Tinham criado laços na infância. Daqueles que se desfazem
nas voltas da vida, mas nunca quebram. E que deixam sempre um não-sei-quê de
saudade colada à sola do sapato. Das brincadeiras no terraço, tinham passado à
seriedade dos problemas. E, na maioria dos dias, não pensavam uns nos outros.
Vinham do mesmo lugar. Uma terra pequenina, plantada no
interior. Os pais, que não eram os mesmos, tinham deixado que se tornassem
irmãos, nas correrias junto ao ribeiro, nos saltos à corda, nas histórias
aterradoras no acampamento improvisado nos jardins das casas pobres e mal
sustentadas.
«Um dia...», a brincadeira mais usual. O sonho construído a
três vozes, por entre a pobreza dos dias que a sina lhes tinha marcado.
«Um dia, vamos ter uma casa enorme, com um cercado e
cavalos», sorriam. Anotavam tudo, a lápis de carvão, nas margens brancas do
jornal do dia anterior.
«Um dia, vamos viajar pelo mundo», atrevia-se outro.
«Um dia, vamos mergulhar nas águas das Caraíbas à procura de
tesouros», acrescentava alguém.
Dos sonhos comuns e dos que eram apenas de um ou de outro,
fizeram pedrinhas para construir a estrada sinuosa que os separou. Seguiram
rumos distintos. Cada um o seu. E deixaram para trás a aldeia e os pais
camponeses, com lágrimas nos olhos e promessas de voltar. Foi a vez dos pais
jogarem esse jogo de sonhos para amanhã.
«Um dia voltam». Não o escreveram. Nem a tinta. Nem a
carvão. Não queriam o lembrete diário do que podia nunca acontecer.
A vida não lhes sorriu por igual. Nos recantos dos dias, tão
diferentes, iam jogando, em surdina, dentro das suas cabeças, o jogo. «Um
dia...». E, quando se lembravam uns dos outros, deixavam, ocasionalmente,
mensagens e cartas e memórias pendendo nos espaços partilhados que a nova era
abriu na distância pouco concreta dos mecanismos eléctricos e electrónicos.
Até que alguém lançou o desafio: «um dia, temos de nos
juntar, como quando éramos crianças». E todos concordaram. E todos foram.
Da semelhança que os juntara, quando eram crianças, veio o
choque da diferença, tão vincada quanto os caminhos seguidos, que os separava
agora que eram adultos.
Um, trazia as roupas gastas, num rosto cheio de aceitação.
Dizia crer num amanhã melhor. «Mas não está mal assim», insistia. Emprego
certo, mas não muito bom. Para pagar as contas. Para viver os dias. Para voltar
amanhã. E repetir. Casamento vulgar. Sem grande amor. Sem grande apego. Feito
das rotinas usuais, à espera dos filhos que talvez o colorissem, um dia.
Outro, trazia olheiras negras marcadas no rosto. A incerteza
do amanhã. Trocava com frequência de tudo. De emprego. De cidade. De namorada.
Nunca ficava em lugar nenhum tempo suficiente para que algo fosse concreto.
«Sou feliz assim», disse. Mas também isso lhe parecia incerto na voz.
O outro trazia histórias da casa grande com o cercado e os
cavalos. Histórias das viagens e dos tesouros encontrados no fundo do mar das Caraíbas.
E dos braços que o envolviam na casa grande. E das crianças que montavam os
cavalos. E dos amigos que fizera em locais exóticos. E do horizonte além do
mar.
Olhando uns para os outros, como estranhos que nunca
tivessem partilhado acampamentos nos jardins, falaram sobre as conquistas e as
tentativas.
«Eu sabia que não conseguia, por isso nunca tentei», disse o
primeiro. E encolheu os ombros, afastando a ideia de que podia ter sido
diferente.
«Eu sabia que não valia a pena, por isso, mesmo começando,
nunca acabei.», disse o segundo. E havia um certo orgulho no desapego que o
fazia nómada de si mesmo.
Depois, o silêncio de olhos postos no semblante crescido e
realizado do terceiro. Também ele encolheu os ombros. Havia humildade no seu
olhar, que ainda brilhava com os sonhos do «um dia». E, nessa simplicidade,
disse somente: «Eu sabia o que queria, por isso nunca desisti».
Marina Ferraz
*Imagem retirada da
Internet
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