Informamos os nossos clientes e amigos de que os textos fáceis estão
esgotados e que na prateleira da paciência sobram apenas uma ou duas palavras
amenas a granel. Para artigos alegres e jubilosos, recomendamos que procurem
junto dos nossos concorrentes ou que voltem depois do transplante de
personalidade.
Cordialmente,
A Gerência.
É! Talvez desconfiassem. Mas eu falo de mim na terceira pessoa do plural. Eu sou eu e todos os eus que me povoam. Incluindo aquele incómodo desconforto que se alojou no quinto andar do meu interior, mesmo na linha da olheira, e que não para de enviar cartas formais a queixar-se das infiltrações e do cansaço. Já o levei ao psicólogo. Psicólogos. Unanimemente disseram-me que tirasse férias, porque não entendem que não é o trabalho que me cansa... mas a vida.
É um lidar com contas que acumulam, um pagar de impostos injustos, que só servem os interesses de quem já tem tudo e quer mais, uma insegurança de tempo inteiro que permeia os textos que escrevo para os clientes... medo nas entrelinhas de cada um deles... É um lidar com pessoas que querem de mim o que não tenho para dar. Um lidar com gente que dá mais do que eu posso aceitar. E um ir... frequentemente vendo as nuances da morte nas histórias dos planos que fiz, como se eles não fossem mais do que uma ilusão.
Olho para as paredes da casa. Chegou o outono. As folhas lá fora mudam de tonalidade e as paredes também. Com a chuva. Não é só o inquilino da minha linha das olheiras que tem problemas com a humidade...
Saio para pedir um pouco de amor e recebo dúvida. Dou por mim a não sentir muita vontade de escrever. E alguém me pede um texto leve e feliz. Tento ir ali ao lado livrar-me da tonelada e meia que trago em cima dos ombros, para as mãos serem leves. Mas desisto! Ali ao lado há gente que não tem humidade em casa, porque não tem casa. Chegou o outono e as pessoas caem como as folhas. Dói.
As notícias são da guerra, da fome, do sofrimento. A televisão é a Caixa de Pandora que todos abrimos. E, nas escolas, tentam ensinar às crianças as orações. Subordinadas e coordenadas com todos os interesses políticos e económicos do dia. Santa Economia, Mãe das Decisões Políticas, ajuda-me nesta hora, para que consiga trabalhar de sol a sol na tua guarida, para pagar as tuas exigências e morrer sem dívidas. Amén. As crianças trilham o caminho das pedras para um futuro sem futuro. Aprendendo obras fundamentais cujos resumos decoram e as mensagens descuram... como é desejável que se faça, que as interpretações são frequentemente inimigas do status quo.
Atraso a publicação deste texto porque o inquilino do terceiro andar vive a queixar-se de dor, entre sístole e diástole. Os médicos dizem que é crónico. Ou diriam se o SNS ainda existisse de facto. Como não existe, supõe-se que o dissessem... num mundo onde os nossos impostos servissem efetivamente para alguma coisa socialmente proveitosa. Acalmo-o com um poema ou dois, daqueles que vêm de brinde com os bollycaos. Mas, no fim, ele deixa o bolo e come só o caos... e a dor permanece.
Todos nós. Eu e estes inquilinos de mim. Todos estamos a fazer liquidação total da secção das superficialidades. Foi assim que os textos fáceis esgotaram e que esgotarão também as palavras amenas. Estamos a pensar abrir um negócio mais adequado aos tempos. Mais adequado ao amargo do caos que comemos e do mundo que nos abriga, por agora numa casa com humidade... mas numa casa... esse privilégio dado a cada vez menos pessoas.
Então, este é o meu pedido e recomendação, principalmente para quem me diz que devia escrever coisas mais otimistas, mas também para todos os que o pensam e não o dizem: Para artigos alegres e jubilosos, procurem junto dos nossos concorrentes ou voltem depois do transplante de personalidade.
Desde já agradeço a compreensão, embora ela também esteja em falta nas prateleiras do mundo de hoje.
Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com