terça-feira, 30 de novembro de 2021

Seguro

 



Não é seguro. E ainda bem que não é. Porque, se fosse, o caminho ia ser vazio. O tempo ia ser inútil. A vida não seria mais do que um caminho desinteressante para a morte.

 

 

2021. Dezembro.

 

Mas poderia ser 2020.

 

Por este caminho, poderia ser 2050.

 

 

Segurança é a apologia do momento e, como tal, “seguro” virou a nova palavra de ordem. É uma moda como outra qualquer. E certamente um negócio muito eficaz e que está a encher vários bolsos por aí, enquanto esvazia outros. Os 1% do costume vendem a ideia de segurança e 98% compram-na sem hesitar. O mundo não é seguro, mas está cheio de idiotas. Acontece.

 

Agora, as suas compras são seguras. A cultura é segura. Ir votar é seguro. O rodizio de piza de uma cadeia conceituada é seguro. Ir ao hospital é seguro. Ir ao cabeleireiro é seguro. Fazer...

 

{Pausa para higienizar o texto, borrifando um bocadinho de revirar de olhos antisséptico sobre o ecrã e desinfetando o teclado com um suspiro.}

 

As promessas de que tudo o que serve interesses comerciais e estatais é seguro são vazias... e as tentativas de comprovar que tudo o que não se rotula desta forma é indesejável é, provavelmente, a menos segura de todas as coisas pouco seguras.

 

Eu aprendi isto algures entre os 2 e os 4 anos de idade, quando queria voar e não me deixavam, caí do baloiço, apanhei um choque na ficha elétrica, o meu irmão me partiu a cabeça na praia, o mar me ia matando e à minha irmã ou fui mordida por um simpático caniche... Aprendi com facilidade, sem precisar que mo dissessem. E achei que era evidente. Viver não é seguro.

 

Em Junho, a Dona Maria, de 75 anos, estava no quintal de sua casa quando um carro se despistou e invadiu o seu jardim. Morreu na segurança da sua casa.

 

Um jovem de 26 anos estava pacatamente na sua vida quando o prédio desabou. Morreu na segurança da sua casa.

 

Nove pessoas estavam num autocarro seguro, que certamente cumpriria todas as normas de circulação estipuladas pelas leis locais. Um prédio desabou sobre ele. Morreram na segurança do trajeto quotidiano.

  

Setembro 2021: um raio caiu junto a um abrigo de animais, deixando duas pessoas feridas. Uma terceira perdeu a vida.

 

O mundo não é seguro. Viver não é seguro. Não sabemos se o próximo passo que vamos dar não é, em efetivo, o último. E se for? Será que interessa? A mim, parece-me pertinente dar esse passo. Porque é isso que nos move, que nos leva a outras paragens, que nos alarga os horizontes, que nos constrói como pessoas e que nos permite viver.

 

Toda a gente morre... não tenho a certeza se toda a gente vive. Mas sei isto: toda a gente morre. E custa-me ver mortos a deambular nas ruas, com tanto medo da morte que mais parecem ter medo da vida. A aceitarem tudo o que lhes estendem como pilulas de salvação, engolindo medicação e patranhas com a mesma facilidade, porque empurrado com água tudo desce.

 

A mim mata-me. Esta busca pela segurança. Porque eu quero viver a vida. Até ao tutano dos ossos da alma da vida. E alertam-me. Não é seguro.

 

Pois não. Não é seguro. É um risco. E gostava de ser livre de poder tomá-lo, antes que o prédio desabe, o carro me atropele no quintal ou o raio me caia em cima da cabeça.

 

Quero a rua e a adrenalina, a farra e o trabalho, os eventos e os treinos e os saltos de paraquedas. E as montanhas-russas e as caminhadas entre as árvores, fora do trilho. Quero amar. Quero subir aos palcos e gritar até ficar afónica e dançar à chuva.

 

Porque não é seguro. E ainda bem que não é. Se fosse, o caminho ia ser vazio. O tempo ia ser inútil. A vida não seria mais do que um caminho desinteressante para a morte. A vida não seria mais do que outro tipo de morte.

 

 

Nota: Ler este texto não é seguro! Corre-se o risco de se perceber que só nos deram uma vida.

 

 Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sem pretéritos



eu acreditei que o amor não precisava de seguir as regras da gramática mas eventualmente pus-lhe um ponto e vírgula

 


Cheguei a ti com a palavra Amor nos lábios. E disse-te. Que era uma promessa. Que nunca a tinha dado a ninguém. Que era tua. E, nas mãos vazias, trazia só o conceito.


Esse. De um Amor que estava disposta a dar, sem retribuição.

 

Enchendo-me as mãos com as tuas e o peito de expetativas, disseste-me que eu estava errada. Que só se pode amar plenamente em duo. Que o querias fazer. Comigo. O dueto. Nos teus braços fazia sentido. Por isso, acreditei...

 

 

Só que o Amor lida mal com grilhetas. Talvez porque seja um sinónimo muito aproximado de liberdade. Ou talvez porque está cansado de ser confundido, nas ruas, com a paixão e a vontade do corpo e o medo da solidão.

 

E o Amor disse:

 

O voo é livre,

mas asas não são liberdade

 

Uma borboleta

pode ir onde quiser

no seu sopro de asa dupla...

 

Duas borboletas também...

Mas, se presas uma à outra,

têm quatro asas...

 

e a morte à espera

no chão...

 

 

Do nosso amor em dueto, sobrou o silêncio da calçada. E eu de rojo. Foste e o Amor ficou. Preso à pele suja. Acontece!

 

 

À medida que ias, deixando-me nas mãos vazias o espaço dos teus dedos - penhascos negros e com aves de ausência - percebi que sobrava, ainda, o conceito. Do amor. Mas não esse teu amor. Alegadamente pleno. Em duo... Novamente de um amor pleno a solo. Ecoando. Com a mesma genuinidade. Com a mesma ingenuidade. Com a mesma intensidade. Voltei a perceber(-me), porque longe dos teus braços (me) fazia sentido. Basta um. Só um. Para amar.

 

Cada vez mais acredito que o Amor é um sobrevivente incauto dos dias. Demasiado estável para a instabilidade humana e, por isso mesmo, muito raro.

 

E é verdade.


eu acreditei que o amor não precisava de seguir as regras da gramática mas eventualmente pus-lhe um ponto e vírgula

 

O Amor precisa de gramática, sim! Precisa muito que lhe revejam a gramática. Que o limpem de pretéritos. Perfeitos, imperfeitos, mais-que-perfeitos. Que façam dele um verbo irregular, justamente pela estabilidade que o motiva.

 

O Amor é demasiado constante para ter tempos passados. Demasiado puro para que não permitam que a conjugação presente se faça em todas as pessoas.

 

E o seu uso devia ser moderado...

 

Porque há duetos que o destroem.

 

E borboletas...

 

... muitas borboletas a morrer no chão, porque alguém o confundiu, nas ruas, com a paixão e a vontade do corpo e o medo da solidão...


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 16 de novembro de 2021

O Monstro dos Abraços

Fotografia: Nuno Sousa



Ela disse-me que era o Monstro dos Abraços. E eu acreditei. Pelo menos na primeira parte. A do Monstro. É-o, de facto. Mas não nos termos do mundo. Nos meus.

 

 

Ainda é pequenina. Em idade e em tamanho. Mas tem uma sabedoria que suplanta facilmente os anos cujas velas sopra. E uma alma maior do que o corpo. Tão maior...

 

Gosta de jantar fora. De sushi. De piza. De brincar com outras crianças. Ou com adultos. E de artes plásticas. E de dançar. E de sentir-se contemplada nos momentos de sucesso. E de contar histórias sobre os dias que passa, aqui e além, tão cheios de instantes que merecem partilha.

 

Não gosta da escola. A escola corta-lhe as pernas. Tenta moldá-la. Tenta limitá-la. Tenta excluí-la. Ela não gosta que a moldem ou a limitem. Muito menos que a excluam. Quer ser livre, dona do mundo e senhora da sua própria aprendizagem. Protela tarefas... mas não por preguiça. É naturalmente curiosa. Inteligente. Esperta. Quer saber de quase tudo. Interpreta a vida com uma sabedoria muito maior do que a dos anos vividos. Questiona cada momento, como se cada momento fosse lição. E ouve. Atentamente. Quase sempre.

 

É Monstro. É Monstro porque é diferente do mundo. Porque é artista. Porque não foi fabricada nos moldes convencionais. Porque não foi tecida para ser o que os outros querem que ela seja.

 

Cativa. Cativa outros Monstros. Iguais a ela e a mim, embora sejamos todos tão diferentes. Cativa os Monstros. Este Monstro. Este que eu sou.

 

Salta da cadeira, ocasionalmente. Agarra-me pelo pescoço e diz-me: gosto de ti. Também gosto dela. E acrescenta: Sou o Monstro dos Abraços. Diz isto, apertando-me com mais força. E, no abraço dela, eu compreendo que, na sua pequenez, é ela que me protege, oferecendo segurança à minha debilidade adulta.

 

Dou por mim a querer ser parte dos ensinamentos que ela quer receber. Dou por mim a querer ser escudo de proteção. Dou por mim a querer cultivar sementes de bondade no mundo, para que o mundo dela seja melhor que o meu.

 

E sei. Sei. A vida não lhe será fácil e o caminho não lhe será brando. Porque ela é. Monstro. Nos meus termos. Diferente, única, fabulosa e cheia de mundos que o mundo rejeita.


Ela disse-me que era. O Monstro dos Abraços. E eu acreditei. Na verdade, eu já sabia. Pelo menos na primeira parte. A do Monstro. Mas, embora saiba melhor a primeira, também aceito a segunda. Porque quando ela salta da cadeira e me abraça, os abraços têm sabor. Sabem justamente ao mundo que, um dia, eu quero para ela...

 

Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Estacionamento


 

Pousou as compras no carro. Semblante pesado. Fechou a mala. Voltou a abri-la. Tirou, de um dos sacos, um bolo pastoso e demasiado calórico que acabara de comprar. Fechou a mala. Outra vez. Entrou no carro. Fechou a porta. Fixou as letras luminosas do nome da superfície comercial. Trincou o bolo. Foda-se.

 

Tinha creme nos dedos e açúcar em pó caído sobre a saia. E na ponta do nariz. E nos cantos da boca. Limpou-a com as costas da mão e apercebeu-se da humidade leve sobre o rosto. Ainda fixava as mesmas letras. Um transe maníaco-depressivo. Suspirou. Encostou a testa ao volante. Depois, bateu com as mãos no volante, ao lado da cabeça imóvel. Violentamente. Buzinou sem querer. Levantou os olhos. As pessoas. As outras pessoas. Impassíveis. Surdez coletiva. Autómatos movidos no ritmo alucinante das horas do século do imediatismo.

 

A lágrima que rolava era agora o espelho e a montra e a bola de vidro dentro da qual se agitava o líquido nevoento e nevado das possibilidades de um ontem que fora. Tinha fome. Mais de vida do que de bolos. Mas ainda assim...

 

Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para os carros ao lado. Desertos de gente. Aparentemente. Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para dentro do seu corpo inútil. Foda-se.

 

Foda-se. Foda-se. Foda-se.

 

O pensamento tinha intenção. Mas o corpo não tinha energia. Repetiu mentalmente o processo aparentemente simples de ligar o carro e ir. Não ligou o carro nem foi. Ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial. E os autómatos movidos a tarefa. Movidos. Movimento. E ela ali, parada.

 

Tinha dito ao psicólogo que não valia a pena falar de sentimentos podres, já carcomidos e cheios de bolor. Ele respondera que o bolor deu origem à penicilina. Do mal à cura. Sentira o ímpeto de o atirar pela janela entreaberta do consultório. E sorriu. Na ideia do corpo esmagado contra a calçada. Antes de voltar a si, agradecer e sair, cancelando todos os futuros encontros junto da secretária loura, jovem e aprumada.

 

Em casa, esperavam por ela. O marido, querendo o jantar pronto às oito. Os putos, correndo entre divisões atrás do gato mal-humorado, que lhes bufava. O cão, correndo atrás das crianças e embatendo contra os móveis, onde ocasionalmente se partia mais um bibelô ridículo que alguém lhes dera no Natal. E esperava-a a roupa. Que teria de lavar. Lavar era o menor mal. Só que, quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas. Então ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial.

 

Foda-se. E se eu não voltar?

 

Subitamente a ideia de ficar ali, a olhar para o nome luminoso do supermercado parecia destino melhor. E se eu não voltar?

 

Descolando os olhos do seu ponto de refúgio, notou pela primeira vez que, dentro do carro ao lado, estava eu. Eu também olhava a entrada, observando as pessoas e a noite caída e o que ficava além das paredes, provavelmente. Escrevendo, mentalmente, sobre ela, esta narrativa ficcional sobre um universo possível que ela talvez nem tenha vivido.

 

O olhar dela puxou o meu. Entreolhámo-nos e desviámos o olhar com rapidez. Ligámos os carros. Fomos.

 

Não sei se ela tem marido, dois filhos, um gato e um cão em casa. Eu tenho roupa para lavar. E, em alguns dias, isso mata. Porque quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas...

 

Eu sei que o mundo está todo a tentar parecer perfeito. Foda-se. Eu não sou. Em alguns dias só quero ficar. Parada. Ausente. Com todas as minhas ideias dispersas e os meus sentimentos ambíguos. Ficar. Parada. Ausente. No carro estacionado. Ao lado de outro carro estacionado com uma estranha que me é estranhamente familiar e para a qual invento vidas. Parada. Ausente. A olhar para o nome luminoso da superfície comercial. A fingir que não existo.

 

Foda-se.

 

Sou humana.


 Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!


terça-feira, 2 de novembro de 2021

Agenda

 

 Fotografia de Analua Zoé


Tentei organizar a minha agenda entre morte e morte.

 

Bebi o café depois da morte do direito ao descanso e antes da morte do direito ao salário justo. E sentei-me a trabalhar entre a morte do direito à não escravatura e a morte da ciência que se questiona.

 

Questionei, depois. Já não era tempo de questionar. O vento, as pessoas em redor, o pivô do jornal que passava na TV, todos me mandaram sonoramente calar. Reduzi-me à minha insignificância, entre a morte da liberdade de pensamento e a morte da presunção da inocência.

 

Dei os dados solicitados às entidades competentes entre a morte da privacidade e a morte da igualdade perante a lei. Procurei um julgamento justo. Mas informaram-me que esse tinha falecido precocemente e já há vários séculos. Chorei-lhe a morte, porque não sabia.

 

Pediram-me que ficasse em casa, aguardando o veredito certo da culpa. Fiz as tarefas mundanas entre o noticiário das oito e a apresentação do orçamento de Estado. E logo morria a cultura. Zero vírgula vinte cinco vezes, desta vez.

 

Saí, contra a indicação, para informar os outros de que o sol se estava a apagar. Mas as pessoas eram sombra. Colei o alvo nas costas, entre a morte da empatia e a morte do pensamento.

 

Vieram buscar-me entre as dez e as onze. Perguntei quem tinha morrido antes e depois, mas não me disseram. Afirmaram que deveria calar-me, entre as onze e a morte da liberdade de expressão.

 

As balas lá andavam. Soltas na rua. E havia o alvo nas minhas costas.

 

Um sussurro esvaiu-se em sangue sobre o opaco de mentes cegas.

 

Caí. O fim da minha agenda, na agenda dos outros. Entre morte e morte. Ao lado do meu corpo, inerte e trespassado, outros rastejavam.

 

Balas perdidas no ar não matam quem anda de rojo. Pensei. Mas que triste forma de viver.


 Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!