horizontes abertos criam ideias. Ideias criam pensamento crítico. Pensamento crítico cria desobediência. Desobediência cria mudança. E é o status quo lhes alimenta as contas e os egos.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

As contas esvaziam-se. Os espetáculos cancelam-se. As doenças matam por falta de acompanhamento. Cirurgias cruciais que nunca são feitas viram autópsias precoces.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

O problema é que dizem que o problema é outro. Que a solução é outra. Quando a solução não funciona, o problema é de quem não confia na solução. O problema é quem não confia na solução.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Mas não te apoquentes. Porque não és assim tão melhor. Chegas. Do nada. Uma espécie de fonema incerto. Lançado dos confins. Para defender o mesmo, de outra maneira. Olha: ainda sobrevives! Fico feliz. Sorrio. Sorrio de verdade. Até sentir. No peito. Lá. Onde dói mais. Mesmo em cima da ferida que não sara. O rasgar de novas emoções. Penso por segundos que a humidade é sangue. A humidade é lágrima, caindo. Sobre o decote aberto e a ferida de Pedra.

 

Vão espetando – todos - a agulha. Essa arma. Ela entra mais fundo, para libertar mais um bocadinho da saudade líquida que me fica de passados livres – hoje com mais mutações do que os vírus. São doses e doses dessa saudade. Para eu ir morrendo, mas a respirar...

 

A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

Ouço: Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Perdoem-me! Já tenho o peito dilacerado. Talvez tenham sido os livros. Talvez tenham sido as espadas. Talvez tenhas sido tu. Talvez seja tudo junto. Nunca tive uma cruz no esqueleto, nem jeito para a costura e os lavores. Dispenso as espadas modernas. Fico-me pela palavra. Chamem-me louca! É a única arma que sei desembainhar e brandir. Chamem-me pária! Pena é que tantos, tenham escolhido (e escolham ainda) os bonecos em vez dos livros...

 

Trago o peito rasgado. Página do livro que aparentemente ninguém leu. Mas, por favor, deixem-me ir com ele assim, aberto. Não preciso de agulha que mo remende.

 

 

A agulha é a espada dos novos ditadores.

 

E, se o boneco de voodoo somos nós... eu não brinco mais!


 Marina Ferraz





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