terça-feira, 26 de novembro de 2024

A maior distância

 

Imagem gerada por I.A.

Eu não penso em vocês quando escrevo!

 

Peço desde já desculpa pela falta de formalidade e cerimónia, totalmente proveniente de um forte sentido de desatenção à norma e ao politicamente correto.

 

Sim, eu gosto que me leiam. Muito. E valorizo imenso cada crítica que me faz crescer. E cada elogio que me faz sorrir. E cada comentário, cada reação, cada partilha! Mas eu não penso em vocês quando escrevo.

 

Sabem?! Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. É a maior distância, quero eu dizer, que eu, sendo eu, posso criar entre dois pontos. Não!... Não me estou a explicar bem! O que eu quero dizer é que, apesar de toda a pequenez e ausência de utilidade prática de um texto meu e da minha própria insignificância, o texto que escrevo reforça e por vezes aumenta a distância entre dois pontos e são pontos que estão a uma distância infinita. Suspiro. É impossível dizê-lo! Posso dizê-lo, claro. Mas não consigo explicar de forma a que entendam. Mesmo isto, ao ser lido, passa automaticamente pelo processo de criação de desentendimentos. Entendam: o que eu queria dizer quando o disse e o que vocês leram agora não é a mesma coisa!

 

Há um texto. Um texto que fui eu que escrevi. O uso do possessivo significa isso. Que o escrevi. Digo que é o meu texto. Quando o público lê, o texto perde o possessivo que tem e ganha outro. Na leitura, ele é o vosso texto. O meu texto não é o vosso texto, mesmo que seja o mesmo texto. Um texto é muitos textos. E é por isso que um texto meu é a maior distância entre dois pontos, porque abre espaço a um infinito desentendimento.

 

Não faltam situações em que as pessoas se identificam com o que digo, nem situações em que a discordância vem de uma interpretação que eu nem tinha pensado. Enlouqueceria depressa se tentasse escrever de forma a agradar a todos. E é por nem tentar fazê-lo que não terei um best seller tão cedo (ou alguma vez...).

 

Eu não penso em vocês quando escrevo!

 

Penso num mundo onde existe uma desmesurada preocupação com “será que devo dizer/fazer/escrever isto?”, uma auto-censura que recuso para mim. Penso em todas as pessoas que estão a passar pelo frio, fome, guerra. Penso que muitas delas não sabem escrever. Que muitas delas não podem. Que mesmo que soubessem e pudessem, essa não seria uma prioridade. Penso nelas quando escrevo, porque me recordam de que as palavras que digo (e não as que os outros leem) significam algo. Valem algo. Valerão algo, mesmo que ninguém lhes dê valor.

 

Vem do português do Brasil uma expressão que amo: “Lugar de fala”. O meu lugar de fala é de privilégio. Neste lugar de gente com teto sobre a cabeça (e computador onde escrevo este texto, com uma manta quentinha sobre as pernas), sem bombas a explodir lá fora e com comida no frigorífico e na despensa. Então, quando escrevo, eu não penso em vocês. Gente que abre o computador ou pega no telemóvel para ler – e se ofender ou amar – o texto desta semana. Penso em quem não escreve, nem lê. Quero profundamente que o meu texto seja esse espaço de desentendimento, de compreensão sobre o quanto não entendemos a realidade dos outros, porque é distante e não nos come a carne. Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. Mas é também a forma de tentar reduzi-la. De tentar acordar corações para essa realidade fria e longínqua.

 

Os meus textos são desconfortáveis. Quando os escrevo. Quando os leem. Eu não penso em mim quando escrevo. Nem em vocês. Eu penso que estou aqui e não sei para quê. Mas que, se não tentar pegar no meu privilégio para tentar estreitar a maior distância entre esses dois pontos, não estou aqui a fazer nada.

 

Eu não penso em vocês quando escrevo.

 

Escrevo. Só. Porque às vezes parece que é a única coisa que me mantém viva. Como se também houvesse uma guerra de fome e frio debaixo das mantas, que vou vencendo de todas as vezes que alguém se incomoda por eu o fazer. Como uma vozinha que sussurra no meu ouvido: talvez, talvez, afinal faça diferença.

 

Por isso, leiam. E sintam. E digam-me. Mesmo que não concordem mesmo nada com o que leram – seja ou não o que eu disse. Talvez um dia, juntos, na escrita, na leitura, na interpretação, os textos possam ser como as linhas retas. A distância mais curta entre dois pontos.

 


Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de novembro de 2024

O nome esquecido

 

Imagem gerada por I.A.

Tenho pena de deus. Esse que alguns escrevem com maiúscula. Usaria maiúscula se soubesse o seu nome. Mas conheço-lhe apenas o cargo. Acredito que seja um workaholic mais velho do que o tempo, tão focado no cargo de poder que já não se lembre bem de que nome tem ou como chegou a tão alto patamar, ou quando foi a última vez que descansou.

 

O deus do qual tenho pena é um deus único, amado e odiado, que de tão omnipresente não está de facto em lugar nenhum. Cresci a ouvir falar dele e nunca constou que tivesse mãe. Nunca me disseram que tivesse pai. Irmão. Irmã. Tios. Primos... Alguns disseram-me que ele era pai e mãe. Alguns disseram-me que ele tinha tido um filho, mas que esse filho era também filho de uma pomba, de um carpinteiro e de uma virgem. Alguns disseram-me que ele era todo-poderoso. Nunca ninguém me disse se ele era feliz. Ou se estava bem. Quando foi a última vez que comeu. Quando foi a última vez que passeou pela Natureza que ele mesmo criou. Quando foi que adormeceu com luz estrelas a bater no rosto ou o beijo de qualquer uma das múltiplas luas do universo.

 

Tenho pena dele, embora não saiba a resposta a nenhuma destas perguntas. Porque se os homens e mulheres não as fizeram antes de mim, é talvez porque ninguém queira realmente saber de deus. Ou pior, talvez porque só queiram que ele queira saber deles, e só se lembrem dele quando precisam de alguma coisa.

 

Se deus tivesse pai e mãe, talvez lhe dissessem que, na Terra, a retórica política usa a religião como motor de legitimação da autocracia. Que pessoas como Ventura, Bolsonaro, Trump ou Putin, entre muitos outros na História, já disseram, de forma direta ou indireta, que foram enviados por ele, para cumprir um qualquer papel messiânico na salvação de países ou do mundo. Que um suposto “povo eleito” é culpado de genocídio. Se deus tivesse pai e mãe, eles diriam, caso isto seja verdade, que talvez seja hora de repensar as escolhas. Talvez lhe dissessem: “filho, todas as tuas decisões têm consequências”. E talvez ele ouvisse, como alguns adolescentes ouvem, entre revirares de olhos, adequando a ação para criar o mundo de paz e amor .

 

Assinam-se documentos que permitem o uso de armas nucleares, montam-se tendas e camas de cartão nas ruas da cidade, destroem-se outras tendas em campos de refugiados, e onde dormiam mulheres, crianças, bebés, gente, é deixado apenas o grito da morte e destroços.

 

De deus, sabemos só o que nos dizem. E a fé mais bonita dos homens permanece, em orações que valem ouro, porque estão cheias de benquerença e compaixão. Tenho fé em algumas pessoas que rezam e defenderei o direito de qualquer pessoa ter a fé que tem, mesmo que eu não a tenha. E viverei desejando que essa fé seja um motor bonito para uma vida melhor e uma maior empatia e um amanhã que mereça ser vivido. Mas de deus eu conheci uma história triste. Aquela que me contaram, sempre na perspetiva dos homens. Disseram-me que deus salvaria o mundo. Nunca que o mundo salvaria deus. O mundo não o salva. O mundo está a matá-lo, se é que existe, usando-lhe o formal nome em nome de coisa nenhuma. E eu tenho pena de deus, porque o imagino velho e meio senil, sabendo que é deus porque tem o cargo mais complexo de todos e lho lembram diariamente, mas já sem lembrar que nome tem... ou se alguma vez o teve... ou para que o teria, se o soubesse, já que ninguém lhe pergunta como se chama.

 

Sussurro às estrelas. Se estás aí e existes, diz-me como te chamas. Quero saber se és feliz. Quero saber se estás bem. Quero dizer-te que tens de repensar as tuas escolhas. O silêncio abraça-me. O smog da cidade cobre o céu. Por entre a poluição, se há resposta, eu não a ouço.


Marina Ferraz




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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O maior elogio

 

Imagem gerada por I.A.

Disseram-me: só conheci uma pessoa verdadeiramente livre. Estavam a falar comigo. Estavam a falar de mim. E este foi o maior elogio que alguma vez recebi. Em 35 anos de vida, este foi o elogio mais bonito que ouvi uma pessoa dar a outra. E só fica, dentro de mim, a embater contra carne e ossos, a certeza de que não o sou. Verdadeiramente livre.

 

 

Todos os dias nos levantamos para os inevitáveis e as regras mundanas. Assumindo os acontecimentos com fatalismo. Aceitando-os e naturalizando-os, como se a norma social não fosse artificialmente construída. Rezamos ao Deus dos nossos pais e avós, evitamos impropérios, estabelecemos relações monogâmicas, seguimos uma linha “coerente” de vida, seguindo do liceu para a faculdade, da faculdade para o trabalho, do trabalho para a reforma; do namoro para o casamento, do casamento para os filhos, dos filhos para o divórcio. Subjugamo-nos ao ser bom aluno, ser bom marido ou esposa, ser bom pai ou mãe, ser bom profissional, ser cumpridor das normas, ser o que nos disseram para sermos... e sim, este uso da primeira pessoa do plural é em si uma convenção ancorada no politicamente correto. Porque eu não o faço, não quero fazê-lo e só não digo que detesto quem o faz porque não posso detestar o mundo quase todo e viver uma vida plena e feliz... mas detesto, isso sim, saber que as pessoas fazem isso a si mesmas.

 

Dizem-nos, falando da norma: vai por aqui, que é o caminho da felicidade. Mas quase ninguém é feliz na norma. Então, convenciona-se que é normal não estar feliz. Ter de lutar pela felicidade. Pelo sonho. Plantar hoje para colher amanhã. E plantamos, plantamos, plantamos... sementes e sementes e sementinhas do que não vamos colher, alimentando as mesmas galinhas gordas que entenderam tudo e riem, dos seus palanques, atirando ovos dourados - esmola ocasional para criar a ilusão de retribuição.

 

Olho para a norma e não encontro, de raiz, nada de errado nela. Porque é sempre essa a defesa dos que se ofendem com a Liberdade. Mas eu sou mesmo católico. Mas eu quero casar. Mas eu quero cumprir o meu papel de esposa. Mas eu quero ser um bom empregado. Mas eu quero... Fantástico! Está tudo certo. Podemos querer ser o que nos dizem para sermos, desde que saibamos que não estamos a sê-lo apenas por isso. Ser porque os outros são. Ser porque os outros dizem. Ser porque aprendemos o A-B-C do status quo e acreditamos que é a única forma... isso é o que o me incomoda. E incomoda-me porque, quando assim é, nem as pessoas são livres, nem deixam que os outros o sejam. A prova disso é que vivemos num tempo estranho onde a modernidade se mescla com o conservadorismo e passa a integrar princípios arcaicos de apatetado moralismo e puritanismo. Um tempo no qual a censura é desvelada, acontecendo diariamente, mesmo em frente dos olhos complacentes de meio mundo.

 

Acredito na Liberdade. Acredito nela de uma forma tão plena que acho que toda a gente deveria libertar-se das amarras constrangedoras do politicamente correto e socialmente aceitável para ser o que quiser, mesmo que isso seja divergente da artificial norma. E, ao fazê-lo, deveria dar espaço para que o outro possa fazer o mesmo, ainda que o faça de uma forma diferente. Ser e deixar ser. Mas ser, realmente. E deixar realmente que o outro seja. Sem invasões de espaço, sem imposição de limites, sem constrangimentos e preconceitos, sem julgamento, sem cobrança.

 

Para nos limitar, já temos a lei. Não precisamos uns dos outros.

  

Por isso, quando me disseram, lágrimas nos olhos - só conheci uma pessoa verdadeiramente livre – e estavam a falar de mim, eu sorri. Eu não sou verdadeiramente livre. Mas gosto de o ser nos olhos de alguém... porque só eu (e os meus idos) sabemos como estou a tentar. A Liberdade é uma semente que plantei no solo da minha vida e que rego regularmente. E, sim, monto-lhe guarda cerrada!... Porque há sempre uma galinha gorda por perto, a querer comer a semente a troco de um ovo de falso ouro. E eu tenho uma ideia do buraquinho em que, com os impropérios aplicáveis, devo mandá-la enfiá-lo...


Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Oferta de emprego

 

Imagem gerada por I.A.


Exmos Srs.,

 

Venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, que passo a citar:

 

“Sempre quiseste fazer parte de um espetáculo? 

Procuramos cantores, atores, bailarinos... artistas! 

Projeto não remunerado, a decorrer em 2025.

Envia a tua candidatura para o nosso email.”

 

Sim! Eu sempre quis fazer parte de um espetáculo. Mesmo sabendo que o meu país não apoia as artes. Que o ensino para a cultura é insuficiente. Que, a pouco e pouco, os palcos e os bancos e os camarotes acumulam pó e memórias do que foi a glória antiga. Mas eu quis fazer parte de um espetáculo, mesmo assim. Sonhei muitíssimo com o evento no qual os produtores soubessem o valor da arte. No qual os meus colegas aligeirassem o peso que sempre carregam sobre os ombros e vivessem condignamente. No qual os técnicos sejam mencionados (e pagos) pelo valor incomensurável do seu trabalho. Onde, no mínimo, se não existir mesmo financiamento algum, a bilheteira se divida por todos, honrando horas e dias e meses de esforço coletivo por um objetivo comum. Sim, eu sempre quis fazer parte de um espetáculo.

 

Imaginei as luzes nos olhos. O ressoar de palmas. A euforia trágica que antecede e sucede o fechar do pano. A corrida desenfreada nos camarins. Aquela apneia acompanhada de sopro cardíaco mesmo antes de entrar no palco. É muito o que se ganha a pisar as traves velhas dos teatros e salas de espetáculos. É um ganhar de lotaria muito próprio, que nos enriquece por dentro de um modo tão pleno que nem questionamos que, sem outra moeda de troca, a luz de casa não se acenderá, nem jorrará água da torneira, nem haverá conforto térmico que mimetize o conforto cénico. Nem a companhia da eletricidade, nem a das águas, nem a do gás aceitam pagamento em palmas. São, na verdade, bastante rápidas a vergastar as palmas de mãos vazias, oferecendo degraus para subirmos dessa cave fria, até à rua para morarmos em tendas... se as houver.

 

Dizem, na vossa oferta de emprego que querem emprego de oferta. Dizem que procuram cantores, atores, bailarinos... artistas. Mas o que vocês procuram não são cantores, atores, bailarinos ou artistas... mas escravos. Pessoas que se disponham a ver uma janela de oportunidade na oportunidade sem janela. E eu venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, sem pedir – que direito tenho?! – que ganhem vergonha na cara. Venho apenas esclarecer que a escravatura foi alegadamente abolida em Portugal no ano 1761, porque estou certa de que poderão não se ter apercebido. Afinal, o tempo passa a correr, sem darmos por ele, quando estamos a explorar os outros...

 

Assinado:

Um artista que paga contas e paga impostos


Marina Ferraz




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