quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Informação

 

Imagem retirada da web | Pixabay

Informamos os nossos clientes e amigos de que os textos fáceis estão esgotados e que na prateleira da paciência sobram apenas uma ou duas palavras amenas a granel. Para artigos alegres e jubilosos, recomendamos que procurem junto dos nossos concorrentes ou que voltem depois do transplante de personalidade.

Cordialmente,

A Gerência.

 

É! Talvez desconfiassem. Mas eu falo de mim na terceira pessoa do plural. Eu sou eu e todos os eus que me povoam. Incluindo aquele incómodo desconforto que se alojou no quinto andar do meu interior, mesmo na linha da olheira, e que não para de enviar cartas formais a queixar-se das infiltrações e do cansaço. Já o levei ao psicólogo. Psicólogos. Unanimemente disseram-me que tirasse férias, porque não entendem que não é o trabalho que me cansa... mas a vida.

 

É um lidar com contas que acumulam, um pagar de impostos injustos, que só servem os interesses de quem já tem tudo e quer mais, uma insegurança de tempo inteiro que permeia os textos que escrevo para os clientes... medo nas entrelinhas de cada um deles... É um lidar com pessoas que querem de mim o que não tenho para dar. Um lidar com gente que dá mais do que eu posso aceitar. E um ir... frequentemente vendo as nuances da morte nas histórias dos planos que fiz, como se eles não fossem mais do que uma ilusão.

 

Olho para as paredes da casa. Chegou o outono. As folhas lá fora mudam de tonalidade e as paredes também. Com a chuva. Não é só o inquilino da minha linha das olheiras que tem problemas com a humidade...

 

Saio para pedir um pouco de amor e recebo dúvida. Dou por mim a não sentir muita vontade de escrever. E alguém me pede um texto leve e feliz. Tento ir ali ao lado livrar-me da tonelada e meia que trago em cima dos ombros, para as mãos serem leves. Mas desisto! Ali ao lado há gente que não tem humidade em casa, porque não tem casa. Chegou o outono e as pessoas caem como as folhas. Dói.

 

As notícias são da guerra, da fome, do sofrimento. A televisão é a Caixa de Pandora que todos abrimos. E, nas escolas, tentam ensinar às crianças as orações. Subordinadas e coordenadas com todos os interesses políticos e económicos do dia. Santa Economia, Mãe das Decisões Políticas, ajuda-me nesta hora, para que consiga trabalhar de sol a sol na tua guarida, para pagar as tuas exigências e morrer sem dívidas. Amén. As crianças trilham o caminho das pedras para um futuro sem futuro. Aprendendo obras fundamentais cujos resumos decoram e as mensagens descuram... como é desejável que se faça, que as interpretações são frequentemente inimigas do status quo.

 

Atraso a publicação deste texto porque o inquilino do terceiro andar vive a queixar-se de dor, entre sístole e diástole. Os médicos dizem que é crónico. Ou diriam se o SNS ainda existisse de facto. Como não existe, supõe-se que o dissessem... num mundo onde os nossos impostos servissem efetivamente para alguma coisa socialmente proveitosa. Acalmo-o com um poema ou dois, daqueles que vêm de brinde com os bollycaos. Mas, no fim, ele deixa o bolo e come só o caos... e a dor permanece.

 

Todos nós. Eu e estes inquilinos de mim. Todos estamos a fazer liquidação total da secção das superficialidades. Foi assim que os textos fáceis esgotaram e que esgotarão também as palavras amenas. Estamos a pensar abrir um negócio mais adequado aos tempos. Mais adequado ao amargo do caos que comemos e do mundo que nos abriga, por agora numa casa com humidade... mas numa casa... esse privilégio dado a cada vez menos pessoas.

 

Então, este é o meu pedido e recomendação, principalmente para quem me diz que devia escrever coisas mais otimistas, mas também para todos os que o pensam e não o dizem: Para artigos alegres e jubilosos, procurem junto dos nossos concorrentes ou voltem depois do transplante de personalidade.

 

Desde já agradeço a compreensão, embora ela também esteja em falta nas prateleiras do mundo de hoje.


Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Incêndio

 

Imagem gerada por I.A.

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Porque escrevo. Porque me habituei à rotina de ter textos à terça-feira. Planeava publicá-lo às sete. Então escrevi-o na mente, aguardando a hora de me render às teclas do computador, para o debitar, libertando-o das amarras do pensamento e desfiando as ideias pelas linhas direitinhas do editor de texto, em Times New Roman, 11.

 

Sim. O meu texto estava escrito na minha mente. Mas tinha-o pousado sobre as ervas frescas da esperança, verdes. E as ervas verdes ficavam sobre solo rico de minério.

 

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Mas o meu texto não interessa a quem quer escavar o solo para colher opulência e abrir campas.

 

Hoje não tenho texto. Atearam o fogo. Ardeu.

 

Sobrou o fumo. A cinza. O cheiro nauseabundo da morte. Um pensamento disperso. Um cansaço imenso. Olhos alagados. E um pouco de raiva quente. Para um próximo texto.


Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Conjuntura planetária

 

Fotografia de pt_astrophoto


Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados!

  

Não percebo muito de astrologia. Mas isto eu sei! Na astrologia existe um fenómeno. Planetas retrógrados. Fala-se deles quando, olhando o céu, observamos que esses planetas fazem um movimento contrário ao expectável, andando para trás. Calma! Eles não andam para trás. Mas a Terra move-se e faz com que pareça assim. E, de repente, a conjuntura mais propícia à Lei de Murphy parece abater-se sobre os humanos. Apesar de o planeta mais próximo estar a cerca de 40 milhões de quilómetros de distância.

 

Bem mais perto, andar para trás não é ilusão de ótica, mas ciclo. Caixinhas e caixinhas e mais caixinhas, onde se enfiam seres humanos com base no género, na sexualidade, na cor da pele e na conta bancária. Divisões que separam norte e sul. Que decidem quem vive ou morre. Que colocam a barra do sofrimento em patamares incomparáveis, enquanto as florestas são regadas com água do mar e chuva ácida. Para que um dia o ar escasseie e sobreviva só quem o engarrafou... Tento explicar que o que me importa são as pessoas. O resto são saliências, orifícios, melanina e casualidade.

 

Querem saber em que caixa estou. E eu quero estar fora da caixa. Sem saberem que uniforme devem vestir-me, dão-me uma t-shirt larga com um alvo no bolso frontal, do lado esquerdo. E mandam que volte mais tarde ao guichê, na esperança de que alguém acerte na mouche, e eu não volte.

 

Vou andando. Guerra aqui e ali. Violência ali e aqui. Dor a crescer a céu aberto e esperança a mirrar nas estufas que ninguém rega. Gente de t-shirt vermelha, com uma pequena cratera no bolso. Furo de bala. De bazuca. De tecnologia triste e podre. Lançada por um drone. Escavada por uma draga que sugou até a vida da própria luz que criou a vida, quando os Deuses não tinham sido inventados.

 

Atiro uma bala ao charco. O metal afunda. E eu afundo a cabeça nos joelhos. Espero o meu tempo. Regresso. Ainda não pertenço a nenhuma das caixas. Perguntam o que sou e sou só pessoa. Não têm esse espaço entre os espaços destacados. Querem saber género, sexualidade, cor da pele, estrato social. Saliências, orifícios, melanina e casualidade. Mas eu não me interesso por isso. Não penso nisso. Ignoro-os. É difícil ouvi-los e aos seus pedidos por entre os gritos da tirania, da guerra, da vida no segundo antes de ser morte, quando vai de ruído escabroso a silêncio áspero.

 

Dizem-me que devo estar sob a influência de algum planeta retrógrado. Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados! E perguntam-me se sei qual é... Não percebo muito de astrologia. Mas se um planeta está a fazer-me isto, tenho quase a certeza que é a Terra.


Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A criança torturada

 

Imagem retirada da web | Pixabay

O homem agarrou a criança. O homem obrigou-a a assistir à morte da mãe e do pai, numa tortura muito lenta, que os fez arrancar os olhos e caminhar cegos até ao abismo. O homem disse à criança que precisava de aprender todas as razões pelas quais ele era o herói, o mestre, o único salvador na pátria. O homem determinou que a criança teria de respirar fumo de escape, de segunda a sexta. Obrigou a criança a trabalhar em salas húmidas, com iluminação imprópria e aguentando o calor insuportável dos dias quentes e o frio enregelante dos dias gelados. Castigou a criança. Bateu à criança. Obrigou-a a pagar pelas distrações até que não sobrasse moeda para o lanche. Obrigou-a a deixar de ser criança. Fechou-a na jaula das obrigações com outras crianças iguais a ela: que já não o eram! Mandou que procriassem de noite e se fizessem úteis durante o dia. Deixou que se vissem os ossos miúdos por debaixo da pele, fruto de fome, fadiga e desespero. Transformou as crianças em pais. Torturados lentamente. Até arrancarem os olhos e caminharem cegos para o abismo. Frente às crianças que assistiam, obrigadas...

 

Só que o homem era o Estado.

 

E a criança éramos nós.

 

Talvez com os olhos nas mãos, a caminhar para o abismo seja tarde.

 

Talvez fosse diferente se, enquanto estão no rosto, os mantivéssemos abertos.


Marina Ferraz




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