terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Aquela pessoa


Estamos todos à procura daquela pessoa. Aquela pessoa que está e que, em não estando, permanece, como se a presença não fosse o destino mas a estrada. Estamos todos à procura daquela pessoa. Aquela pessoa que nos deseja secretamente o melhor e que discute com os ventos desfavoráveis, como se um grito, uma voz, uma certeza, pudesse mudar o curso das Estações.
Estamos todos à procura daquela pessoa. Aquela pessoa que nos faz rir, que nos deixa chorar, que sabe ver a mágoa atrás de um sorriso e a irritação atrás do rosto inexpressivo. Estamos todos à procura daquela pessoa. Aquela pessoa que não se importa de ouvir a mesma história vez após vez, que nos abana quando precisamos de ser chamados à razão e julgamos precisar de um afago. Aquela pessoa que sabe que a nossa alma não é sempre pura e que a nossa perfeição rachou, caiu e se perdeu nas valetas da vida.
Estamos todos à procura daquela pessoa. E estamos todos à procura na cegueira de não ver que ela já existe. Existe nas amizades de facto. Aquelas que surgem, talvez do nada, e constroem as barreiras de uma muralha que não havia em nós. Não há amor maior do que a amizade. Não há nada mais forte do que a amizade que resiste ao fim de um amor.
E "aquela pessoa" pode nem ser uma pessoa só. "Aquela pessoa" é quem sabe, quem sente, quem segue e quem pode dizer com toda a certeza que, independentemente de tudo, está ali.
Aquela pessoa é muitas vezes plural. São os anjos, são os irmãos, são os tigres e os ventos. Aquela pessoa é a amizade personificada pelos actos e as palavras e os sentidos. Aquela pessoa é a amizade em forma de mensagens, ralhetes ou conselhos. Aquela pessoa é a amizade construída na certeza de que, mesmo se tudo piorar amanhã, ainda não estaremos sós.Estamos todos à procura daquela pessoa. Aquela pessoa que entende que o amor é muito maior do que um romance a dois. Aquela pessoa que sabe que o coração humano nasceu para ser repartido e se oferecer, migalha a migalha, aos que farão para sempre parte de nós. Aquela pessoa que nos olha e sabe que estará sempre lá para nós porque, de alguma maneira, por algum motivo, para ela também somos "aquela pessoa".

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Despida



Despi o meu quarto das recordações de ti e as minhas mãos da esperança infantil de que podiam voltar a ser agarradas pelas tuas. Despi as paredes de fotografias e as caixas de cartas de amor. Despi o corpo de desejos e selei os lábios para os despir de palavras.
Despi o chão de caminhos e os pés de regressos. Despi a alma de esperança e a vida de sentidos.
Despi a fé de esperança, despi o ar de sentido e até o céu de estrelas para não poder pedir desejos.
Despi-me de bondade e de pureza. Procurei a raiva. Despi a angústia de vergonha e o ódio de medos.
Fiz tudo isto na esperança de poder avançar, de poder roubar aos olhos o desejo de olhar para trás para te procurarem. Mas ninguém pode despir o coração de amor. Ninguém pode arrancá-lo do peito  e arrancar-lhe o único motivo para bater.
Então, para não arrancar a vida ao meu corpo, aceitei amar-te na distância, na saudade e o no silêncio. Eis a vida que levo. Uma vida deserta, despida de quase tudo, onde os olhares estão fixos no passado e a dor se mantém presente. Uma vida nua e fria, despida de esperanças para o futuro.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ansiedade


É um tremor no corpo. Que se estende, fluído e demorado, em cada poro. Faz bater mais forte o coração mas não o move. E não o condena. Não é como o amor. É um deserto de coisas por sentir que se estende dentro da ilusão da plenitude. A vontade permanente do que vem a seguir à última página de nós.

Querer saber. É um querer saber que não quer saber de nada, nem mesmo de si. E que provém da mais breve migalha de história. Ninguém sabe a história. E ninguém sabe porque é que existe esta vontade de saber o que fica nas entrelinhas entre o tudo-quantificável e o nada-inimaginável que nos tende a vida.

É uma ilusão. Mas tudo é uma ilusão, contando que se tenha no olhar ainda um pouco da criança que se foi. E essa ilusão vem, tardia e descontente, iluminar as trevas do pensamento que cresceu e se fez homem.

Não é infelicidade, mas não é feliz. Não é desespero, mas não é calmo. É um tremor no corpo que continua. Não passa. Não esmorece. E magoa o espírito que trazemos dentro. Magoa o coração. Esse que nos põe nas mãos, na boca, na barriga. Há batimentos compassados em todo o lado. Como pequenos relógios a tiquetaquear pelas veias, na esperança (certamente infundada) de haver uma hipótese em mil e de a termos agarrado.

É inesperado. E não tem nem um laivo se subtileza. Ataca sob o sol. Debaixo da luz. À frente de quem quer que seja. Quer ser tudo o que não é. E, talvez por isso, vive numa constante vontade de deixar o presente e saltar para o futuro. Mas o futuro faz-se sempre presente. E é sempre de olhos no horizonte, nessa busca pelo impossível, que ela se torna amarga.

É um tremor no corpo. Trespassa a pele. Vem sem avisar. E acelera o mono existencial que trazemos no peito, como quem traz promessas inaudíveis. Não. Não é o amor. Não poderia, jamais, ser o amor, embora venha muitas vezes à sua conta, preencher os espaços em branco das demoras. Tem muitos nomes, a idade do pensamento e redime-se todos os dias no choro da imortalidade.

Não importa por que motivo vem. Acaba sempre por vir cumprimentar as gentes. Não se importa com a idade, o género, a posição social. É cega e dá-se a qualquer um, nas avenidas onde se vendem afectos ao preço do ar. E enquanto agita as almas descontentes, numa busca feita de devaneios, caminha, passo a passo, rumo ao abismo.

Hoje, escolheu-me a mim. Dou-lhe a mão e vou com ela. Vou. Vou sem saber se avanço na direcção do sonho ou do abismo. Vou. Vou e descubro.

Caímos juntas. Eu e a ansiedade. Havemos de cair tantas vezes que, um dia, talvez ela se erga sozinha, deixando-me no chão das desilusões. Mas não hoje. Hoje, levanto-me com ela. Tenho mais uma cicatriz. Mas está tudo bem. Sorrimos uma à outra. Ambas sabemos: cair não é mais do que voar por uns segundos.


Marina Ferraz

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Segundo acto


A luz do palco apagou-se. Com ela, deixo apagar o sorriso. Faço uma vénia à solidão. Começa o segundo acto desta peça chamada vida. Aquele que decorre sobre as tábuas esfarpadas do chão da realidade, onde caminho, de pés descalços, sem outro texto que não o do pensamento. A luz do palco apagou-se. E o sorriso, tal como a roupa, tal como os ornamentos, não era meu para trazer para casa. Deixei-o lá, pendurado no cabide, juntamente com a ilusão.
A luz do palco apagou-se e estou cansado.
Ainda ouço os aplausos. Os risos. Gargalhadas. E a sombra do desassossego, esquecida no camarote, juntamente com as mágoas e as desilusões. Naquela casa de três paredes, conto muitas vezes a história de quem nunca fui. E sou-o. Sou-o nos olhos das multidões contentes que riem e aplaudem e incentivam.
Sou uma marioneta. Os meus fios puxados pela ilusão sadia de que, um dia, as luzes do palco vão apagar-se e o sorriso não vai. Mas, todos os dias, quando se apagam os holofotes, deixo no palco a pele e o sorriso e o calor da vida. E preparo a alma para encarar o frio das ruas onde a morte espreita e o sangue gela.
A luz do palco apagou-se. Com ela, deixo apagar o sorriso. Fecho-me em mim. Custa ser eu. Não sei ser outra coisa. E arrasto os pés, pelos caminhos cinzentos da rua suja, cumprimentando o vento e as estrelas. Tenho lágrimas dentro da alma. E quero deixá-las verter. Mas fica-me o desconforto do choro. Fica-me o desconforto de não ter, sequer, por ou para quem chorar.
A luz do palco apagou-se. Apago o sorriso. Fecho-me em mim. E estou cansado. Avançando pela rua onde não há nada, compreendo que, entre o palco dos sorrisos e o choro calado da alma, não há mais do que ruas desertas onde fico sem mim, esperando que amanheça.
Vou só deitar-me um pouco. Estou tão cansado. Vou só deitar-me por uns minutos. Ouvir o silêncio. O grito insensato do silêncio. Vou só deitar-me um pouco. Aqui mesmo, no centro da rua. No centro da linha. No centro da eternidade vazia de mim.
E sinto. O tremor. A promessa. A promessa insensata de que, no final de todas as coisas, virá a recompensa. Talvez a recompensa seja o sorriso. Talvez seja o choro. Não importa. Não quero saber. Quero só deitar-me um pouco. Estou tão cansado. Tão cansado da vida. Tão cansado de mim.
O tremor. A promessa. O som. Acabou o segundo acto desta peça chamada vida. A luz do palco apagou-se.  Deixo acender o sorriso. Tenho lágrimas nos olhos. E nunca mais estarei triste.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet