Autor da foto: Miguel Pião
Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma
espécie de alma. Uma espécie de memória. Feita de tantos concretos que, ao
expirar, quero agarrá-la, prendê-la.
Esta entidade fala sem verbos. O poema. A canção. O
elefante. Momentos de promessa. Promessa inusitada. Espelho com palavras no
verso. Verso do poema. Canção paquidérmica. Bolo partido no canto. Manta na
relva. Lagoa. Ar.
Todas as palavras que diz são começo de uma frase que, por
nunca terminar, é eterna. E essa frase entra em mim. Quando respiro. Uma
espécie de fumo. Uma espécie de torpor. Uma espécie de história. Feita de
tantos concretos que, ao expirar, quero contestá-la, volvê-la.
Ao possuir-me, esta entidade, toda ela modelada de medos e
anseios, parece hiperventilar na ideia da sua própria inexistência. Sinto-a a
correr nas veias. Correndo nas veias, a entidade continua a desgastar
poeticamente as paredes arteriais. Faz o maior dano quando passa das veias
pulmonares à aurícula esquerda, seguindo para o ventrículo esquerdo e prometendo
levar o oxigénio que não há até ao corpo que não o quer.
Nessa possessão, não estou inconsciente. Dou por mim a fazer
coisas que não quero. Carícias a ecrãs monitorizados de dispositivos móveis de
vidros rachados, com conteúdos desmontáveis, comestíveis e quase imprudentes
que me fazem desejar estilhaçar o já estilhaçado vidro contra a parede onde, um
dia, me encostei lascivamente para olhar para carne e osso. E o que julguei ser
uma alma e um coração. Mas que era apenas mentira.
A mentira. Esta é a conversa mais intensa entre todas as que
mantenho com a entidade. Fazendo trajetos corridos entre o meu cérebro e o meu
coração, essa entidade que entra em mim quando respiro, deixa queimaduras
perenes nas paredes orgânicas contra as quais embate. Sim. Não. Talvez. És uma
idiota. Ok, tem calma. Tens razão. Não tens razão nenhuma. É. Não é. Está. Não
está. É uma espécie de fumo inalado que, de repente, aprendeu os verbos
transitivos e alguns dos outros. Não se cala. Embate. Aqui e ali. Correndo
loucamente entre uma razão razoável e uma forma de sentir sobejamente
imprudente. Respiro fundo e quero expulsá-la, na expiração. Tentando
libertar-me do ardor. Esse que o peito colhe e o nariz aloja. O. Tempo. Todo.
Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma espécie
de alma. Uma espécie de memória. E eu, farta de fumos, de almas e de memórias,
pergunto para quando o desfecho desta possessão. Leva-me. Peço. Desejando que o
concreto daquela incongruente figura decida ficar e me faça mover apenas braços
e pernas, de forma mecânica, ausente de mim.
Mas ela, que entra em mim. Quando respiro. Com a mesma
velocidade se escapa. Incapaz de lidar com a possessão. Não a minha mas a sua.
Sempre que entra em mim.
Se lhe peço que permaneça, debitando os seus substantivos e
adjetivos. Ou enumerando verbos de movimento. Ou simplesmente queimando
artérias. Ela ri. É o que faz, quando lho peço. Ri.
Há uma dor. Diz ela. Que é como dedos ondeantes e flácidos.
Capaz de penetrar até os espacinhos mais pequenos. Completamente fluidos.
Completamente maleáveis. Há uma dor. Que tem tentáculos. E ela, que entra, não
pode ficar. Não há espaço, diz-me. Não há espaço.
Entra em mim. Quando respiro. Uma espécie de fumo. Uma
espécie de alma. Uma espécie de memória. Feita de tantos concretos que, ao
expirar, quero agarrá-la, prendê-la. Quero prendê-la. Mas sou feita de uma dor
que expulsa até as frases sem verbo. Não há espaço. Nem para as possessões. Não
há espaço entre o amor, a memória e a mágoa. Sou um corpo com lotação esgotada.
Entra em mim. Cativa-me. Vai embora. Magoa. Não é diferente
de todos os outros.
Não é. Não é diferente de ti.
Talvez por isso lhe peço que fique. Que me possua. Mais uma
vez.
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