terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Balanço

 


 

Oscila. É mesmo assim. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontece e mãos que não largam as cordas.

 

Balanço.

 

Mãos ocasionais nas costas. Que empurram. Que elevam. Ou magoam. Ou derrubam.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

 

Despedi-me do negro dos tetos e das paredes húmidas. Do ninho. Dos pequenos mamíferos que roíam rodapés. Havia paredes com o meu nome ao largo dos eucaliptos. Mandei abaixo paredes e selei portas. Pintei tudo de branco e descobri o covil que havia de ser um lar. Lá, onde lendas urbanas aterram, de asas abertas; abri os meus próprios trilhos. 

Era uma emoção que me desabotoava o mundo ao mesmo tempo que o mundo encerrava com o aviso de uma pandemia. E havia um pouco de ruído interno nos meus órgãos, ao assinar o papel que firmava de meu aquele pequeno espaço de vista verde. Sim. Havia. Ruído. Soava. Bem dentro dos pulmões.

 

Não era Covid. Era só emoção.

 

O cheiro da tinta e os móveis amontoados junto à parede. Salas inteiras de narrativa fílmica. Gente que trazia promessas, junto com almas pardacentas, desamor e palavras moles. Segredos dispersos que me drenavam a conta bancária e a sanidade mental. O retorno inesperado do desalento, sob o teto onde, tantos anos anntes, a depressão nascera. E o pré-aviso do adeus, adiado com pedidos e orações e justificado em muitas horas de mãos agarradinhas, junto à almofada, contando histórias que já tinham sido contadas. Todas as noites. Todas. Menos uma. Aquela onde as estrelas caíram junto ao lago e as apanhei, para as guardar nos bolsos. Meses de clausura no inferno e uma noite de paraíso cantando na voz das constelações. Um aperto dentro do peito, que ora doía, ora vibrava.

 

Não era Covid. Era só expetativa.

 

O retorno. Três pinheiros sediados na frente da marquise adornada com esperanças infundadas. A incapacidade de gerir a caruma acumulada nos anos e o salto para a atividade física como se ela fosse um templo. O culto da arte do não pensar. E o pensamento que me perseguia, quando eu corria à velocidade de 7.4 com inclinação 2. 

O pensamento apanha-nos sempre. Mas a caruma é mais leve quando o passo é apressado, ainda que, de repente, na corrida contra as marés do tempo, nos encontremos com a realidade da respiração difícil. Não conseguir respirar. Ou conseguir… mas a custo.

 

Não era Covid. Era só motivação.

 

O adeus. Aquele. O do pré-aviso já feito. Frio incontrolável de mãos pousadas no medo que se eterniza quando se eterniza também a história do amor pela incapacidade de criação de histórias que se acrescentem às demais. O tempo esgota.

E o vazio. E a solidão. E a perda. E o luto. E trazermos 90 anos de histórias connosco, tentando encaixá-las à força nos nossos 31, como se coubessem, para que não morram também.

Uma dor que pontua o peito. Mas que se estende até todas as frestas, arestas e superfícies do eu, até não haver parte sadia em nós.

 

Não era Covid. Era só saudade.

 

A noite. Um coração que acelera. Justificativas no fundo do copo do vinho quente, que se bebe. Palavras caladas num espaço deserto que é meu. Palavras em catadupa, a pintalgar os meus poemas, que ninguém entende. E ainda bem. Cartas viradas, sem remetente. Querido futuro…

O tempo dos lírios. Um frio invernal nas minhas noites quentes. E, algures, uma respiração que falha. Descompassa. Explode. Uma respiração que falha.

 

Não é Covid. Garanto. Não é.

 

É o balanço. Constante. Oscila. Para a frente. Para trás. Promessa do voo que não acontecia e mãos que não largavam as cordas. A escolha entre o medo e o céu.

 

Balanço. Para a frente. Para trás. Está na hora.

 

Largo.

 

Agora largo. Não sei se com fé nas asas ou na maciez do solo.

 

Sustenho a respiração.

 

Não é Covid. É esperança no futuro.


Marina Ferraz



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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Poemas paridos

 



Eu não nasci. Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Monstro. A minha mãe não sabia que, no parto, expelia para o mundo um ser diferente. Até o meu pai, que vê defeito em tudo, me achou perfeitinha. Tinha os dedinhos todos nas mãos e os dedinhos todos nos pés.

 

Longe deles, esses seres que me fizeram entre luz e trevas, estava a compreensão de que, dentro do meu cérebro pequeno e ainda subdesenvolvido, as correntes elétricas passariam de forma distinta, em tempestades agrestes de relâmpago e trovão simultâneos. Longe da mente desses amantes que me geraram numa noite de outono, estava a compreensão de que eu não poderia ser, em pleno, uma menina como as outras. Essas que nasciam, como as pessoas e que diziam ter nascido ao longo de toda a vida, nessa condição de gente.

 

Quem nasce são as pessoas. E eu sou bicho. Como sou bicho - monstro - eu fui parida. Vim ao mundo a ferros e colei a placenta da minha mãe à carne. Esvaiu-se em sangue, tolerando a dor do inimaginável para me ter. Sentiu o peso anémico do mundo nas pernas. E o peso desesperado da insónia quando, durante meses me carregou sobre o peito, para que dormisse. Eu fui a primeira força imobilizadora que ela conheceu. Uma espécie de paralisia do sono muito própria, com tentáculos manipuladores construídos de choro e birra.

 

A minha mãe foi, não duvido nem por um instante, a primeira vítima do monstro que eu sou. Mas também foi uma das tutoras mais presentes em todos os momentos da minha vida e, nas lides do amor, o perdão é fácil. Criou-me, sem rancor pela dor causada no parto e foi sem rancor que me acompanhou na minha própria mágoa, quando em menina, jovem e adulta continuei a ser monstro.

 

Os meus horizontes sempre foram demasiado distantes. As minhas estradas demasiado longas. As minhas pernas demasiado curtas. E a minha mente demasiado. Toda feita de excessos, eu agucei a lâmina dos meus dedos, cortando aqui e ali tudo o que me parecia errado, até não haver mais nada que se cortasse senão o vazio e a solidão que, por serem cortantes, não podem cortar-se.

 

Eu não nasci. Em alguns dias gostava de ter nascido. Como nascem as pessoas que só querem abrir os pulmões, respirar, seguir atrás das outras, casar, ter filhos, ter netos, morrer tranquilas e acreditar numa vida eterna. Mas eu não nasci. E também não verguei. Selvagem, louca, cheia de vazios, eu fui sempre a manchinha persistente no cristal. O traço fora de contexto. A linha sem sentido do poema. O acorde desafinado da canção.

 

Nunca desejei o mal e sempre soube bem quem queria ser. Mas o universo tinha outro plano para mim. Este. De me prender à racionalidade, ao raciocínio e às folhas de papel.

 

Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Tornam-me os dias difíceis de aceitar e deixam-me afundar no meu mar de emoções pouco sadias. Há quem conte conquistas, eu conto textos. Há quem conte amores, eu conto histórias de gente que feri. Há quem conte que nasceu.

 

Eu não nasci. O mundo pariu-me. E não me pariu simplesmente, embora me tenha parido só. Pariu-me para causar sofrimento. Pariu-me para ser monstro e disse-mo, colocando-me no ventre da minha mãe e fazendo dela a primeira vítima do meu caos.

 

O mundo pariu-me para causar sofrimento e tenho medo dos passos que dou fora das linhas coordenadamente alinhadas da tela do computador. Porque quando o mundo me pariu para causar sofrimento, não se lembrou do papel imenso do amor. Não se lembrou de que a bondade é aço. Não se lembrou de que o perdão é espada. O mundo pariu-me. Mas quem me criou não foi o mundo. Foi a minha mãe. E ela criou-me para amar.

 

Então, ainda que tenha sido parida e condenada a ser caos num mundo confuso, continuei a usar a bandeira do amor. Um amor caótico e obscuro, onde multiplico todos os nadas do mundo por infinitos de mim, sempre com resultados nulos.

 

Faço-me mãe nas folhas. Lisas, brancas e frias, as folhas que me recebem não me afagam. Rasgam-me por dentro, como em tempos eu fiz. Dormem no meu peito, provocando-me insónias. São incompreendidas pelo mundo, embora a olho nu sejam palavras normais. Entendo a dor da minha mãe e o seu amor, olhando os meus versos. Entendo como é possível que, olhando para mim, ela não encontre os traços bravios que me fazem monstro. Também os meus poemas paridos me parecem exemplares. Quando olho os meus poemas paridos, eles nunca parecem paridos. Parecem simplesmente poemas. Parecem simplesmente meus.

 

E não são.


Marina Ferraz



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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Promoção da Semana

 

 Fotografia de Michael Gaida


Eu já fui uma dessas pessoas. Dessas que acompanham folhetos e promoções. Que visitam sites de antevisão. Que elaboram listas de dois quilómetros, catalogadas por hipermercado e secção, definindo a rota dentro e entre estabelecimentos, de forma a garantir a eficácia e a economia máxima.

 

A poupança acontece.

 

À medida que os super e hipermercados, com os seus preços inflacionados somam os lucros de milhões, nós congratulamo-nos pelos vinte ou trinta euros que poupámos. Ou que teríamos poupado – eventualmente – se não os tivéssemos gasto no combustível enquanto dirigíamos de um centro comercial para o próximo.

 

A poupança acontece.

 

Por acontecer, eu já fui uma dessas pessoas que faz do linear uma trincheira e que desenha círculos em torno das imagens promocionais mais apelativas. Eu já fui uma dessas pessoas que sabe em que dia começa a promoção, em que dia termina e qual o melhor dia para ir às compras considerando os folhetos, os cupões, os talões, as mensagens, os emails e a ofertas especiais de aniversário da marca, do meu aniversário, do Natal, do Ano Novo, do Dia da Mãe, do Pai, do Primo, do Vizinho e do Estranho Que Podemos Vir a Conhecer Daqui a Uma Década.

 

Já fui uma dessas pessoas que conhece as datas das sextas-feiras mais negras e das segundas-feiras mais digitais e dos finais de semana mais cor-de-rosa.

 

A poupança acontece.

 

Carrinhos cheios de produtos carregam-se em sacos. Riscam-se, aqui e ali, produtos listados. Discute-se sobre se devemos levar o produto com o melhor preço, o produto com a melhor relação de qualidade-preço, o produto com a melhor relação de quantidade-preço ou o produto com a melhor relação de vida saudável-preço.

 

De repente, tudo é um mar de dúvidas que se estendem até à caixa para o feliz momento da poupança, que afinal não é tão feliz, quando nos apercebemos de que o gasto é efetivo e a necessidade pela maioria dos produtos que fazem “bip” nas mãos da fatigada operadora de caixa são desnecessários.

 

Olha-se o talão, à espera de ver validado o sentimento. Esse. O da economia. Recebe-se dele, com maior agrado, o valor que deveríamos ter pago e onde a soma comprova que tudo valeu a pena. E, vejam bem! Saíram novos talões para que voltemos a poupar depois. Vejam bem! Ainda por cima, também podemos poupar no combustível mais caro das gasolineiras mais caras, uns quantos cêntimos por litro!

 

O esforço empregue parece valer a pena. Cria-se um ciclo vicioso, que se estende, que se repete. Lista atrás de lista, sempre de olhos postos na ideia do gasto que não se quer ter. Sempre dizendo o mesmo:

 

A poupança acontece.

 

Sim. A poupança acontece. Mas é cara. O preço dela nunca baixa e não existe promoção que lhe valha. Custa tempo. Custa paz de espírito. Custa, em alguns casos, a vida.

 

Custa. A. Vida.

 

Deixei de estar disposta a pagar a vida pela poupança. Deixei-me de folhetos. Deixei-me de listas. Deixei-me de análises caóticas.

 

Quando largamos, é fácil compreender que não vale a pena. A nossa paz é um preço alto demais e nem a soma de todas as promoções anuais me paga os anos de vida perdidos no processo.

 

No folheto dos meus dias, a única promoção da semana que me interessa agora é ser feliz. A luta por essa felicidade implica não ser essa pessoa que fui. E, é certo: não fazer essa gestão de economias não é uma rotina que me poupe gastos, mas poupa-me o desgaste.

 

O preço da poupança é demasiado alto e não o quero pagar.

 

E sim, eu sei, há qualquer coisa em promoção algures que me faria poupar imenso. Sim, sim… eu conheço a história.

 

Mas, olhem, sabem que mais?! Não me digam. Poupem-me! Estou ocupada com a promoção do meu bem-estar.


Marina Ferraz



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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Colisão

 



 Fotografia de Analua Zoé


Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase dita, no rescaldo do dia que tinha passado, enquanto despia a pele e se deixava ser somente alma, no centro da sala fria.

 

Havia muitas histórias nas impressões digitais da pele que despia. Todas essas histórias, criadas pelo excesso, pareciam vazias quando o dia terminava e sobrava solidão. O excesso de amor, de desejo, de vontade de sorver o ar… tudo se transfigurava em vazio.

 

Por um lado, admitia: era bom ser alma! Chegar a casa, descalçar as normas sociais, despir a pele, atirar os órgãos para a cadeira da desarrumação… e deixar o silêncio inebriante regar as arestas tortas do pensamento. Por uns momentos. Antes de o silêncio gritar. Um grito agudo, cortante, compulsivo. Um grito que trazia vozes ancestrais dos tempos remotos do mundo, acordando ossos despidos que forram as capelas ermas e o chão das metrópoles.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que deixava de fazer sentido quando a pele, despida e largada num canto, servia apenas de brinquedo solto ao gato irrequieto, que preferia sempre mordiscar o mindinho da mão direita, vá-se lá saber porquê.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, ela fitava a cadeira e todos os seus órgãos vitais. O coração, meio apodrecido dos desgostos, era o eterno guerreiro que contava histórias aos outros, enquanto ela aproveitava a condição de ser livre. Nessa noite, a história que ele contava era bonita. Efémera. Mas bonita. Sobre copos de vinho quentes no Inverno quedado e olhos fechados no sentir de outras formas de calor. Nessa noite, a história que ele contava, fazia o cérebro contrafeito e irrequieto saltar da cadeira e correr de um lado para o outro, querendo encontrar a linha da meta para ter uma resposta concreta para todos os seus equívocos. E o fígado arrotava, levando a mão à boca e pedindo perdão pelo incómodo. E os pulmões bebiam das palavras do coração como se fossem ar. E um sistema digestivo inteiro revolvia, com fome de voltar ao passado.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, a alma sabia que despir-se de corpo era atroz. Os órgãos pareciam sempre meio perdidos, ainda que a pele se divertisse, estendendo o mindinho direito ao gato, que só parava de roê-lo quando a inquietude do cérebro chamava a sua atenção.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que, enquanto se secava, a alma repetia na sua cabeça e que a levava até ao tempo em que descobrira que a perfeição é tão imperfeita quanto a imperfeição é perfeita. Dependia das perguntas essenciais. Quem? Quando? Onde? Porquê?

 

Mas ela estava cansada. Cansada dos ponteiros. Cansada da solidão. Cansada do silêncio. Cansada do grito que ainda soava, desse silêncio só, todo cheio de promessas e de memórias.

 

Agarrou os órgãos um a um e vestiu a pele. Olhou ao espelho. Vestida de corpo não parecia uma alma que queria ser perfeita mas apenas humana. Uma camuflagem grosseira que lhe permitia sair à rua e fingir que era como os outros.

 

Despediu-se dos órgãos, para que adormecessem. E da pele, para que se acalmasse. E do gato, que continuava a tentar roer o mindinho direito, agora vestido e carnudo.

 

Com os vasos lacrimais perfeitamente encaixados nos olhos, culminando no espaço onde as pálpebras se encontram, chorou. Estava cansada. Tão, tão cansada. Da perfeição e do resto. Deixou a morte colidir com a vida. Deixou a vida colidir com a morte. Da colisão nasceu o caos imperfeito da noite.

 

Depositou-se, assim vestida de corpo, na alcova. Sonhou que era imperfeita e que, ainda assim, lhe queriam bem.

 

Acordaria na manhã seguinte. Para tentar ser perfeita. Outra vez.

 

Marina Ferraz



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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Louva-a-deus

 


O louva-a-deus pousou numa folha que se agita. O vento sopra e dizem que é advento. Sou mais crente da sacralidade de ventos do que de adventos e coloco mais fé na Natureza do que nos homens, ainda que esses homens sejam profetas. Mesmo assim, quando o vento sopra e mo dizem – que é advento – toda a minha formação de berço começa, aos poucos, a agitar-se no meu peito pagão.

 

Há gente que louva a deus. Escrevendo deus com maiúscula, como se fosse uno. Mas é nas filas para as lojas do centro comercial que se celebra a dádiva. Com sacos amontoados entre mãos, dividindo o peso. Dois sacos de um lado, dois sacos do outro e o peso da alma a meio. É tempo de ter as mãos cheias. Demasiado cheias para se unir em oração ou para dar carinho ou para estender moeda que sirva de esmola a alguém que tem fome.

 

O prazer divino do nascimento do senhor – palavra que frequentemente também escrevem em maiúscula – é celebrada na mesa da consoada, com o recheio de prateleiras integrais do supermercado. Não falta o bacalhau – cujo preço, já ridículo, sobe sempre – nem a couve portuguesa – que, entretanto, já esgotou vinte vezes numa estratégia comercial que continua a funcionar ao final de anos e anos de uso – nem as cinco variedades de bolo – incluindo aquela que sobra sempre porque ninguém gosta de fruta cristalizada… mas é tradição – e ainda o pão e a broa e o vinho e o sumo e as bebidas digestivas.


Pela casa, começam a nascer homens de vermelho. Um deles dependura-se na inexistente chaminé da manjedoura e ameaça cair em cima do burro com o peso obeso do seu corpo de plástico. Lança-se a discussão irada sobre quem vai pôr o menino nas palhinhas e quando. Até que alguém ganha a discussão. E ninguém se fala durante três dias. Oportuno, até, esse silêncio familiar, para que se escutem melhor as canções de Natal que já passam na rádio, criando introspeção sobre temas tão importantes e pertinentes como a pessoa que deitou fora um coração no ano passado ou o facto de um Pai Natal voyeurista estar a vir para a cidade.

 

Há gente que louva a deus. Não falta ouvi-las louvar, na fila das compras. “Oh meu deus” isto; “Oh meu deus”, aquilo. Frase que precede ou é dita a par, frequentemente, com o seu ódio a macerar pelos outros. As pessoas detestam-se. Com toda a paz e amor do mundo, encafuam-se no mesmo espaço para tentarem ocupá-lo, conquistadoras implacáveis da última caixa de bombons ou do “eu sou primeiro” quando cruzam a linha de chegada da sua corrida pelos corredores e atingem a caixa em simultâneo.

 

O vento sopra e dizem que é advento. O vento arrasta as folhas e o advento arrasta a fé. Ambas de rojo pelo chão e muito mal tratadas. Antes que o advento acabe, os católicos terão certamente cedido a pelo menos quatro dos pecados mortais. Mas está tudo bem. É tempo de introspeção. De olhar para dentro. Essa coisa tantas vezes egoísta de ver o eu, sem se ver além de nós.


Algures, na mesma planta, muito menos consciente de si e muito mais consciente dos ventos, o louva-a-deus deixa-se mover na dança da brisa e camufla-se, verde com verde. Pausadamente convivendo com a realidade da vida, sem corridas nem pressas. Observando a Terra que gira e a noite que cai e o dia que nasce. E, como ele, nas minhas passagens junto às lojas sob as luzes de Natal que custam milhões de euros ao país, eu camuflo-me e vou reparando nos músicos desesperados e nos pedintes famintos que estendem a mão, ignorados como se fossem parte da paisagem.

 

O vento sopra e dizem que é advento. Sinto-me como a folha e a fé. Um bocadinho de rojo no chão. O meu Sol renasce no primeiro dia de Inverno. Penso que quero levantar-me cedo para o ver nascer. Sem sacos, sem luzes, sem bagagem e sem discussões.

 

Paro para escutar o violinista de rua durante alguns minutos, debaixo da estrela de luz. Deixo cair uma moeda a seus pés e vejo que ele me sorri, enquanto sigo com o vento.

 

O vento está frio. O advento está mais.


Marina Ferraz



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