terça-feira, 26 de maio de 2020

O segundo que precede a loucura




Abraças-me. A máquina de lavar louça está ligada e ouve-se o som contínuo e persistente do seu uso. Os carros passam e os seus pneus cantam, levantando a água das bermas. O vento agita o saco de plástico que a vizinha tem no estendal. E o relógio da cozinha faz o sonoro tique-taque, que já se tornou mudo do hábito.

O teu coração tem o ritmo das metrópoles. E a respiração é densa e produz um sopro leve, de mel auditivo. A chuva bate nos vidros. Intensa. E a gata caminha pela casa, tocando levemente com as pontas das unhas no soalho, com uma percussão leve e despreocupada.

Fico agarrada a ti. Junto à parede de azulejos floridos. Abraças-me e fico agarrada a ti. Como se não importasse nem a louça, nem a hora, nem a chuva ou o vento, nem mesmo a gata ou o bater do teu coração. Abraças-me e nada importa além do abraço.

Bebo dos sons. Não me largues. Não me largues. Não me largues. O espaço do silêncio, contigo, parece-me maior. Povoado deste compasso. Não me largues.

Mas a máquina de lavar louça pára. E a estrada esvazia-se de carros. A brisa não chega nem para agitar os dentes-de-leão e o sol brilha. Percebo que o relógio parou. É sempre a mesma hora, agora. E não ouço o teu coração ou a respiração leve. Será que morreste? Será que morri? Será que morremos?

Percebo que tenho os dedos nos braços. Os dedos nos meus braços. Os meus dedos nos meus braços. E abro os olhos. Estou a morrer. Tenho sede de sons. Estou a morrer. O silêncio cria vácuo nos tímpanos e na alma.

Olho o relógio parado. Reclamo, não do mas com o relógio parado. Se o tempo ia parar, podia ter parado quando me abraçaste. Podia ter parado aí. Agora não. Agora não.

Abraçaste-me? Foi real? Abraçaste-me! Eu lembro-me. Estava a chover. Havia carros na rua. Flores nos azulejos. E o relógio. Tic-tac. Tic-tac.

O relógio parou.

Há o silêncio. E os meus dedos sós, nos meus braços carentes. Subo pelas ervas daninhas dos azulejos e sento-me no ponteiro parado. Ouve…

Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me. Abraça-me…





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terça-feira, 19 de maio de 2020

Uma árvore


Fotografia de Analua Zoé


Nasces. Cortam uma árvore para te fazer o berço.

Cresces. Cortam uma árvore para te fazer um baloiço.

Vais para a escola. Cortam uma árvore para fazer a tua secretária. Outra para fazer a tua cadeira. Uma centena para fazer os teus lápis. Um milhar para fazer os teus cadernos e livros.

Chegas a adulto. Aprendes a conduzir. Cortaram uma floresta para abrir a estrada que atravessas. Derrubam uma segunda para construir a tua urbanização.

Conheces o amor da tua vida e casas com ela. Nasce o primeiro filho.

Cortas uma árvore para lhe fazer o berço.

Cortas uma árvore para lhe fazer o baloiço.

Leva-lo à escola onde secretárias, cadernos, cadeiras e lápis são árvores mortas.

E, um dia, morres também. E a madeira do teu caixão foi outra árvore cortada.


Ao longo dessa vida, foi na árvore que penduraram o teu baloiço e o do teu filho. E foi a árvore que recebeu as brincadeiras dos teus intervalos. E foi nela que cravaste as tuas iniciais e as da mulher com quem virias a casar. 
Debaixo dessa árvore, fizeste piqueniques com a tua família e puseste o teu filho às cavalitas para que atingisse a maçã e comesse, alegre, o fruto da terra. Na sua sombra, bebeste o aroma das flores da primavera e o adocicado mel veraneante da frescura. 
Curaste as tuas doenças com os seus compostos. Regaste refeições com os seus frutos pisados. Respiraste-lhe o ar.

Nasces. Cortam uma árvore para te fazer o berço.

E és feito de um sem fim de momentos-árvore onde, vivas ou mortas, te servem ao longo de toda a vida.


Aprendes que és seu dono, sem perceberes que és seu filho. E deixas. Que cortem.
E ela perdoa-te. Abraça-te. E, por fim, baixa contigo à terra.


Porque a árvore não conhece a maldade. Apenas o amor.






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terça-feira, 12 de maio de 2020

Ser velho (quando se é novo)


Fotografia de Analua Zoé

Ele disse-me que ainda não queria morrer. E eu disse que não me importava. Tínhamos quase a mesma idade. Ele era novo e eu era velha. Era aí que residia a diferença.

É difícil ser velho. Principalmente quando ainda se é novo. O tempo alonga-se e cabem muitos dias num dia só. Cabem muitas vidas neles. Como se os sulcos na alma fossem rugas na pele e deixassem marcados anos-luz de vida. Como se esses mesmos sulcos fossem margens e no seu centro corressem rios, feitos de lágrimas salobras, solitárias e sós.

Ser velho, quando se é novo não causa cansaço mas desprendimento. Não existe o desnorteio de não saber para onde ir. Repleta de certos e de errados mas consciente de ambos, a alma sabe para onde se dirige e vai. Chega-se mais depressa, embora com passos mais lentos… porque se sabe o destino e não se busca a aventura dos labirintos que ficam nos trilhos mais demorados.

Ele disse-me que ainda não queria morrer. E eu disse que não me importava. Tínhamos quase a mesma idade. Ele era novo e eu era velha. Era aí que residia a diferença. Ele media a vida em momentos e eu media-a em essência. E ele perguntava “e se”, onde já não tinha espaço para interrogações.

Ser velho, quando se é novo faz com que as perguntas se substituam pela compreensão de que não existem respostas certas. A vida não é matemática, como querem fazer-nos crer. A vida é uma sucessão de incompreensões, que passa sem que entendamos metade e que nos é mais doce quando paramos de lutar contra ela.

Ser velho significa também isso. Parar de lutar contra a vida. Ir no seu embalo. Tentar ajustar as velas ao vento, apenas para que ela não fuja da rota da nossa consciência e dos nossos princípios.

Indo com a vida, descobrimos que ela se dá a quem se deixa ir. E o medo da morte desaparece porque, de repente, os sonhos foram cumpridos. Amámos, fomos amados, escrevemos, publicámos, ouvimos canções com palavras nossas e subimos a palcos com várias peles. Honrámos os Deuses que tínhamos de honrar, plantámos as plantas que tínhamos de plantar, colhemos os frutos que tínhamos de colher. E, depois disto, temer a morte parece ridículo. Porque ainda que nos sobrem experiências para viver, em essência sabemos que foi perfeito.

E, claro, disse-lhe eu, se houver mais, vou tentar aproveitar cada momento. Mas foi pleno o suficiente para que não haja “e ses”. Estou em paz comigo. Ele respeitou mas não entendeu. Mais difícil do que ser velho, sendo novo é entender o velho-novo quando se é novo-novo.

Ele disse-me que ainda não queria morrer. E eu disse que não me importava. Tínhamos quase a mesma idade. Ele era novo e eu era velha. De repente, quando se é velho, por mais que queiramos viver, já não é muito importante estar vivo. Mas, Deuses, eu também gostava de ter o amanhã para poder sentir, por mais um dia, a paz de poder morrer agora e estar tudo bem.





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terça-feira, 5 de maio de 2020

Os meus vazios


Fotografia de Mauro Hilário


Libertei-me do medo e descobri que, sem ele, existe muito vazio em mim.

Se ainda tivesse medo, quando dele me libertei, talvez tivesse temido esse vazio. Mas, sem as suas grilhetas, descobri que um espaço vazio não é mais do que um espaço de oportunidade, que podemos preencher como bem entendermos.

Podia ter preenchido o meu vazio de conceitos, mas preenchi-o de verdades. Porque, ausente em mim, o medo já não me impelia a querer as mentiras suaves, bendizentes e amenas ou a subjugar-me aos juízos e noções consensuais da sociedade. Claro que, para o fazer, precisei de me encher de luz e, por vezes, a luz segregou sombras sobre os vazios do meu peito.

Sombras. Ainda bem. Gostei delas. Porque foi na sombra que pude colocar, no centro desse vazio, uma dose de amor inesperada. Descobri que estava preparada para sentir e para me dar sem regras. Eu. Mas a sociedade não. Então, aproveitei as sombras. Aproveitei-as e descobri que alguns sentimentos são melhores assim: vividos na penumbra. Apercebi-me, neste processo, de que as pessoas partilham demasiado da sua intimidade com o mundo e que é isso que a estraga, que a destrói, que nos deixa inevitavelmente sós no meio de tanta gente.

Bebi das palavras dos outros e percebi o amargo que elas têm. Descobri que o meu vazio preenchido de segredos, na ausência do medo, era apenas mel. Prefiro as palavras que não digo a ninguém e a forma como elas são sementes para tantas florestas em mim. Gosto de passear por essas florestas interiores, onde a seiva das árvores é mar e o som das aves é verso. A ausência do medo foi o que me permitiu desbravá-las, sem terror de me perder em mim. Descobri que, entre as minhas células, existem flores silvestres e dons. Descobri que, no meio dos meus órgãos vitais, algumas ambições são morte e loucura. E descobri que a aptidão para a generosidade não se prende - como tantas vezes me quiseram fazer crer, alimentando-se dos medos que eu tinha para me subverter - com a brandura dos gestos visíveis mas com o furtivo talento de dar em segredo.

A falta do medo em mim fez-me recordar da gaveta da cama, para onde tinha atirado pensamentos de insónia, para que não me incomodassem. Sem os antigos pudores, dei por mim a abrir a gaveta e descobri que apenas sobrava pó. Libertei o fantasma antigo de amores que não souberam amar-me como eu amei. E vasculhei, por entre papéis, apenas para descobrir que a única dívida que me faltou saldar foi para comigo mesma. Comecei a edificar as primeiras bases sangrentas do perdão, onde pretendo, mais tarde, alicerçar muito futuro.

Libertei-me do medo e descobri que, sem ele, existe muito vazio em mim.

Se ainda tivesse medo, quando dele me libertei, talvez tivesse temido esse vazio. Com medo, o vazio é intolerável: traz saudade na forma de fantasmas e solidão com garras que rasgam a pele. Mas, sem medo, o vazio é apenas um espaço aberto à espera do que vem depois. Iluminei-o e vi-lhe as sombras projetadas. Desenhei, com as minhas mãos, as silhuetas que quis. Aceitei que também eu era luz, sombra e vazio.

Neste jogo de luz e sombra, percebi que libertar o medo não bastava. Chamei-o ao vazio de mim. Abracei-o até lhe estilhaçar os ossos. Beijei-o até o sufocar. Matei-o. Assassina de temores e receios, apaixonei-me então pelos meus vazios e, por fim, senti-me gente.





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