terça-feira, 30 de julho de 2019

Possessão


Autor da foto: Miguel Pião

Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma espécie de alma. Uma espécie de memória. Feita de tantos concretos que, ao expirar, quero agarrá-la, prendê-la.

Esta entidade fala sem verbos. O poema. A canção. O elefante. Momentos de promessa. Promessa inusitada. Espelho com palavras no verso. Verso do poema. Canção paquidérmica. Bolo partido no canto. Manta na relva. Lagoa. Ar.

Todas as palavras que diz são começo de uma frase que, por nunca terminar, é eterna. E essa frase entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma espécie de torpor. Uma espécie de história. Feita de tantos concretos que, ao expirar, quero contestá-la, volvê-la.

Ao possuir-me, esta entidade, toda ela modelada de medos e anseios, parece hiperventilar na ideia da sua própria inexistência. Sinto-a a correr nas veias. Correndo nas veias, a entidade continua a desgastar poeticamente as paredes arteriais. Faz o maior dano quando passa das veias pulmonares à aurícula esquerda, seguindo para o ventrículo esquerdo e prometendo levar o oxigénio que não há até ao corpo que não o quer.

Nessa possessão, não estou inconsciente. Dou por mim a fazer coisas que não quero. Carícias a ecrãs monitorizados de dispositivos móveis de vidros rachados, com conteúdos desmontáveis, comestíveis e quase imprudentes que me fazem desejar estilhaçar o já estilhaçado vidro contra a parede onde, um dia, me encostei lascivamente para olhar para carne e osso. E o que julguei ser uma alma e um coração. Mas que era apenas mentira.

A mentira. Esta é a conversa mais intensa entre todas as que mantenho com a entidade. Fazendo trajetos corridos entre o meu cérebro e o meu coração, essa entidade que entra em mim quando respiro, deixa queimaduras perenes nas paredes orgânicas contra as quais embate. Sim. Não. Talvez. És uma idiota. Ok, tem calma. Tens razão. Não tens razão nenhuma. É. Não é. Está. Não está. É uma espécie de fumo inalado que, de repente, aprendeu os verbos transitivos e alguns dos outros. Não se cala. Embate. Aqui e ali. Correndo loucamente entre uma razão razoável e uma forma de sentir sobejamente imprudente. Respiro fundo e quero expulsá-la, na expiração. Tentando libertar-me do ardor. Esse que o peito colhe e o nariz aloja. O. Tempo. Todo.

Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma espécie de alma. Uma espécie de memória. E eu, farta de fumos, de almas e de memórias, pergunto para quando o desfecho desta possessão. Leva-me. Peço. Desejando que o concreto daquela incongruente figura decida ficar e me faça mover apenas braços e pernas, de forma mecânica, ausente de mim.
Mas ela, que entra em mim. Quando respiro. Com a mesma velocidade se escapa. Incapaz de lidar com a possessão. Não a minha mas a sua. Sempre que entra em mim.

Se lhe peço que permaneça, debitando os seus substantivos e adjetivos. Ou enumerando verbos de movimento. Ou simplesmente queimando artérias. Ela ri. É o que faz, quando lho peço. Ri.

Há uma dor. Diz ela. Que é como dedos ondeantes e flácidos. Capaz de penetrar até os espacinhos mais pequenos. Completamente fluidos. Completamente maleáveis. Há uma dor. Que tem tentáculos. E ela, que entra, não pode ficar. Não há espaço, diz-me. Não há espaço.

Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma espécie de alma. Uma espécie de memória. Feita de tantos concretos que, ao expirar, quero agarrá-la, prendê-la. Quero prendê-la. Mas sou feita de uma dor que expulsa até as frases sem verbo. Não há espaço. Nem para as possessões. Não há espaço entre o amor, a memória e a mágoa. Sou um corpo com lotação esgotada.

Entra em mim. Cativa-me. Vai embora. Magoa. Não é diferente de todos os outros.

Não é. Não é diferente de ti.

Talvez por isso lhe peço que fique. Que me possua. Mais uma vez.






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terça-feira, 23 de julho de 2019

Essência


Fotografia: Miguel Pião


A lua não tem lugar num céu que chove. Foi isso que me disseram. Antes de me pedirem que me despisse. De roupas e de lágrimas. Para que a essência lunar me saltasse da pele. E eu pudesse fechar os olhos.

E eu despi. O corpo de roupas. O rosto de lágrimas. Abandonando a ideia de que elas ainda caíssem por dentro, vestindo-me de dor. E fechei os olhos. Porque queria ser. A lua. Essa que, olhando para baixo, hoje abana o rosto, fazendo os mares dispersos chorar, também por dentro e sem água.

Fechando os olhos, na esperança de me encontrar, descobri que a minha essência não sou eu. Lá dentro, povoando-me as veias carentes, onde o sangue corre mais morno; existe a memória de tempos passados, onde vibra uma menina - hoje morta - que em tempos fui.

Há muitos nenúfares nas águas do meu choro interno. Nas margens das lagoas pardacentas e salobras, de águas turvas; seres sem nome nem história velam por mim. Cantam elogios fúnebres. E eu, morro, acordo e volto a morrer. Dentro de mim. À procura da essência que me foi destinada e que se ancora a muitos silêncios e solidões.

Dentro de mim, relembra-se o toque da luz na pele. Quando a pele tinha dedos alheios e somas de perfeição ambulantes, que se fixavam nos lábios, sob a forma de um beijo quente, que era tudo e nunca bastava. Dentro de mim, relembra-se o toque da visão profunda que se tinha de olhos fechados. Sonatas lunares de Bethoven, ecoando pela casa e deixando dormentes os espaços entre mão e mão. Uma dança entoada. Na forma de um “amo-te”. Eterno. E morto também.

Fechando os olhos para descobrir a essência, nessa esperança louca de me encontrar algures; eu fico a saber. A minha essência não sou eu. Há mais morte em mim do que nos campos de batalha. E, por dentro, é isso que eu já sou. Mesmo que a luz me beije a pele de mulher, insistindo que estou viva. Por dentro, é isso que eu sou. Reflexo. Da morte.

Mas dispo. Não tenho ilusão nem pudor. Nem ilusão de pudor. Nem pudor na ilusão. Tudo o que tenho é isto. Corpo despido de roupa. Olhos despidos de lágrimas. E morte dentro de mim. Escuridão e penumbra. Pontos de luz que relembram o passado. Tu. O passado. O passado de um verbo. Amar. Eu morro. Tu foste. Ele sabe. Nunca mais. Eles falam. Eles dizem. Despe. Procura. A essência. Nós tentamos. Eu morro. Tu foste. Eles estão errados.

A lua não tem lugar num céu que chove. Foi isso que me disseram. E eu despi-me de chuvas. Procurando a essência lunar do meu peito carente, onde não há nada nem espaço para nada além de ti. Todos os meus tempos são passados. Menos tu. Que és eterno. Como os limites matemáticos que tendem para infinito e que são incalculáveis, inimagináveis e incompreensíveis.

A lua não tem lugar num céu que chove. Invejo-a. Eu não tenho lugar. Nem no céu que chove. Nem no céu que brilha de sol vero. Nem em mim.

Então, despi. O corpo de roupas. O rosto de lágrimas. Porque queria ser. A lua. Fechando os olhos, na esperança de me encontrar, descobri que a minha essência não sou eu. Perscrutando na escuridão dos olhos fechados que choravam só por dentro, eu tentei ver além da morte e do seu véu negro, à minha procura. Incapaz de acreditar que, ali, apenas a morte vivesse.

Olhei a morte nos olhos, com os meus fechados. Rasgando-lhe o manto, rasgando-lhe a opacidade, eu vi. A minha essência. E descobri. Eu não tenho espaço. Não tenho espaço no céu que chove. Não tenho espaço em mim. Porque tudo o que sou é coração. E, dentro dele, só cabes tu.






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quarta-feira, 17 de julho de 2019

O amor não tira férias



Não faço malas. Usualmente, a bagagem é leve. Não vou a lado nenhum. Eu disse-te que não ia. Apesar daquele esgar de contrariedade, acompanhado do revirar de olhos. Não vou a lado nenhum. E, por isso, a bagagem é leve. Não faço malas.

Algures, por entre o trabalho que me enche os dias, encontro o alento sedentário dos sentidos. E dizem-me. Devias. Tirar férias. Ou um fim-de-semana. Ou um dia. Umas horas… Talvez. Mas para quê? Para olhar para as mãos que despi de anéis? Para olhar para as paredes que despi de fotos? Ou para olhar para o corpo que não quer despir-se, excepto para os ritos de higiene diária?

Há um toque de conforto no trabalho que chega. E no mergulho de profundidade que nele dou, até me esquecer de ser gente e de respirar. De tão cansativa, essa vida sem ar nem sentido, faz também eficazes os mergulhos no colchão e na almofada. Há um cansaço que me move, que me leva ao sono rápido e sem sonhos. Não durmo tempo suficiente para sonhar. E isso é a dádiva dos dias.

Pedem-me. Tira umas férias. Mas o amor que fica depois do amor partilhado é mágoa. E a mágoa mói. O amor não tira férias e, por isso, eu também não.

Não faço pausas prolongadas. Usualmente, basta o tempo que me separa os passos da máquina do café. E o café, se impulsiona cérebros ou ideais, não é para intervalar trabalhos mas para os acompanhar. Bebo-o de forma casual, com a inútil mão esquerda, enquanto a direita trabalha pelas duas, nas teclas do teclado.

O teclado faz um som que é musical nos meus ouvidos, demasiado carentes de outros dedos noutras teclas. E suprime a necessidade e o desejo de ouvir música. Porque instrumentais me fazem arder o peito, solos de piano me fazem arder o nariz e há uma lágrima insistente em cada linha das partituras de Chopin. A música incomoda. E, quanto melhor for o toque de suavidade que ela faz, vibrando-me cordinhas cerebrais de memória, mais incomodativo é o seu toque. As gotas da chuva não são cântico que se ouça quando se quer travar o choro. E o silêncio parece brio de contemplação. Fico-me por ele.

Pedem-me. Tira uma semana. Para ti. Lê. Ouve música. Vai ao cinema. Mas o amor que fica depois do amor é memória cortante. E os cortes dilaceram. O amor não tira semanas e, por isso, eu também não.

Não faço banhos de imersão. Só duches rápidos entre texto e texto. Aplicações monótonas e repetitivas: sabonetes e champôs e produtos que tentam remover a maquilhagem à prova de água e que também parece ser à prova de sabonetes e champôs. Descobri que água e sal a remove. A maquilhagem. Descobri, depois de muitas lágrimas borradas a preto nas faces.

O sofá odeia-me e eu odeio-o de volta. Mas serve de base aos dias que me escrevem a solidão na forma de obsessão pelo dia de amanhã. E uso-o para trabalhar, porque não tenho vontade nem paciência para nele fazer outra coisa. Fico nele. Não vou a lado nenhum. Eu disse-te que não ia. Apesar daquele esgar de contrariedade, acompanhado do revirar de olhos. Não vou a lado nenhum.

Pedem-me. Tira um dia. E estou cansada. Cansada demais para lidar com um dia na descoberta do que é o amor que fica quando o amor não ficou. O amor não tira folgas e, por isso, eu também não.

Perguntem a quem quiserem. Em cima de brasas acesas, é melhor estar em movimento.






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terça-feira, 9 de julho de 2019

A minha asa

Autor da foto: Ricardo Torb


“Não vejo a minha asa.” Foi isto que ela disse. Andando no meio de anjos e escuridão. Como quem procura, não a asa, mas uma casa. Para morar, no meio das telas e das luzes. Um toque de desnorteio e três de amor. Porque o coração é maior do que o medo. E, encontrando a asa, não foi no céu que se deitou, mas no chão. Um momento de rendição que era arte e vida. E que iniciou, com um canto de cidade angélica, o que viria a ser uma jornada partilhada, onde almas se davam e recebiam.

Estávamos lá. Novamente. Naquele lugar onde só vai quem permite o desafio. De ir. Mais longe. Mais depressa. Fora do corpo. Na velocidade que os corpos não atingem. E, desta vez, eu não era um corpo que queria estar presente, mas a presença fora de um corpo que estava onde queria. Depressa as asas subiram e a tela desceu e a guitarra se tocou. Depressa os anjos deram lugar a festas de aldeia e sentimentos de luta contra a solidão. Depressa, no som quente de uma voz que avivava pétalas em olhos alheios, entrávamos derrubando solidões e medos e dores no chão negro. Depressa nos despíamos ritualmente do que não queríamos.

“Não vejo a minha asa.” Não foi o que eu disse, mas foi o que poderia ter dito. Porque tudo o que eu via era o libertar das penas. Essas que, não compondo asas, compõem males no peito que se dá às balas quando (quase) tudo é amor.

Às vezes, nesses passos, pé ante pé, libertando medos e anseios ao universo e colhendo dele só o melhor, questiono se sou um ser que dança para não chorar ou um choro que se cala para que eu dance. E questiono se me caem medos e solidões ou apenas lágrimas na forma de papel, pintando o chão. E do chão haveriam de ser colhidas, por alguém que pouco sabe de mim.

Mas, de repente, os pés nus libertam-se do chão. Meu amor. Libertam-se do chão, como se mãos se prendessem às coxas e eu pudesse subir até ao topo das nuvens altas. Olha, penso, é ali que ela está. A minha asa. A minha casa. O meu lugar. E estendo o braço, agarrando a vontade de ser. Não a vontade de ser de alguém. Mas a vontade de ser completa em mim. Agarro a solidão que larguei no chão, colhendo-a na névoa das nuvens, e digo-lhe: ama-me. E, rendida, ela obedece.

Por me obedecer, de uma forma completamente passiva e masoquista, essa solidão não se encanta com o braço que me atira para o canto, não se ilude com a partilha do corpo que se encosta ao meu e sabe, por instinto, que vai perdê-lo para alguém melhor lá ao lado. Em desistência, os passos que se dão até ao centro da vida, ignoram que se abracem gentes. Vão firmes e compassivos, sem inveja nem ansiedade. Mas libertam-se em movimentos bruscos, avançam. E aguardam, numa vénia de rosto que quer a chuva nos olhos para esconder a ausência das lágrimas.

Toda a gente se abraça. Toda a gente se quer. Eu não. Eu abraço a presença de quem não está. Abraço o lugar vazio onde se sentam os meus. Aqueles que partiram. Aqueles que foram obrigados a partir. Aqueles que me abandonaram. A memória deles deita-me ao chão. E, deitando-me ao chão, faz de mim novamente feto, desejando o calor do ventre materno que me expulsou para sofrer. Mas rodo. Ergo-me. Sou braço que se fortalece e ergue alguém. Aceito a rotação breve que o mundo me dá. E corro. Corro loucamente a implorar que me envolvas mais uma vez. Que embarques. Nessa aventura que eu sou. Porque não há tempo.

As luzes baixam. Não vejo a minha asa. Não tenho a minha asa.

Tenho um lugar vazio. E és tu.






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terça-feira, 2 de julho de 2019

Dentro do búzio




Tu deste-me a praia. Lembras-te? Vinha toda dentro de um búzio pequenino, que me cabia na palma da mão. Com veios trabalhados a cinzel e um espaço oco no centro, onde o mar cantava.

Enquanto me colocavas a praia na mão, tu sorrias. E foi nesse sorriso que me deste a praia, colocando-a dentro do búzio que, pousado na minha mão, parecia pequeno demais para conter os prazeres estivais da vida.

Amas-me? Era uma pergunta que se fazia no canto que entoavam as sereias dentro desse búzio. E eu respondi que sim. E acho que era por isso que tu sorrias.

Como nunca foste uma pessoa que gostasse de contratos ou de normas, decidiste assinar a escritura da cedência dessa propriedade informalmente pública com as impressões digitais dos pés, marcando os teus passos ao lado dos meus. Felizes e vincados na areia que o mar lambia.

Tu deste-me a praia. Lembras-te? Mas eu disse-te que, embora a praia fosse minha e viesse nesse búzio que pousei na minha cozinha, eu não me importava que outros caminhassem nas suas areias ou se banhassem nos seus mares. E disse-te: não me importo, porque quero que todas as pessoas sejam tão felizes como eu sou agora. Aqui. Contigo. Nesta praia que me deste.

No coração do nosso lar, as sereias cantavam dentro do búzio, recordando-me o chamado das ondas que tinham servido de testemunhas ao nosso amor e que sabiam que, ainda que visitada por tantos outros, aquela praia era minha.

Até ao dia em que a voz foi silenciada. Aconteceu, de forma meio inesperada, quando as paredes da casa viraram, também, uma concha oca, onde não havia mais do que a ilusão dos tempos idos. As sereias fizeram um esgar arrepiante, dilacerante, num grito estridente, que soou ao bater da porta da entrada. E o lar, que era um lar, passou a ser o espaço vazio onde durmo e permaneço só.

Tu deste-me a praia. Lembras-te? Algures com um sorriso que tinha pendurado um brilho nos olhos, hoje apagado de sóis. Algures com o toque musical dos dedos que agora não se dignam nem a acariciar teclas para um “bom dia” de ocasião. Algures com o amor que o mar lambeu, a par com as pegadas, deixando olvido e insignificância.

Tu deste-me a praia. E mesmo sabendo-a minha, eu ainda quero que todas as pessoas sejam tão felizes como eu fui, pelo que não a reclamo. Mas a areia sabe que é minha. E o oceano sabe que é meu. E insistirão em apagar as pegadas que agora ladeiam as tuas, desvinculando qualquer contrato cujas cláusulas queimem as nossas.

Um dia, na erosão da vida, também eu serei areia. Talvez, aí, tenha um lugar dentro do teu coração. Ou, pelo menos, dentro do búzio. Esse, com o qual me deste a praia. E os melhores dias da minha vida.






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