terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Duelo

 


“Só se atiram pedras às árvores que dão fruto.” (Provérbio Africano)

 

 6 da manhã. Eram 6 da manhã quando acordei, saltando da cama para trabalhar, para me arranjar, para fazer malas. Estava a 1827 km de distância de Lisboa. Cerca de 1300 deles eram líquidos. Literalmente. Oceano Atlântico. O meu voo devia chegar pouco depois das 16 horas. Houve 4 atrasos. Saímos depois das 17 horas. Cheguei a Lisboa duas horas e meia depois. Uma hora e meia depois da chegada, já estava no palco do Campo Pequeno.

 

 As pessoas falam. O que as pessoas veem raramente é uma imagem completa. É muito fácil criticar essa imagem. Essa imagem que é, não se enganem, apenas o culminar de mil imagens ocultas. Por estarem ocultas, essas imagens não importam. Então, falar é fácil. A crítica parece natural. Escorre pelos cantos dos lábios. Pessoas sedentas da sua própria opinião, enaltecendo-a e partilhando-a desenfreadamente, no desejo de que conte para alguma coisa. Mas essa opinião?! Tão frequentemente vazia! Tão escassa de conteúdo! Não serve para nada. A agressão (quase sempre) diz mais sobre os agressores do que sobre os alvos da agressão. E esvaece. Dissipa. Deixa um cheiro pestilento.

 

 Ontem assisti, num lugar de destaque, a algo que me emocionou. Goste-se ou não se goste, reuniram-se em sala 7 mil pessoas para um evento. Goste-se ou não se goste, reuniram-se online mais de 300 mil pessoas. Goste-se ou não se goste, houve apresentadores, comédia, concertos, lutas e um combate. Goste-se ou não se goste, tudo isto surgiu por conta de um homem que muitos afirmam menino e que, dos seus 25 anos de vida, ousou sonhar alto. Goste-se ou não se goste, assistiu-se a um momento que deixou os presentes de coração na mão. Goste-se ou não se goste, viu-se o menino perder o combate. Goste-se ou não se goste, viu-se que o público ainda gritava o seu nome e que os apresentadores ainda enalteciam a sua coragem. Nasceram comentários desse “goste-se ou não se goste”.

  

Goste-se ou não se goste, acaba-se por ceder à curiosidade de ler as palavras dos outros. Umas de alento, outras de tom cómico e jocoso. Mas tão poucas. E, depois… umas de crítica, umas de gozo, umas de ataque… a maioria de uma maldade que – perdoem-me a inocência – julgo quase inesperada. Tive uma avó – perdoem-me a enésima menção – que me ensinou que ser-se bom e gentil é importante. Então, o expectável é, por vezes, inesperado para mim… As palavras são duras. As palavras são importantes. As palavras são arma. As pessoas adoram balas perdidas. E os outros? Que outros?!

 

Algures no guião (que – sim – estava num teleponto!), o meu co-host perguntou-me se eu não era mais das palavras e respondi que “cada um combate como pode”. Eu não queria escrever este texto. Mas houve algo nas 6 rondas de um duelo que me inspirou a manter elevadas as mãos que escrevem… sei que a escrita é a minha luva. E não vou desistir.

 

Então, se todos gostam dos golpes baixos atrás da proteção luminosa dos ecrãs, não encontro real motivo para não soltar as palavras nesse mar-teia, de navegação fácil. Principalmente quando o meu lugar de fala é de quem às 6 da manhã preparava uma viagem de 1827 km para estar num palco a falar para 7 mil pessoas ao vivo e 300 mil pessoas online, para assistir à coragem de quem fez do ringue um palco muito próprio, colocando uma modalidade quase esquecida nas bocas de um país inteiro. Goste-se ou não se goste, aqui estou. E é tão simples o que tenho para dizer, depois desta introdução longa que, goste-se ou não se goste, escrevi…

 

 Acontece que para se perder um combate é preciso lutar. E para errar uma fala é preciso falar. E que para ter um momento menos bom no ringue é preciso entrar nele. E que para ter um momento menos engraçado num palco é preciso atuar e enfrentar a multidão e as câmaras.

 

 Há pessoas que nunca erram. Que nunca gaguejam. Que nunca falham uma palavra. Que nunca levam um soco. Que nunca perdem um combate. Que nunca se enganam. Que nunca têm olheiras. Que nunca se desorientam. Que nunca avançam cedo demais. Que nunca desistem a tempo. Há pessoas assim.

 

A todas as outras: Parabéns.


Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Fachada

 


Tenho notado. Principalmente ao viajar, ainda que tenha a certeza de que também acontece à minha porta. As pessoas cuidam dos muros. Das fachadas. Raspam a tinta. Alisam o cimento. Lixam-no cuidadosamente. Pintam. Vão ao pormenor nos cantos. Desenham listras coloridas. Têm o rosto ausente. Focado. Olhos postos na tarefa. Ocasionalmente limpam a testa com as costas da mão, deixando que, depois, se quede na anca. Observam. Tiram conclusões. Continuam.

 

Por fora, são casas perfeitas. Apetece viver nelas. Mas ninguém sabe. Ninguém pode imaginar. Como estarão por dentro?

 

Gosto de imaginar que estas casas sobejamente cuidadas no exterior têm paredes interiores pintadas e sem rachas. Que não acumulam humidade negra nos cantos das paredes e nos tetos. Que não cheiram a mofo. Que estão sempre limpas e que o ar parece mais puro no seu interior. Gosto de pensar que as famílias que vivem nelas nunca têm discussões, que nunca ninguém é alvo de abuso ou agressão. Que ainda se sentam, à moda antiga, junto da lareira – que, para mim, estas casas têm lareira – e contam histórias sobre a perfeição dentro de portas.

 

Logo vem a voz quente do Francisco José, guardada nos discos poeirentos da minha avó (ou seriam cassetes?!?), dizendo “só nós dois é que sabemos”. E, no caso, só o senhor de lixa na mão, esfregando o muro sabe o que vai dentro da parede que pinta para os outros.

 

Dentro das casas pintadas também se sofre e também morre gente. Também se parte louça. Também se sujam os vidros e o chão. Também se acumula gordura intransigente nos cantos do forno. Também há isolamento mal feito que deixa entrar frio e calor, tornando verões e invernos desconfortáveis.

 

Gosto de pensar que o mesmo senhor que agora lixa a parede, limpa a testa com as costas da mão e as põe na anca observando o trabalho feito, também cuida do que fica dentro de portas… E quero mesmo acreditar nesse pensamento… mas… vocês acreditam?

 

Penso que a vida possa ter cuidado do meu cinismo com a mesma mestria com que o senhor cuida da fachada da casa. Certamente lixou-me. Porque vejo o cuidado com muros e paredes exteriores e penso sempre que é só por fora. Só para exibir. Só para os outros… Como a maioria dos sorrisos. Como a maioria da riqueza. Como a maioria da beleza. Como a maioria dos “bem, e tu?”.

 

Hoje, não vou pôr maquilhagem. Nem vou usar lentes de contacto. Vou pôr os óculos, que nem a graduação certa têm. Uma decisão que sei que não é permanente. Mas hoje. Hoje, vou a um museu. Vou almoçar comida chinesa porque me apetece uma sopa quentinha. Vou experimentar perfumes artesanais. Vou caminhar junto ao mar. Vou subir a montanha para ver o pôr-do-sol. Hoje, vou esquecer a fachada, o que os outros veem. Deixar que vejam a pele mal cuidada e a roupa larga que foi tirada da mala com os olhos fechados, um mais do que o outro. E vou cuidar-me por dentro, pedindo à vida que me deixe ao leme por um dia.

 

Eu sei. A vida mal para para limpar o suor da testa e certamente vai continuar os trabalhos. Mas pode lixar-me amanhã…

 

Hoje vou esquecer a fachada. Cuidar-me. Por dentro.


Marina Ferraz




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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Mian (e tantos outros)

 

Imagem de Viktor_Laszlo

Vinha do Paquistão. Não direto. Viria, talvez, agora, do Rato. Não demorou a chegar. Enganou-se na rua mas, mesmo assim, parou a 100 metros do lugar onde eu estava. Descia a pé, para vir ter comigo e eu já subia para fazer o mesmo. Cumprimentou-me com simpatia, chamando-me Mariana, como tantos outros fazem, que é bastante raro que leiam o meu nome bem à primeira, mesmo quando falam a língua.

 

Depressa nos entendemos em inglês e entramos no carro. Perguntou-me de onde era. Disse-me de onde vinha. Perguntou-me o que fazia. Escrevo. E, aproveitando o semáforo vermelho, olhou para mim e disse: if you write, then you should write about what the Portuguese government is doing to immigrants. E eu pensei. Só por um segundinho de afago ao meu próprio ego. Não podia ter-se sentado melhor pessoa aqui.

 

Discorreu sobre a angústia. A mulher, no Paquistão, que queria ir ver este mês porque faz anos. A mãe, que mora em Paris, e que gostaria de visitar pelo Ano Novo. O documento de renovação da residência que lhe dizem, há vários meses, estar a ser feito. It’s not only me! We pay for it, we pay our taxes, Mariana. But they keep telling us the same. Não está pronto. Não têm pessoal suficiente para dar resposta a tantos pedidos. É preciso aguardar. Entretanto, não podem sair do país. Desgostoso, diz-me que, para construir um edifício, é preciso ter os materiais de construção e que Portugal abriu as instituições de apoio sem esses “materiais”, sem os recursos humanos, sem os conhecimentos para lidar com outras pessoas, com outras culturas e com as suas necessidades.

 

Tem saudades da mãe. Tem saudades da mulher. Mas não usa a palavra saudade. Diz que quer vê-las com uns olhos-de-mágoa-portuguesa. Como se já se tivesse nacionalizado emocionalmente nos conceitos que não vocaliza. Diz-me outra coisa. Que conduz 14 horas por dia para ganhar dinheiro que lhe permita sustentar a família, lá longe. Diz-me que gosta do que faz. Que gosta do país, principalmente quando está sol. Que não gosta de chuva e acha as casas portuguesas húmidas, a ponto de fazerem aquelas manchas pretas que alastram nas paredes e tetos. Que gosta das pessoas. E novamente refere as suas pessoas, com olhos-fado.

 

I want to see my wife. Diz-me. Pergunto se tem filhos. Não tem. A mulher engravidou, mas perdeu o bebé aos 3 meses. Quer muito tentar outra vez. E essa resposta vem no mesmo tom saudoso, sem que fale de saudade, faz espiral nos problemas que lhe povoam a mente. Volta a dizer que quer o documento de residência renovado, para poder ir vê-las. À mulher. À mãe. Sente-se prisioneiro no país que escolheu para viver, but I still have faith.

 

Não lhe digo que não tenha, embora os serviços sejam uma desgraça mesmo para quem nasceu e viveu cá toda a vida.

 

Ele repete. Someone should write about this. Prometi-lhe que o faria. Esta sou eu a fazê-lo.

 

Porque me deixou à porta de casa. Me sorriu com olhos-portugueses-cheios-de-saudade-da-família. Me disse. I wish you the best. E eu respondi o mesmo. Eu desejo o melhor a toda a gente. Como é que tantas entidades oficiais não o fazem? Como é que não desejam o melhor e, além disso, ainda dão o pior e se estão totalmente a cagar para as pessoas?

 

I will write about it.

 

Já dizia Desmond Tutu, “Ficar neutro perante a injustiça, é escolher o lado do opressor”.

 

Não serei mais uma gota de humidade a fazer alastrar o negro nas paredes de Mian.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Regras de trânsito

 


As estradas portuguesas estão ornamentadas com outdoors políticos. Esta é uma estratégia política que deverá ser conveniente para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, porque tira aos condutores a vontade – e a capacidade – de dormir. Estima-se que, numa inusual parceria, o PS, o PSD, o Chega, a Iniciativa Liberal, o PCP, o Bloco, o PAN e os outros já tenham evitado milhares de acidentes de viação causados pela sonolência. Passando por eles, fica-me sempre um impropério na ponta da língua. Dura pouco, é verdade, que os buracos na estrada estão também estrategicamente colocados para evitar rotinas de sono ao volante e amenizar ódios momentâneos.

Conduzir significa ter de olhar para quem quer conduzir-nos. Frequentemente para quem quer despistar-nos. Frequentemente para quem já nos capotou. Mas dizem todos que são estrada segura. E que é preciso limpar Portugal, como quem encontra uma casa em ruínas e diz que é preciso limpar as janelas. As causas somam-se por causa do que as causas dos outros fizeram. E não consigo deixar de pensar que é irónico. O mundo. A forma como, na beira da estrada, se prostituem cartazes. Justamente na beira da estrada. Quando as regras que seguimos, a conduzir, são tantas vezes antagónicas às que deveríamos seguir quando votamos.

Não existem dúvidas de que a circulação intercalada tem sido máxima do voto português, mas por mais democrática que seja a ideia do “agora passas tu, depois passo eu”, posso garantir que o D saltitão não está a ajudar o país. Também não o ajuda, na política pelo menos, abrandar nos sinais amarelos; parar nos sinais vermelhos (ou serão bandeiras?); ir à velocidade recomendada... ainda que seja um sinal de segurança rodoviária, tudo isto pode ser sinal de imprudência democrática. Anuir como o cachorrinho de bagageira é um convite para definir o trajeto do GPS rumo ao Tempo da Outra Senhora.

Em campanha, todo o político faz pisca, indicando para onde quer ir. À última da hora, quando surge a oportunidade, todos eles viram para um lado imprevisto. Há muito mais caos nas estradas dos nossos desgovernos do que em Lisboa, mesmo em hora de ponta. Porque não é uma hora de ponta, são quatro anos de pontos e nenhum político dá ponto sem nó.

Conduzindo e olhando para os cartazes, para as obras infinitas nas estradas e os polícias que servem de fiscal de obra, concluo que as estradas portuguesas são espelho do país, mas as regras de trânsito não são. E, depois do pisca à esquerda para passar por mais uma via impedida por obras municipais. Depois do pisca à direita para cumprir a lei rodoviária da circulação, a diferença torna-se ainda mais visível para mim. Posso garantir que também é muito pouco sadio, no caso da política, conduzir o mais à direita possível. E não deixo de pensar, com alguma tristeza, que vou ver desfeito o que a geração dos meus avós fez em nome da nossa liberdade.

Está um frio de rachar. No meu carro, olho à volta para garantir que posso entrar na estrada perpendicular. Vou cortar à esquerda e deixo passar uma senhora com um saco de compras pesado e um olhar mais pesado do que as compras. É suposto o cruzamento dar prioridade ao peão. Mas a cruz que fazemos no boletim só dá prioridade a quem ganha. E, claro, eles querem que votemos. Pedem-nos que votemos. Não nos conseguindo convencer em quantidade, tentam em frequência. E lá vamos nós para mais umas eleições antecipadas. Pelas estradas. Ornamentadas com cartazes. Ofuscadas pelos sorrisos brandos e negligentes. Tentamos evitar os buracos. Mas só há buracos. Caímos nos buracos… outra vez… e resta ver qual será agora o dano. Ah… e nas estradas também.  


Marina Ferraz




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terça-feira, 28 de novembro de 2023

Sol cinzento

 

Para a minha avó, Maria Graciosa
6 de Outubro 1930 - 19 de Outubro 2020


Tolkien falou de anéis. Repletos de poder. Três para os elfos, sete para os anões, nove para os homens mortais e um que os dominasse a todos. Mas nunca falou deste. Este que tem o sol lá dentro. E que colocaram no meu dedo anelar, sob a forma de promessa inquebrável, indizível. E este é um anel que controla até os mundos que não sabemos que existem.

 

Foi em Dezembro. Um Dezembro como este que se aproxima. Foi em Dezembro que, vendo-me usar o polegar para tocar o anelar da mão direita, por sob o indicador e o dedo médio, a minha avó fez um sorriso triste, de compreensão. Também ela mexia constantemente na aliança. A dela no dedo esquerdo. Eu tinha tirado o anel. Ficara o hábito.

Da sua expressão de entendimento, que já tanto valia, seguiu-se o toque. A mão dela – sempre fria – sobre a minha – não mais quente. Olhou-me com olhos de mel e meiguice. E disse-me que escolhesse um anel que substituísse o antigo. Disse-me que mo daria pelo Natal.

O anel que escolhi, pequeno e de malha simples, de prata, lembrava-me dela. Metal corrente, mas valioso, de uma simplicidade extrema e sem artifício. Uma beleza singular, que muitos não notariam. Possivelmente passaria despercebido na minha mão, como passara despercebido a todos os que tinham visitado a loja antes de mim.

O preço baixo do anel escolhido desagradou-lhe, mas não se opôs à minha vontade. E, da pequena caixa expositora ele passou para outra, onde morou até ao dia de abrirmos prendas, todos juntos, celebrando mais a família que temos do que aquela que alegadamente terá abençoado o mundo com um filósofo comunista numa manjedoura algures.

Aproximei-me dela, agradecendo. E, estendendo-lhe a caixa, pedi-lhe: se este é um anel de compromisso, peço que sejas tu a pôr-mo. Olhámos uma para a outra. Sorrimos uma à outra. E ela, que quase sempre ripostava, não disse nada. Agarrou a minha mão com a sua mão fria. Mas parecia quente, quando firmou, num gesto, a nossa promessa eterna que nos dedicou uma à outra. E consagrámos o amor, debaixo das decorações festivas e independentemente delas. Sempre. Para sempre.

 

Todos os dias tiro o anel para dormir. Todos os dias o ponho logo pela manhã. E todos os dias me dedico a ela. Todos os dias lhe digo que a amo. Todos os dias cumpro a promessa que lhe fiz nesse silêncio pintado de burburinho alheio.

E, quando o olho na palma da mão, diretamente antes de me dedicar novamente a esse ritual de pertencer-lhe, todos os dias me sinto como se o toque frio da mão dela na minha me aquecesse a alma, exatamente como o fez ao pôr o anel no meu dedo pela primeira vez. E é uma espécie de sol cinzento. Pequenino. Onde o compromisso eterno aquece até o mais frio dos invernos.

 

Tolkien falou de muitos anéis. Mas nunca falou sobre este. O meu pequeno sol cinzento. Que nasce pela manhã na palma da mão. E ressuscita os mortos. E a traz de volta. Todos os dias.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 21 de novembro de 2023

Expoente máximo

 


O expoente máximo do amor é visto na dificuldade. Porque falar de entrega é mais fácil do que entregar-se, e falar de amor é só dizer uma palavra simples, pequenina, de leitura imediata e que nem faz gaguejar. Gosto de quem se identifica com o antigo e reconhecido cartoon dos velhotes à chuva. E entendo que, na minha vida, há muita gente sobre quem eu colocaria o guarda-chuva. Também sei que há algumas pessoas que o colocariam sobre a minha cabeça. Saber disto e não cuidar do outro é, talvez, o expoente máximo da estupidez.

 

Tenho visto muitas costas voltarem-se. Às vezes por razão nenhuma. Às vezes porque os ressentimentos, acumulados nos anos, explodem. Nós que, quando se desatam das gargantas, já vêm com o podre bolorento do que não foi dito. Silêncios que se prolongam e deixam desconforto sentado no lugar… vazio. E um amanhã que parece feito de muitas desistências inúteis, que serão arrependimento mais tarde.

Pessoas que se amam são mais cáusticas quando se magoam. Porque amar é conhecer o outro. E aceitar ser amado é colocarmo-nos numa posição frágil de abertura do portão mor das muralhas que erguemos aos outros. Magoar quem se ama é atacar por dentro. E são guerras que acontecem simultaneamente em dois campos de batalha, com muitas baixas. São muitas felicidades inocentes que vão morrendo, nesse bramir de espadas de palavra e silêncio, de ataque e de inação.

Por vezes, sento-me no banco que fica entre costas e costas. Tomar posição na guerra é acendê-la. E eu quero a paz. Tomar posição na guerra é incentivá-la. E eu quero sentir novamente o quente coeso dos abraços todos. Noto que as pernas da cadeira estão velhas e gastas. Podres como as emoções superficiais e imediatas que parecem suprimir as outras. Quando a cadeira range, afasto-a. Sento-me no chão com as pernas à chinês. E fico à espera que dele brotem novamente as flores sadias na Primavera que será perceção de que toda a guerra é inútil. Dentro, eu acredito, moram emoções boas. Amor que é amor não morre. Sentimentos eternos não perecem por causa de emoções fugazes.

 

O expoente máximo do amor é visto na dificuldade. Sentada no meu silêncio, tento estender um braço para cada lado, segurando dois guarda-chuvas. A minha treinadora ficaria muito impressionada com este exercício de isometria. Mas estou a ficar triste e cansada. Logo eu que sou feliz e enérgica. E gostava que as guerras parassem.

 

Não quero estar, do meu expoente máximo do amor, a olhar para o expoente máximo de estupidez dos outros. Quero que todos entendam. O passado já foi. O presente vai ser passado. O futuro pode ser escasso. Guerras passageiras não alimentam vidas plenas. O amor? Mesmo quando é difícil. Talvez mais quando é difícil. Esse é o expoente máximo da vida.

 

É só meia volta. De parte a parte. E costas voltadas são de novo um abraço.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 14 de novembro de 2023

Morte aparente


 Para Ercília Ferraz

Nasceu com morte aparente. Poderia ter ficado por aqui, esta história. Não seria história que valesse um texto. Mas seria uma história. Uma que marcaria, certamente, mais tristeza no rosto da minha avó e mais agressividade nos gestos do meu avô. Muito parca de narrativa. Sem palavra ou acontecimento. Sem intriga nem enredo. Sofrimento só. Abençoaram-nos os Deuses – os meus e o deles, em perfeita harmonia – com outra. Uma que vale o texto.

 

 

Há uma mulher. A mulher que há é resiliente e metódica, diligente e lutadora. Companhia das trincheiras da vida. Aquela que – como dizia Hemingway – importa mais do que a própria guerra. Nessa guerra, é guerreira. Não só combatente, mas combativa. Teimosa e senhora do seu nariz. E se lhe chega a mostarda ao nariz... Focada. Sensível. Uma Força da Natureza. Há uma mulher. Uma mulher que antes de o ser foi moça. E que antes de ser moça foi menina. E que foi sempre assim. Fiel ao seu eu. Vivendo até hoje como a bebé que nasceu morta. Cada decisão honrando o seu nascimento. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Até o que sabe, de instinto, que devia ser diferente. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Como a primeira respiração. Retardada.

 

É a dona do canto que ocupa e não precisa de companhia, embora a aceite e valorize. Gosta de ler. Emociona-se com os livros inteligentes e de seres humanos bons. Mas acha que a maioria dos livros e seres humanos partilham o traço de não o ser. Inteligentes ou bons. Isso, meus amigos, já não é traço de carater, mas experiência de vida!  

 

Entusiasta de automóveis e detentora da capacidade de conduzir automaticamente carros com mudanças manuais, ela desliga-se quando o motor liga. Faz isso demasiadas vezes. Gosta de aventuras de estrada aberta. Aventura-se nos becos estreitos das cidades propositadamente. Tem um GPS incorporado na cabeça. Não se perde, mas faz por se perder. Ama a ideia de não saber onde vai dar a estrada a seguir. Talvez – penso – porque a vida lhe tenha dado estradas certas e lineares, um pouco monótonas na passagem pelas silvas e os ninhos de víboras. Sobreviveu a essa estrada e às outras. Muitas outras haverá ainda, esperando a sua alma destemida e o seu espírito ousado.

 

 Nunca bebe. É sempre abstémica. Até chegar a sangria e a jeropiga à mesa. É aguerrida na defesa dos seus valores. Intempestiva em muitas respostas. Mas sabe parar e pensar sobre si mesma nos mesmos termos. Aprendeu a bondade com a mãe. Aprendeu o companheirismo com o pai. Aprendeu sozinha a pedir desculpa quando a aspereza que não aprendeu mas herdou de signo a torna desnecessariamente o equivalente humano de arma nuclear numa conversa.

 

É incrivelmente bonita. Mas não sabe que o é. Elegante. Mas não sabe que o é. Não saber que o é torna-a ainda mais bonita. É uma beleza simples e humilde, que veste roupa casual, por vezes desportiva, sem tintas nem artifícios escusado. Faz a sua própria moda sem seguir a moda do impróprio conformismo. É o tipo de mulher que agarra o estilo eterno de que falava Chanel e que suplanta facilmente a norma chata das montras.

 

Pende-lhe do pescoço um pedaço da sua fé. Fica na sua passagem o aroma distinto de quem tem hierarquia mágica nas veias. Emana dela a energia que transforma a terra e faz crescer as plantas. Agarra o nome da religião que lhe deram e transforma-o na ideologia que a rege. Recusa os livros sagrados, mas não o sagrado dos livros. E resume tudo à bondade. Resume tudo ao amor. E diz que ama quem ama com cada gesto diário.

 

Nasceu com morte aparente. Vive. O seu nome não será, talvez, dado a nenhuma rua – a menos que eu venha a dar nome a uma rua! Mas é como se houvesse cidades inteiras com o nome dela. Tem plaquinhas eternamente gravadas com o nome dela a ornamentar as ruas do peito de muitas pessoas. Do primeiro momento e até hoje, foi essa inscrição que deixou nas vidas de quem com ela se cruzou. Fossem os amigos, a família, conhecidos de percurso, funcionários das lojas que frequenta ou completos estranhos. Não é pessoa que passe sem deixar algo de si.

 

Nasceu com morte aparente. É minha mãe. Não quis falar dela como mãe, embora por três vezes o tenha sido e de todas elas tenha feito trabalho de heroína de novela. É muito fácil lembrar-lhe os traços maternos. Os traços ternos do colo. O cuidado em noites e noites em claro. Não quis falar dela como mãe, ainda que nascer dela tenha sido a maior das minhas bênçãos.

 

Nasceu com morte aparente. Sobreviveu à primeira morte para ter uma vida que importa. Tornou-se mulher-modelo das mulheres. Tornou-se a mulher que fica, por vezes, oculta atrás da máscara que a camufla de mãe. Não quis falar dela como mãe. Quis falar da mulher que nasceu com morte aparente e cuja vida foi – é – grito silencioso. Da mulher que é tão mais do que os filhos que teve!

 

 

Nasceu com morte aparente. Felizmente vive. Se não tivesse nascido, muitas pessoas que caminham pelo mundo não teriam uma plaquinha com o seu nome no peito, marcadas pela sua valiosa vida.

 

Não eu.

Eu simplesmente não caminharia pelo mundo.

Eu simplesmente não teria nascido.

 

E não haveria este texto.

E ninguém saberia que a mulher mais perfeita do mundo nasceu com morte aparente.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 7 de novembro de 2023

Pomba branca

 

 Fotografia de Vasco Inglez

A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Deixando apenas no ar as penas. E eu colhi. As penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite.

 

 

Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. O mundo nunca foi bom. Lembram-me. Mas eu não quero acreditar. Com a vida a invadir-me o corpo crente de outras vidas – aquelas que me dizem que nunca existiram - o negrume tenta levar-me para o lado da Força onde não quero achar que pertenço. E diz-me: já usas as vestes. Visto. Quero ocultar-me do mundo. Camuflar-me nas vielas dessa escuridão podre. Mas não lhe pertenço. Recuso. Recuso que a alma me mime a coloração sombria das vestes.

 

Vou olhando ao espelho para encontrar máscaras pretas que iludem os turistas que visitam temporariamente os meus espaços. Sei que se diz de mim o que não sou. E pouco me importam as palavras. Palavras – percebi, triste – não são a poesia que brota plena de Primaveras que o mundo não teve. Palavras – afinal – são só vazio quando não têm ação que lhes dê uma estação do ano. Palavras – quando sós – não servem para nada.

 

Na tentativa vã de sobreviver às guerras dos tiranos, à mágoa dos penitentes e à falsa diplomacia dos privilegiados, quero olhar para mim como se eu fosse indiferente. Olhar a vida, de volta, com o mesmo desapego. Com o mesmo gozo. Com a mesma maldade. Ainda tenho muito presente a voz da minha avó, falando da sua mãe: que lhe faziam mal e sempre era boa. E se ela não está no céu, ninguém está.

 

O céu é uma utopia. Mas olho-o, procurando ver o voo das palavras com ação que ela dizia e que, se não tornaram o mundo melhor, me inspiraram a querer ser parte dessa bondade que merece o que fica para além do visível. Não anseio por redenções nem partilho a fé nesse deus cru que ela imaginava. Mas quero deixar luz quando despir as roupas negras.

 

A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Eu ponderei. Eu descobri. O espelho. E era eu a vida. E era eu o indigente vulto negro que matava a inocência, tentando sobreviver.

 

Então, ajoelhei-me. Primeiro para colher as penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite. Por entre o choro, apercebi-me. Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. Então ajoelhei-me. Peguei na pomba morta da minha inocência e fiz-lhe respiração boca-a-bico. Agarrei-lhe os ossos meio partidos. Agarrei-a junto ao peito. Reacordada e moribunda.

 

 

Vais morrer disso. É isto que a lógica me diz, na voz dessa vida negra que me olha a partir do espelho. E eu concordo. Vou morrer disto. Soa bastante melhor do que estar viva. Sem isto.


Marina Ferraz




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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Visitas

 


Hoje não posso. Tenho visitas. Compromissos inadiáveis. E já agendámos novamente um encontro no próximo ano. Um dia, irei eu, sem dia fixo de calendário, bater-lhes à porta. Mas hoje. Especificamente hoje. Abro todas as portas e todas as janelas e todos os recantos de ventilação. Para que entrem. Para que se sentem. Para que bebam do meu vinho. Para que comam da minha comida. Para que me amem. Para que sejam amados. Hoje tenho visitas. Tudo o resto terá de esperar. Até a vela que arde.

 

 

Não é um grupo muito harmónico. Sentá-los todos à minha mesa é pedir para que a discussão se faça. Um é salazarista. Uma é antifascista. Uma tem alergia a gatos. Outra é um gato. Um não gosta de massa com bacalhau. Outra gostaria que eu o tivesse feito. Concordamos todos no bacalhau com ovos à moda da minha bisavó. Mas a Idalina também tem um ou outro bitaite sobre a forma como eu devia alisar os ovos para que ficassem mais bonitos. Não se demora nisso. Mas só porque, de repente, o António diz qualquer coisa sobre a Guarda e é preciso iniciar a eterna discussão sobre qual é mais feia: a Guarda ou a Covilhã.

 

O Ramiro tem um descontentamento preso nos olhos quando me nota no pulso a palavra que ele mesmo disse. A Graciosa também não é fã de tatuagens, mas emociona-se novamente com a certeza de que aquela é a sua caligrafia. Beijo ambos no rosto. Mais do que uma vez. E sirvo tinto. Para ela, aquele vinho é delicioso, mas diz que não pode beber muito, que senão fica meio-meio. Ele diz que, hoje, já não sabem fazer vinhos, mas bebe com agrado, no recordar do sabor das vinhas que criou de berço e que lá permanecem, embebedando as histórias magras de outras eras.

 

Comem todos do mesmo prato. Bebem todos do mesmo copo. Quem mais vier, que se junte. O ar enjoado da Ali e do Ron, enquanto roem as guloseimas, soma-se a uma procura mais ou menos intuitiva da Tiara pelo bacalhau cozido. Entretanto, neste outro plano, a Sam segue-os com o olhar e a desconfiança dos vivos. E também ela recebe o mimo da guloseima rara, apenas porque é dia de festa... que não te quero a visitar-me só uma vez por ano tão cedo. Digo-lhe.

 

É uma festa que dura até de manhã. São visitas que desconhecem a hora. Estendem a estadia até dar. Saem quando lhes apetece. Voltam quando lhes apetece. Vão acalentando o pavio da vela ritual. Há-de estar acesa enquanto aqui andarem. E não levanto a mesa até que saiam. Humana e consciente da hora avançada, eu adormeço. Mas não como nos outros dias. Com as visitas. Ao colo de umas, com outras ao colo.

 

 

Então. Obrigada pelo convite. Sei que vai ser divertido. Agradeço que me queiras lá. Mas hoje... Hoje não posso. Tenho visitas. Não quero nem a música. Nem a agitação. Nem as pessoas de carne e osso. Estou cansada dessa vida dos vivos. Hoje, tenho visitas e muita esperança de que elas fiquem e fiquem e fiquem... mesmo que deixar a mesa posta por dias e dias seguidos me faça comichão na pele. Mesmo que deixar a vela acesa ataque todas as minhas cautelas.

 

Hoje não posso. Tenho visitas. Compromissos inadiáveis. Um dia, quando me juntar a eles nessa visita anual às casas, quero que me recebam também. Reclamarei, como eles. Da comida, do vinho, das conversas políticas (que certamente se frisarão com a minha presença).

 

Então. Nesse tempo vindouro. Aí. Aceitarei o convite de quem ponha o meu lugar à mesa neste dia.

 

Mas até lá. Não. Não contes comigo.

 

Hoje não posso. Tenho visitas.

 

Marina Ferraz




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terça-feira, 24 de outubro de 2023

Habitação

ou breve crónica em defesa das decisões tomadas pelo governo português

 

 


 

Eu sei que sou do contra. Ao longo da minha vida já fui considerada paranoica, teórica da conspiração e negacionista. Também já fui considerada má influência e monstro. E também já fui desconsiderada umas quantas vezes. Está tudo bem! Hoje, não direi nada contra. Venho afincadamente defender o trabalho do governo português. Fazer uma festinha no pelo dos carneirinhos lusos, mesmo antes de irem para mais uma tosquia à portuguesa, que lhes dará um Inverno mais produtivo, onde poderão demonstrar a heroica alma e provar a sua resiliência.

 

Sabemos todos – exceto quem, sofrendo de agorafobia também dispensa televisões, rádio, jornais e internet – que estamos a atravessar uma das mais graves crises de habitação desde que as cavernas sem risco de derrocamento já estavam ocupadas. Tão grave que existem muitas pessoas que aceitam uma caverna com risco de derrocamento em Lisboa, desde que a renda seja inferior ao salário. Na porta do parlamento, montam-se tendas e deixam-se indignados pedidos para um travão à situação atual. Na Internet, solicita-se a construção de uma terceira ponte sobre o Tejo, para que os portugueses possam viver sob a mesma.

 

A situação agrava mais e mais por razões diversas. Os travões à inflação no mercado do arrendamento tornam incomportável, para muitos senhorios, o aumento dos pagamentos bancários face ao aumento das taxas variáveis. Subitamente, o alojamento local é mais rentável. Uma espécie de “bora lá explorar os estrangeiros, agora que já roemos a carne nacional até ao osso e já chupámos o tutano”. Mas, com os pagamentos ao banco e o aumento nos preços dos produtos, também os senhorios são esse português de tutano chupado. Vivemos numa espécie de favores-em-cadeia... mas ao contrário... retaliamos no próximo, fazendo tudo aquilo de que nos queixamos de ser vítimas. Uma brincadeira de adultos. Passa a outro e não ao mesmo. E afundamos todos na velha e saramaguiana Jangada de Pedra, tão lúcida e atual.

 

Lisboa é a cidade mais cara do país para arrendar uma casa. E é a terceira capital europeia com rendas mais caras. Isto num país onde o salário mínimo é tão mínimo que não chega para o mínimo essencial à vida, com os preços a atingirem novos máximos todas as semanas. Os meus pais, que viajaram brevemente à Bélgica, contam que um taxista se queixou de que as rendas são incomportáveis porque são cerca de mil euros mensais (num país onde o salário mínimo é de quase 1.600 euros). Não desfazendo as queixas do taxista, mas qualquer lisboeta, com o seu salário mínimo de 740 euros mensais, não franziria a testa a ouvir falar do preço da renda. É ridículo, mas tão comum que não causa espanto.

 

Perante tudo isto, no entanto, hoje estou aqui, afincadamente disposta a defender a ação do nosso governo para solucionar isto. Adotando uma postura de Thomas Edison, o governo português tem vindo a descobrir as mil maneiras como não resolver o problema da habitação. Mas, depois dos travões à inflação do arrendamento, do arrendamento obrigatório de habitações devolutas, e da compra de supostos especialistas para a apresentação de medidas baseadas em exatamente pesquisa nenhuma... fez-se luz. Já a partir do próximo ano, os veículos a gasóleo anteriores a julho de 2007 terão um aumento do IUC de até 1746%. Com esta medida, o governo consegue transformar bens, antes circuláveis, em imóveis, solucionando, por fim, o problema da habitação, que será ao preço do parquímetro. A renda desta forma de car camping será executada pela EMEL e variará consoante a zona, devendo o acampamento no veículo preferir as zonas verde e amarela para maior poupança e as zonas vermelha, castanha e preta para quem quiser continuar a viver acima das suas possibilidades.

 

 

Inovadores e vanguardistas, os nossos líderes conseguem simultaneamente solucionar a crise da habitação, salvaguardar as questões ambientais, promover hábitos saudáveis nos portugueses (cujas deslocações serão agora maioritariamente com recurso às pernas) e resolver o trânsito caótico de Lisboa.

 

Devidamente comprovada a capacidade de raciocínio lógico e a orientação para a resolução de problemas que motiva os nossos governantes, já pouco há a dizer. Vale só a pena destacar que, ao descansarem nos seus imóveis de luxo com chão aquecido e jacuzzi, sobre os seus colchões de penas com lençóis de linho egípcio, estes líderes destemidos receberam ainda uma mensagem divina que os fez decidir manter o regulamento que determina que os carros do governo estarão isentos de IUC.

 

Mas... enfim... também não é grave! Não existem ostentações na frota governamental. Não é como se algum dos carros fosse mais antigo do que 2007.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de outubro de 2023

Marina

 

 Fotografia de amypointer

Sentada à mesa de um qualquer restaurante, rodeada de homens, de repente ouve-se um “foda-se”. A asneira faz-se seguir de um movimento brusco, tapando a boca. De um meio sorriso. De um “desculpa, Marina”. Sou a única mulher na mesa. Mas não sou o tipo de mulher que não diz palavrões. Preparo-me para dizer que não faz mal. Não tenho tempo. O meu ex-namorado diz, num riso casual: “A Marina?! A Marina é um gajo!”. E eu rio-me. Não sou. Mas, se considerarmos o estereótipo, a forma como me sinto confortável naquele ambiente, a minha escolha de linguagem (e, por vezes, de vestuário) e muitas outras posturas do quotidiano, é fácil entender – ainda que alguns possam criticar – aquela expressão. Sou uma mulher que se sente mulher. Que se tornou mulher, para usar as palavras de Beauvoir. Identifico-me com o género que tenho. Pura sorte. Mas não sou uma mulher dentro-do-padrão. Nem quero ser. Tenho pouca paciência para a maioria dos esforços que se associam ao ser-se mulher. Gosto de sê-lo à minha maneira. Às três pancadas. De me arranjar em 15 minutos de manhã. De andar sempre de sapatilhas. De comer como um camionista, que me perdoem os camionistas a comparação. De pegar em escaravelhos e gafanhotos em vez de fugir deles. De usar impropérios aleatórios no discurso. É a vida. De qualquer forma, estou só a viver, sem pretensões de vir a ser a próxima Miss Portugal.

 

 

Nunca fui – continuo a não ser – fã de concursos de misses. Recuso aqui, propositadamente, o termo “concurso de beleza”. Os concursos de Miss – sejam locais, Portugal, Mundo ou Universo – não são concursos de beleza. Critérios apertados garantem que além dos preceitos físicos, da elegância e da apresentação visível, as candidatas são símbolo de glamour e sofisticação, e indivíduos-modelo, que apoiam causas relevantes, têm um papel na área da filantropia, conhecimentos ao nível da história e cultura nacionais, objetivos estruturados e uma ficha criminal limpa. Não é fácil entrar neste leque de mulheres e muito menos ser, de entre elas, a melhor.

 

Olhando os critérios do concurso eu sei que jamais seria Miss. Mas a minha homónima, a Marina – aqui Machete e não Ferraz – foi-o. Usualmente, este seria um não assunto. Mas é um não assunto que se tornou assunto. Porque não faltam, pela Internet, manifestações de ódio puro, opiniões deslocadas e afirmações de amplitude mental limitada. A Marina – que nos representará no concurso de Miss Universo em El Salvador – é, pois, uma mulher que – e vou citar novamente a minha querida Simone - “não nasceu mulher” mas, em vez disso, “se tornou mulher”. Literalmente. Uma mulher trans.

 

Rapidamente avaliando a questão e sem grandes conhecimentos sobre o que levou o júri a escolhê-la, não me sinto chocada com a vitória. Vejo uma mulher bonita e elegante, que pode eventualmente cumprir todos os critérios do concurso e que em nada fica atrás das suas colegas. Só lancei um olhar muito rápido e talvez superficial, insuficiente, às candidatas. Só o lancei porque o machismo e transfobia de algumas afirmações, tão cruas e cruéis, me incentivou a fazê-lo. E, porque o fiz – talvez por não ser a mais-feminina das mulheres e porque realmente não me interessa muito o concurso... – senti-me ainda mais confusa. Repito. É uma mulher bonita e elegante. Pode bem cumprir todos os critérios do concurso. Não se destaca negativamente de nenhuma das outras candidatas. Nesta análise breve, acredito que ela venceu e é trans, mais do que acredito que tenha vencido porque é trans. Não me sinto chocada com a vitória. O que me choca é que, de repente, tantos homens cisgénero se importem desta maneira com o concurso de Miss Portugal...

 

As afirmações da Internet dizem sobre a Marina o mesmo que o meu ex-namorado – plenamente informado da minha condição feminina e em tom de brincadeira – dizia de mim: “A Marina?! A Marina é um gajo!”. Acontece que, neste caso, não me parece que seja! E não há tom de brincadeira nos discursos... Há ódio. E injustiça, se considerarmos que não acho nada que esta Marina seja um gajo. Parece-me ser mulher. Uma mulher que se apresenta, sente, vive e relaciona com o mundo nessa condição. Neste momento, penso que muita gente que só diz asneiras, deveria, sim, dizer “desculpa, Marina”.

 

Eu tropeço nos meus próprios pés, mesmo sem saltos altos. Falo como se tivesse nascido no Norte. Visto a primeira coisa que me vem à mão de manhã. Tenho zero de paciência para Shoppings. Não consigo entender o mundo das revistas cor-de-rosa nem as telenovelas. Sou anti-dramas no contexto de qualquer relacionamento. Tenho sempre o carro cheio de migalhas. Frequentemente a roupa com nódoas. Definitivamente por passar. Não nasci para a correção. Muitos dos meus gostos coadunam-se mais com os alegadamente masculinos do que com os estereotipadamente femininos. A maioria dos meus amigos são homens... Poderia continuar eternamente esta lista...

 

O facto é: entre esta Marina e a outra Marina, uma nunca poderia ser Miss... e claramente sou eu!

 

 

Entretanto, minha gente, não sei se deram conta. Mas com o novo Orçamento de Estado estamos todos fodidos com os impostos. Ups. Mão levada à boca no momento do impropério. Desculpa, Marina.


 Marina Ferraz




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