terça-feira, 29 de março de 2022

Péssima influência

 

Fotografia de Raul Pinto


Eu sou uma péssima influência. A sério. Sou mesmo. Tanto que se tiverem filhos, sobrinhos, irmãos mais novos ou afilhados, eu recomendo vivamente que não os deixem conviver comigo. Eu sou uma péssima influência.

 

 

Para começar, defini a totalidade do que eu queria ser profissionalmente com 6 anos e nunca mudei de ideias. Presa à arte da escrita, desenvolvi o traço casmurro de teimosia e obstinação, que sobreviveu a muitos conselhos e tentativas alheias para que orientasse as velas do barco para o que convencionalmente se chama “um trabalho normal”. Não o fiz. Mesmo quando, com o primeiro ano de doutoramento terminado e uma média invejável, podia ter rumado para esse futuro de luz, insisti na deixa antiga. Essa de querer ser feliz. Ou miserável. Desde que fosse a escrever.

 

No processo de lutar para conquistar a vida que eu queria – e não a que queriam para mim – habituei-me a usar o dicionário sem reservas. Das palavras pedantes, conheço quase todas. Sei os termos mais eloquentes. Mas, no fundo do meu âmago, acho execrável falar apenas com esses termos hialinos, sectários, que tão pouco definem a minha idiossincrasia, pelo que considero inócuo o recurso aos impropérios... Sim, digo palavrões! Não tenho medo de palavras, perdoem-me! Além de achar que uma asneira no momento certo pode ser adequada, também acredito que mandar alguns filhos da puta para o caralho que os foda está entre os maiores prazeres da vida.

 

Lá está: sou uma péssima influência.

 

Soma-se, ao já referido, o facto de estar muito consciente de que só tenho uma vida. Isto manifesta-se de vária formas. A primeira, com alguma ausência de restrições no que respeita aos prazeres mundanos. A segunda, com a aniquilação dos medos, em prol das experiências novas e emocionantes. A terceira com o modo como me esquivo de criar opiniões sobre coisas que não me afetam diretamente, evitando que a minha existência colida com a dos outros. Todas elas causam estranheza aos comuns mortais. Eu sei. As pessoas gostam da moderação, das fobias e de meter o bedelho em coisas que não lhes dizem respeito. É quase tão difícil para elas ter uma vida que não colida com a vida dos outros como para alguns condutores fazer a IC19 sem terem um acidente na curva do Palácio de Queluz...

 

Há ainda aquele defeito desequilibrado, conveniente de recordar, principalmente no trato com as pessoas das quais mais gosto. Falo, obviamente, do facto de me esquecer frequentemente da palavra “não”. A ponto de perder horas de sono para garantir que todo o meu trabalho está feito e que, mesmo assim, não estou a falhar com os outros. Gerador de olheiras profundas e de uma constante sensação de cansaço, este traço não é, certamente, exemplo que se dê. Comprova, assim, mais uma vez, a má influência que eu sou.

 

Eu sou uma péssima influência. A sério. Sou mesmo. Tanto que se tiverem filhos, sobrinhos, irmãos mais novos ou afilhados, eu recomendo vivamente que não os deixem conviver comigo. Eu sou uma péssima influência.

 

Só que acontece que, das crianças em cuja formação estive presente, nenhuma se tornou um adulto tão disfuncional como eu. Sabem o que querem e lutam. Têm bons projetos de futuro. Sabem todas as asneiras do dicionário, mas também sabem usá-las sabiamente e apenas nas alturas corretas. Sabem estar em qualquer lugar e percebem que devem agir de acordo com a situação, mantendo a postura nas festas mais elitistas e comendo o frango de churrasco à mão nas festas de aldeia em agosto. São idealistas, trabalhadoras e resilientes. Responsáveis e preocupadas com os outros. São, no fundo, boas pessoas...

 

Olham para mim. Riem-se. Dizem que sou uma péssima influência. Porque sei ser. Mas também sei baixar a guarda e ensinar-lhes que podem ser elas mesmas num mundo que nos nega isso todos os dias. Explicar-lhes que o “normal” não existe. E que, se existe, é muito chato!

 

Lá está: sou uma péssima influência.

 

Sou-o porque me recuso a ser outra coisa que não eu. E sei quem sou. E não quero ser outra coisa.

 

Partilho-me. Com quem quiser estar. Só porque sim... naquela minha máxima de “ser e deixar ser”.

 

Eu sou uma péssima influência.

Por isso. Por ser. Por deixar ser...

 

Se tiverem filhos, sobrinhos, irmãos mais novos ou afilhados, eu recomendo vivamente que não os deixem conviver comigo. Existe o risco de que eles venham a ter uma personalidade... ou reforcem a que já têm... Existe o risco de que eles criem um pensamento próprio. Existe o risco de que desagradem às massas cujo projeto de vida é só passar pela vida.

 

A sério. Eu sou uma péssima influência. Principalmente porque termino a frase no “sou”. E realmente não faço questão de influenciar ninguém...



 Marina Ferraz





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