segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Evidentemente


Está escondido atrás do meu sorriso, nos cantos dos meus olhos e da minha mente. Permanece no centro do meu pensamento, tentando inutilmente fazer-se despercebido.
Está aí. Onde transparece e grita, onde se nota e clama. E move-se de mansinho entre as paredes do labirinto de mim, eterno vagabundo sem outra casa ou outro intento de vida.
Está aí. Acorda-me de manhã sem me deixar dormir à noite e move-me, o dia inteiro, no desejo de que o dia se torne noite outra vez. Quando tento escapar-me, ele toca-me no ombro. Um aviso regular, que me faz revirar os olhos, tentar e desistir da busca pela coerência. Está aí. Como está o ar. Não há uma explicação lógica, não há uma agenda nem um motivo... nem precisa de haver.
Está oculto nos recantos de mim. E faz-me feliz mesmo quando choro. É desafortunado e difícil. É persistente e inevitável. Maduro e racional. Vive cheio de saudades do passado mas também tem saudades do que está por devir. E inventa histórias feitas de palavras ditas ou pensadas. Faz desenhos com essas histórias e deixa que a minha mente decida colori-las com tonalidades fortes e vibrantes. Transforma-me pensamentos em desejos. Desejos em sonhos. Sonhos em segredos que não se contam a ninguém.
Está aí. Inevitável como respirar ou como uma batida de coração. Não sei de onde veio. Não sei para onde vai. Mas sei que está. E tento contorná-lo, pé ante pé, algumas vezes, consciente de que me tapa a vontade do que é real e imediato. Mas ele não deixa. Avança comigo, cega-me um pouco e faz-me ver tanto...
Está escondido. Aí, escondido à vista de todos. E ninguém sabe. Ninguém vê. Ninguém sabe que fica atrás do meu sorriso, nos cantos dos meus olhos e da minha mente. Ninguém sabe que permanece no centro do meu pensamento. Mas ninguém precisa de saber... É esse o sentido do sentir. Acontece dentro de nós. Muda tudo em nós, sem nos mudar. E avança connosco, qual gigante invisível. Pode não ter nome. Pode não ser claro. Mas está lá, faz-me sempre sorrir, faz-me feliz... e é por ti, evidentemente.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Adormeceu



Tocou um sino ao longe. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor...
Ela não tinha caído no sono. Esse sono é somente para quem, um dia, esteve acordado. E ela não tinha estado. Tinha estado dormente. Estava dormente para a vida havia tanto tempo que nem estava certa de ter vivido. Então, era-lhe negada a dádiva de fechar os olhos e cair no abismo profundo de um sono descansado. Mas adormeceu. Adormeceu aos poucos.
O seu sono começou nas mãos, que escreviam um bilhete. Nas mãos que escovaram o cabelo, até o deixarem perfeito. Nas mãos que abriram o frasco. Nas mãos que pegaram na água. Nas mãos que abriram a cama. Nas mãos que agarraram a almofada.
Adormeceram-lhe os olhos, fechando, levemente. Adormeceram-lhe os braços e as pernas, no conforto inegável das mantas. Adormeceu-lhe a alma cansada, magoada, ferida. Adormeceram um a um. Suavemente. Levemente. Aos poucos. E foram adormecendo aos poucos os sentidos débeis, até que, num último batimento, lhe adormeceu o coração.
Foi então que sorriu. Não sorria há muito tempo. Desde que a vida a deixara na dormência de não poder adormecer como todos os outros. Desde que as lágrimas tinham povoado os olhos que agora dormiam. O seu sorriso foi puro. Simples. Já não se lembrava de algo ser puro ou simples. Mas, no último batimento do seu coração, ela sentiu: sentiu a paz. Foi por isso que sorriu.
Não acreditava na eternidade da alma. Acreditava, sim, no fim da dor. Acreditava que a vida e a morte eram irmãs. Uma feita em dor, a outra em medo. Preferia o medo, ainda assim. E foi por isso que se fez adormecer aos poucos: primeiro as mãos, os olhos, o corpo, a alma. Por fim, o coração...
A dor adormecera também, ainda que o medo a tivesse acompanhado até ao fim. Enquanto a respiração adormecia, com o último bater do coração, o quarto ficou no silêncio do seu sono profundo, enquanto o bilhete escrito à pressa gritava incrédulo, pedindo clemência e compreensão. Uma clemência e compreensão que ela tinha sabido impossíveis enquanto adormecia para a dor.
E o silêncio firmou-se até que, ao longe, um sino bradou. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor, do qual jamais acordaria.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet




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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Bailado azul



Ele. Uma coisa que devem saber sobre ele é que ele não sabe dançar. Sim. É importante. Ele não sabe dançar. Afirma-o com convicção. Reafirma-o quando alguém o rebate com a expressão feita do "toda a gente sabe". Ele diz que não. Que não sabe dançar. Que tem dois pés esquerdos. Que é descoordenado. E isto não é um pormenor. Isto é algo que devem saber sobre ele. Algo que precisam de saber, para entenderem a vastidão de sentidos que lhe compõem o eu. Ele não sabe dançar.
Conheci-o. Primeiro com olhares fugazes e sem que se trocasse uma palavra. Depois, com palavras ondeando sem que os olhares se cruzassem. Conheci-o e ele disse-me, algures entre letras e músicas, que não sabia dançar. Mas sabia da vida. Sabia de música. Sabia dos pormenores gigantes que tornam o mundo especial. Sabia de ciência. Sabia que não sabia dançar.
Tinha os olhos azuis. Não levemente azuis, como vulgarmente aparecem por aí. Mas azuis. Aquele azul que é mais azul que o céu e o mar somados. Um azul profundo. Qualquer coisa entre índigo e turquesa. Uma cor que ainda não tem nome. E, quando as palavras se misturaram com o olhar, numa proximidade que nos permitia falar e perdemos as horas a mergulhar nos olhos um do outro, o coração acelerou. O meu coração que não sabia que podia seguir acelerou, enquanto o dele, que estava certo de não saber dançar, fazia o mesmo.
As nossas palavras e os nossos olhares não se mantinham numa temática. Era o meu melhor amigo e falávamos sobre tudo. O mais trivial e o mais importante. Falávamos sobre o estado do tempo, do país, da vida, da alma. Às vezes, por entre as conversas, lá vinha a frase, a eterna frase que devem manter em mente: "não sei dançar". E é importante saberem isso sobre ele. Ele não sabe dançar. Dizia não saber. Acreditava piamente nas palavras que dizia.
Não saber dançar era o escape imediato para não ver que já dançava. Conheci-o em olhares fugazes, vendo-lhe os dedos a dançar num teclado de piano. Os dedos dançavam como os seus olhos compenetrados, cujo brilho ondeante tinha valsas de contentamento e realização. Dançava sim. Atrás das teclas pretas e brancas do piano, ele dançava em arcos-íris de cor. Sorria, com leveza, às vezes. Deixava o rosto tenso, nas outras. Mas o importante era isto: deixava os dedos dançar.
Descobri, quando passámos dos olhares fugazes, sem palavras, às palavras fortes, sem olhares que ele também fazia dançar as palavras. "Fui eu que escrevi a letra", contou-me, certa vez. Havia nas palavras, inerente, a dúvida. Ele não sabia que as palavras, tão simples e tão complexas, também lhe dançavam. Mas eu sabia. Sempre soube. Mesmo quando ainda não sabia que queria ser o par dessas danças de eternidade.
Um dia, quando as palavras e os olhares já se cruzavam e ele dizia "eu não sei dançar", o coração dele dançou. Dançou com o meu. Compassado, enérgico. Os passos dos nossos corações não eram simples. Eram tangos, valsas. Tinham um quê de ballet, de contemporâneo, de danças do mundo. Mas eles dançaram com simplicidade porque, mesmo que não o soubéssemos, era em sintonia que dançavam. Dançavam no uníssono que nos ligava as raízes que, entretanto, haviam de se enlaçar, escondidas sob a terra, como se não pudessem mostrar-se ao mundo.
Até que, já de palavras, olhares e danças cruzadas, as nossas certezas se uniram na compreensão de que a felicidade era um lugar a dois. E era. Então, com movimentos simples e subtis, caminhámos, pé ante pé, na direcção do contentamento.
Ele. Uma coisa que devem saber sobre ele é que ele não sabe dançar. E isto é realmente importante. Ele diz que não sabe dançar. Que tem dois pés esquerdos. Que é descoordenado. E, não, acreditem em mim: isto não é um pormenor! Isto é algo que devem saber sobre ele. Algo que precisam de saber para entenderem a vastidão de sentidos que lhe compõem o eu. Ele não sabe que sabe dançar.
Devem saber isto sobre ele para compreenderem uma coisa: ninguém dança melhor do que ele. Todos os dias de manhã, quando me diz "bom dia", eu sinto a alma dançar um bocadinho com a dele. E, quando me abraça, os nossos corpos enlaçados vibram numa qualquer coreografia. Quando os nossos lábios se tocam, tocam também as canções que nos fazem discorrer em movimento sobre salões de baile. E vamos dançando, todos os dias. A todo o momento. Vamos dançando juntos, em valsas de alma e coração.
Ele. É isto que realmente devem saber sobre ele, para poderem compreender. Ele diz que não sabe dançar. Não vale a pena contrariar as suas palavras convictas. Mas, apesar do que diga, a verdade é que ele sabe. Sabe e dança comigo como nunca ninguém dançou. Faz a minha alma dançar como nunca ninguém fez. Deixa a dele dançar com a minha. E se, olhando para ele, não virem a dança constante dos seus olhos, dos seus dedos, das suas mãos, dos seus sorrisos, da sua alma, do seu coração, verão sempre apenas a fachada bonita dos olhos azuis, sem nunca o verem. Olhem melhor. O importante é isto: ele realmente dança... e nem o sabe.

Marina Ferraz
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Guia para conquistar uma mulher



Os homens pedem um guia para conquistar uma mulher. As mulheres falam de romance e atenção como se fosse um guia. E o mundo segue a sua lógica incoerente, na inexistência de uma compreensão real ou mutua.
Pelas ruas fala-se da conquista como se fosse uma ciência exacta, comparável à matemática e tão complexa como a física quântica. Para eles, as mulheres são todas iguais. Para elas, eles não entendem as coisas que nós - todas nós, mulheres - queremos.
O guia prático para conquistar uma mulher é apresentado em manuais de duas páginas onde se fala de romance e actos carinhosos, de diamantes e presentes caros, de saídas e conversas sobre um futuro a dois. Dizem que as mulheres são coração. Que se deve tocar esse coração com o mesmo cuidado com o qual se tocaria num cristal demasiado fino para não o quebrar. Dizem que tudo o que as mulheres procuram é estabilidade, uma rotina a dois, compreensão, fidelidade...
No final desses guias, dessas conversas, eu reduzo a vida a uma de duas opções: ou nada daquilo está certo ou eu realmente não sou uma mulher.
Essas reduções tontas da mulher ao sentido e ao sentimento. Essas reduções inúteis da mulher ao amor e à emotividade. Essas reduções que tornam as mulheres apenas metade de si. Que tornam as mulheres todas iguais. Não as entendo. Não me revejo nelas. As mulheres podem ser fracas ou fortes; emotivas ou insensíveis. Podem querer o "para sempre" ou o "até nunca mais". Podem sonhar com o casamento ou com a liberdade. O guia prático para conquistar uma mulher deveria dizer isso: as mulheres não são de cristal  nem de pedra. São cristal e pedra. São cristal ou pedra. Não são todas de uma forma. Não são todas de outra forma. Algumas são até ambas ou nenhuma das duas.
Não venham dizer-me "a mulher é isto" ou "a mulher é aquilo". A mulher, em geral, é o que é. E cada mulher é um individuo. Cada mulher é outra coisa. Cada mulher é diferente da outra. Não se conhecem as mulheres em teorias desusadas e estereotipias com mil anos. As mulheres conhecem-se, uma a uma, com tempo e paciência. Porque é assim que se conhecem também os homens. É assim que se conhecem as pessoas...
As mulheres? Eu diria, num guia muito próprio sobre como  conquistar uma mulher que elas são outra coisa, algo que ainda não foi dito e que não pode ser estudado.
Para mim, as mulheres são seres de água e sal. É por isso que, às vezes, as lágrimas transbordam dos olhos tristes. As mulheres são seres de pedra e prata. É por isso que se aguentam de pé nas piores situações e não esquecem os valores à primeira dificuldade. As mulheres são seres de cores matizadas. É por isso que os seus humores variam e mudam e explodem. Mas se há uma coisa que as mulheres não são é todas iguais. Atrever-me-ia a dizer mesmo que são todas diferentes.
Por isso, o guia prático para conquistar uma mulher será sair com a alma aberta e ir à procura do que uma mulher é. Não existe um guia para conquistar todas as mulheres. Mas, se tiverem coragem, talvez consigam até conquistar o coração de uma. E, se forem realmente sortudos, talvez compreendam que a essência de uma mulher não pode ser comparada à de outra e consigam finalmente entender uma mulher... a mulher que, quem sabe, por algum motivo que ninguém entende, queira ser a vossa sem que precisem de um guia prático para a conquistar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Dominó



Para o meu avô

Dominó. As peças distribuíam-se. O olhar perdia-se nas pedras. O sorriso vinha, tímido. Os dedos encardidos pelo tabaco eram ágeis no movimento. Pousavas uma pedra atrás da anterior. Fazias chocar os extremos com um baque seco sobre a madeira da mesa. Semicerravas um pouco os olhos no sorriso e dizias, num tom de aviso claro e doce, "é a tua vez".
Tardes e tardes a fio, ritmadas pelo baque das peças, pelos olhares de ternura, pelas palavras aveludadas. Era a minha vez. Depois a tua. Depois a minha. Intercalávamos movimentos até as peças estarem dispostas sobre a mesa, sem que nenhuma sobrasse nas nossas mãos. E quando já não havia peças nas mãos, havia uma corrida de dedos, virando-as de novo, distribuindo-as de novo, olhando de novo, jogando de novo...
Nunca nos cansávamos. Às vezes, falávamos de tudo e nada. Outras vezes, silenciávamos as palavras. As nossas palavras eram amor. O nosso silêncio era conforto. Não havia nada em nós que não fosse feliz e completo.
É disso que me lembro melhor: do amor e do conforto. Dos pormenores. Pormenores como a forma ágil com a qual jogavas dominó. Pormenores como o cheiro à folha do tabaco, que de tão natural em ti, parecia doce. Pormenores como os teus dedos encardidos, quase sempre segurando o cigarro seguinte. Pormenores como o olhar calmo e perdido no horizonte do invisível. Pormenores como o tom e a doçura com o qual me informavas de que era a minha vez.
Eu era menina. Tu eras ancião. Sabias do dominó e da vida muito mais do que eu sabia ou viria a descobrir com os anos. Sabias que eu era criança mas viria ser mulher. Sabia que eras homem mas podias ser criança. E sabias que eu havia de recordar essas horas que me marcaste com o preto e branco da simplicidade.
Era realmente simples. Abria-se a caixa do dominó. Misturavam-se as peças dançantes. Distribuíam-se  com rapidez. O teu olhar perdia-se nas pedras mal o jogo começava. O sorriso vinha, tímido, brindar a primeira jogada. Os teus dedos. Ah, os teus dedos estavam encardidos pelo tabaco e nunca se cansavam de agarrar o cigarro seguinte. Mas eram ágeis no movimento e moviam as peças sobre a mesa. Pousavas a pedra atrás da anterior. Fazias chocar os extremos com um baque seco sobre a madeira da mesa. Semicerravas um pouco os olhos no sorriso e dizias, num tom de aviso claro e doce, "é a tua vez".
Ouço-te a voz. Ainda a ouço, a dizê-lo. Ouço-a e, por ser a minha vez, escolho construir-te, pormenor a pormenor, nas pedrinhas do jogo de dominó que guardei para mim, qual tesouro de prata e rubi. Sinto a saudade adensar e o amor intacto. É a minha vez. Agora vai ser sempre a minha vez porque não posso dizer que é a tua e esperar que o ouças. Mas a memória fica e, quem sabe? Talvez um dia, nessa terra distante onde é sempre Verão, possamos sentar-nos numa mesinha de madeira, com sorrisos leves para retomarmos esse jogo preto e branco, de amizade e amor, de palavra e silêncio, de avô e neta...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet