Para o meu avô
Dominó. As peças distribuíam-se. O olhar perdia-se nas pedras.
O sorriso vinha, tímido. Os dedos encardidos pelo tabaco eram ágeis no
movimento. Pousavas uma pedra atrás da anterior. Fazias chocar os extremos com
um baque seco sobre a madeira da mesa. Semicerravas um pouco os olhos no
sorriso e dizias, num tom de aviso claro e doce, "é a tua vez".
Tardes e tardes a fio, ritmadas pelo baque das peças, pelos
olhares de ternura, pelas palavras aveludadas. Era a minha vez. Depois a tua.
Depois a minha. Intercalávamos movimentos até as peças estarem dispostas sobre
a mesa, sem que nenhuma sobrasse nas nossas mãos. E quando já não havia peças
nas mãos, havia uma corrida de dedos, virando-as de novo, distribuindo-as de
novo, olhando de novo, jogando de novo...
Nunca nos cansávamos. Às vezes, falávamos de tudo e nada.
Outras vezes, silenciávamos as palavras. As nossas palavras eram amor. O nosso
silêncio era conforto. Não havia nada em nós que não fosse feliz e completo.
É disso que me lembro melhor: do amor e do conforto. Dos
pormenores. Pormenores como a forma ágil com a qual jogavas dominó. Pormenores
como o cheiro à folha do tabaco, que de tão natural em ti, parecia doce.
Pormenores como os teus dedos encardidos, quase sempre segurando o cigarro
seguinte. Pormenores como o olhar calmo e perdido no horizonte do invisível.
Pormenores como o tom e a doçura com o qual me informavas de que era a minha
vez.
Eu era menina. Tu eras ancião. Sabias do dominó e da vida
muito mais do que eu sabia ou viria a descobrir com os anos. Sabias que eu era
criança mas viria ser mulher. Sabia que eras homem mas podias ser criança. E
sabias que eu havia de recordar essas horas que me marcaste com o preto e
branco da simplicidade.
Era realmente simples. Abria-se a caixa do dominó. Misturavam-se
as peças dançantes. Distribuíam-se com
rapidez. O teu olhar perdia-se nas pedras mal o jogo começava. O sorriso vinha,
tímido, brindar a primeira jogada. Os teus dedos. Ah, os teus dedos estavam
encardidos pelo tabaco e nunca se cansavam de agarrar o cigarro seguinte. Mas
eram ágeis no movimento e moviam as peças sobre a mesa. Pousavas a pedra atrás
da anterior. Fazias chocar os extremos com um baque seco sobre a madeira da
mesa. Semicerravas um pouco os olhos no sorriso e dizias, num tom de aviso
claro e doce, "é a tua vez".
Ouço-te a voz. Ainda a ouço, a dizê-lo. Ouço-a e, por ser a
minha vez, escolho construir-te, pormenor a pormenor, nas pedrinhas do jogo de
dominó que guardei para mim, qual tesouro de prata e rubi. Sinto a saudade
adensar e o amor intacto. É a minha vez. Agora vai ser sempre a minha vez
porque não posso dizer que é a tua e esperar que o ouças. Mas a memória fica e,
quem sabe? Talvez um dia, nessa terra distante onde é sempre Verão, possamos
sentar-nos numa mesinha de madeira, com sorrisos leves para retomarmos esse
jogo preto e branco, de amizade e amor, de palavra e silêncio, de avô e neta...
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Minha querida este texto é de longe perfeito,gostei muito de vossas palavras e do modo como os sentimentos transpassaram as palavras.Traz saudade,amor,carinho e ternura.É doce e me fez bem ler.
ResponderEliminarParabéns,foi um dos melhores textos que já li,além é claro,de todos os outros.
Beijinhos Jenny ♥