terça-feira, 24 de novembro de 2015

Devolve



Devolve.
Devolve-me o que me tiraste.
Devolve-me a leveza de alma com a qual acordava de manhã e que me fazia abrir a janela a cantar para dizer bom dia ao sol.
Devolve-me o sorriso com o qual caminhava nas ruas, desfilando um pouco de alegria pelo mundo e respondendo aos cumprimentos simpáticos de quem me sorria de volta.
Devolve.
Devolve-me o que me tiraste.
Devolve-me a força que me mantinha de pé e me tornava uma cumpridora de metas. Devolve-me as metas. Essas que cultivei na redoma dos sonhos. Devolve-me os sonhos.
Devolve.
Devolve-me o que me tiraste.
Devolve-me a vontade. Essa que me fazia caminhar sobre as dificuldades e fazer delas degraus. Devolve-me a inocência. A inocência que me fazia ver primeiro o melhor nas pessoas, acreditar nelas, ter fé. Devolve-me a fé.
Devolve.
Devolve-me o que me tiraste.
Devolve-me a paz que me envolvia onde quer que fosse. Devolve-me a liberdade de poder ir a qualquer lugar. Devolve-me os lugares que, em tempos, tive por meus. O amor que tinha para dar a quem, no espelho, me olhava de volta. Devolve-me o meu reflexo. Aquele que tinha sorrisos tatuados.
Devolve.
Devolve-me o que me tiraste.
Devolve-me os segundos, os minutos, as horas, os dias, as semanas, os meses, os anos. Devolve-me o tempo que perdi em ti. Com ele quero escrever um romance que valha a pena.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Recordo-me dele


Recordo-me dele. Moço peculiar dos tempos modernos. Engravatadinho e com ar de senhor dos seus passos, com sola de couro paga pelo pai e roupa passada a ferro pela mãe que o via, certamente, pelo maternal filtro opaco e que se emocionava ao chamar-lhe doutor. Ainda não era doutor. Seria, mais tarde, quando o nariz, largando as nuvens, encontrou um equilíbrio paralelo ao chão e a sua atitude petulante amenizou.
Recordo-me dele. Era um moço com muitas opiniões. Tantas, que se formavam e desvaneciam na efemeridade dos momentos. Tinha, por exemplo, uma opinião ao pequeno-almoço, com os pais, mas outra surgia, na mesma temática, assim que lia o jornal matutino. Esta evoluía no caminho para a faculdade e mudava ou não, consoante a posição tomada pelo professor. No final do dia, tinha passado por três clubes de futebol e cinco partidos políticos. Mas sempre os defendia de forma igual. Irrepreensível. Cheia de opiniões concretas e justificadas com argumentos irrebatíveis.
Recordo-me dele. Moço galante. Durante o tempo em que o conheci, encontrou vinte vezes a sua alma gémea. Aquela que referia como "a tal", "a mais bonita do mundo", "aquela com quem havia de casar". Enfatizava-lhes sempre as características. Tinham os olhos mais belos. Da sua cor favorita que, em alguns dias, era azul; noutros verde; noutros castanho. Tinham gostos iguais aos seus, quer se dedicassem ao desporto ou à costura. E as meninas derretiam nas suas palavras. Acreditavam nelas com afecto e devoção.
Recordo-me dele. Moço de lida fácil e de simples trato. Tinha muitos amigos. E concordava sempre com todos, fosse qual fosse o tema ou a ideia. Parecia viver num equilíbrio perfeito com as mentes alheias. Nunca discordava de ninguém. Nem mesmo quando, no mesmo espaço, aqueciam os ânimos na enunciação bipolar das ideias geradoras de conflito. Nunca lhe faltavam argumentos amenizadores. Defendia, em simultâneo, todas as opções com palavras recheadas de confiança e convicção. E todos queriam o brinde das suas palavras, porque era nelas que depositavam derradeira confiança.
Recordo-me dele. Moço de educação cuidada. Dizia sempre "bom dia" ao entrar na sala. Pedia-me a bênção. E a sua mãe, minha mulher, dizia "estão-lhe destinadas grandes coisas". Estavam. Tinha a mente jovem e distorcida, maleável. Bons estudos pagos, a custo, do meu bolso, tantas vezes vazio. Tornou-se político. Anda por aí a pregar a importância da família e do trabalho. Vejo-o na televisão. Digo aos companheiros da casa de repouso que é o meu filho.
Recordo-me dele. Mas, de alguma forma, ele esqueceu. De alguma forma, ele já não se recorda de mim.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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terça-feira, 10 de novembro de 2015

Um dia



Tinham criado laços na infância. Daqueles que se desfazem nas voltas da vida, mas nunca quebram. E que deixam sempre um não-sei-quê de saudade colada à sola do sapato. Das brincadeiras no terraço, tinham passado à seriedade dos problemas. E, na maioria dos dias, não pensavam uns nos outros.
Vinham do mesmo lugar. Uma terra pequenina, plantada no interior. Os pais, que não eram os mesmos, tinham deixado que se tornassem irmãos, nas correrias junto ao ribeiro, nos saltos à corda, nas histórias aterradoras no acampamento improvisado nos jardins das casas pobres e mal sustentadas.
«Um dia...», a brincadeira mais usual. O sonho construído a três vozes, por entre a pobreza dos dias que a sina lhes tinha marcado.
«Um dia, vamos ter uma casa enorme, com um cercado e cavalos», sorriam. Anotavam tudo, a lápis de carvão, nas margens brancas do jornal do dia anterior.
«Um dia, vamos viajar pelo mundo», atrevia-se outro.
«Um dia, vamos mergulhar nas águas das Caraíbas à procura de tesouros», acrescentava alguém.
Dos sonhos comuns e dos que eram apenas de um ou de outro, fizeram pedrinhas para construir a estrada sinuosa que os separou. Seguiram rumos distintos. Cada um o seu. E deixaram para trás a aldeia e os pais camponeses, com lágrimas nos olhos e promessas de voltar. Foi a vez dos pais jogarem esse jogo de sonhos para amanhã.
«Um dia voltam». Não o escreveram. Nem a tinta. Nem a carvão. Não queriam o lembrete diário do que podia nunca acontecer.
A vida não lhes sorriu por igual. Nos recantos dos dias, tão diferentes, iam jogando, em surdina, dentro das suas cabeças, o jogo. «Um dia...». E, quando se lembravam uns dos outros, deixavam, ocasionalmente, mensagens e cartas e memórias pendendo nos espaços partilhados que a nova era abriu na distância pouco concreta dos mecanismos eléctricos e electrónicos.
Até que alguém lançou o desafio: «um dia, temos de nos juntar, como quando éramos crianças». E todos concordaram. E todos foram.
Da semelhança que os juntara, quando eram crianças, veio o choque da diferença, tão vincada quanto os caminhos seguidos, que os separava agora que eram adultos.
Um, trazia as roupas gastas, num rosto cheio de aceitação. Dizia crer num amanhã melhor. «Mas não está mal assim», insistia. Emprego certo, mas não muito bom. Para pagar as contas. Para viver os dias. Para voltar amanhã. E repetir. Casamento vulgar. Sem grande amor. Sem grande apego. Feito das rotinas usuais, à espera dos filhos que talvez o colorissem, um dia.
Outro, trazia olheiras negras marcadas no rosto. A incerteza do amanhã. Trocava com frequência de tudo. De emprego. De cidade. De namorada. Nunca ficava em lugar nenhum tempo suficiente para que algo fosse concreto. «Sou feliz assim», disse. Mas também isso lhe parecia incerto na voz.
O outro trazia histórias da casa grande com o cercado e os cavalos. Histórias das viagens e dos tesouros encontrados no fundo do mar das Caraíbas. E dos braços que o envolviam na casa grande. E das crianças que montavam os cavalos. E dos amigos que fizera em locais exóticos. E do horizonte além do mar.
Olhando uns para os outros, como estranhos que nunca tivessem partilhado acampamentos nos jardins, falaram sobre as conquistas e as tentativas.
«Eu sabia que não conseguia, por isso nunca tentei», disse o primeiro. E encolheu os ombros, afastando a ideia de que podia ter sido diferente.
«Eu sabia que não valia a pena, por isso, mesmo começando, nunca acabei.», disse o segundo. E havia um certo orgulho no desapego que o fazia nómada de si mesmo.
Depois, o silêncio de olhos postos no semblante crescido e realizado do terceiro. Também ele encolheu os ombros. Havia humildade no seu olhar, que ainda brilhava com os sonhos do «um dia». E, nessa simplicidade, disse somente: «Eu sabia o que queria, por isso nunca desisti».

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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terça-feira, 3 de novembro de 2015

É difícil namorar com uma mulher bonita


É difícil namorar com uma mulher bonita.
Uma mulher bonita vai olhar ao espelho e sorrir. Saber que não precisa de mais ninguém além de si mesma para ser feliz. Vai estar contigo por amor e não por necessidade. Vai querer ouvir que gostas do que ela aparenta ser, do que ela veste, da maquilhagem que põe sobre o rosto ou do seu look natural e desgrenhado pela manhã. Vai querer ouvi-lo. Mas não vai precisar de o ouvir. Por mais que goste dos teus elogios, não precisará deles. Uma mulher bonita nunca vai precisar que lhe digas nada para se auto-valorizar.
Uma mulher bonita vai andar ao teu lado. Talvez te dê a mão. Mas não vai importar-se que olhem para ela. Vai desfilar pelas ruas, estejas ali ou não. Sorrir a estranhos. Fazer gestos de apreciação à vida. E vai afastar-te quando tiveres gestos de pretenso ciúme. Não vai aceitar que sejas possessivo. Uma mulher bonita sabe-o: sabe que pertence a si mesma e a mais ninguém. Não é tua. Está contigo. E, aos olhos dela, é isso que significa amar. Uma mulher bonita não acredita na noção ancestral de que é preciso um homem nem pensa que o amor se mede pela aniquilação de si. Uma mulher bonita sabe que, se amar tudo o que é, poderá amar-te mais.
É difícil namorar com uma mulher bonita.
Uma mulher bonita não vai importar-se se chegar atrasada aos compromissos. Ou, se se importar, vai levantar-se duas horas mais cedo para garantir que tratou de si. Vai ligar a algumas coisas fúteis, como a cor do verniz e o tamanho dos saltos. Mas, porque se sabe bonita, vai descartar a futilidade muitas vezes. Ao lado de uma mulher bonita, precisarás de saber falar sobre emoções e sentimentos... mas também precisarás de saber dar atenção ao mundo, aos problemas sociais, aos acontecimentos da actualidade. Com algumas destas mulheres, darás por ti a falar de política, economia, futebol... irás espantar-te com a quantidade de conteúdo interessante que se gera nos meandros do pensamento deste tipo de mulher.
Namorar com uma mulher bonita vai exigir que vivas segundo um padrão de decência acima da média. Este é o tipo de mulher que não vai aceitar que mudes de ideias de um segundo para o outro e que vai sentir-se enjoada com a ideia de que estás a fazer algo que não queres apenas para lhe agradar. As mulheres bonitas sabem que o são e não precisam que lhes façam favores para as conquistarem. Não gostam que as objectifiquem e as reduzam à aparência nem que as façam passar por parvas, num momento ou outro. Para serem agradadas, exigirão de ti a única coisa que te foi negada incessantemente ao longo da vida: que sejas tu mesmo. E, se te parece simples, és um idiota! Não há nada mais difícil do que deixar cair a máscara... principalmente ao lado de quem é visivelmente tão perfeito. Mas uma mulher bonita vai estar farta da falsidade. Vai estar farta da máscara. Vai querer o teu lado feio. Vai querer saber os teus gostos. Vai querer que digas quando não te apetecer fazer algo que ela gosta.
É difícil namorar com uma mulher bonita.
E é impossível namorar com uma mulher feia.
Não há mulheres feias.
Por isso, se a tua namorada não se sente uma mulher bonita, provavelmente não devias estar com ela. Ela merece alguém que a faça saber quão bonita é. Porque quando ela souber... ah! Quando ela souber vai ser difícil namorar com ela... mas vai valer cada segundo!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



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