terça-feira, 26 de outubro de 2021

Do teu tamanho, ora

 



Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

 

Lá estava ela. A menina. Sempre a correr de um lado para o outro. Não há outra forma de ser criança. Senão essa. Sendo. Sendo-se como se é. Como se o mundo estivesse todo no alcance da vista. Sem limites. Sem limitações. Como se o Universo fosse composto apenas pelas estrelas visíveis no céu e o Sol não fosse estrela, porque brilha de dia. Como se o planeta não girasse verdadeiramente, já que a casa da nossa avó fica sempre do mesmo lado da rua. Lá estava ela. A menina. Essa que eu fui. A correr de um lado para o outro. Pai, dá-me cavalitas.

 

Era o maior pai do mundo. Exatamente porque era grande e eu não era. Tinha de olhar para cima para lhe ver o rosto. E de esperar que o encadeamento do Sol atrás do seu sorriso me permitisse fixar-lhe o rosto, ainda com o semblante recortado entre o manto de luz que o fazia herói de desenho animado.

 

Gostas de mim?

Uma pergunta que nenhum pai devia ter de fazer a uma menina.

Gosto.

Uma resposta que não sabia que era preciso acrescentar alguma coisa ao relato do que já era evidente.

Gostas de mim de que tamanho?

Um pensamento rápido. Num segundo. Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole. Acelerado. E já com vontade de que as pernas corressem outra vez.

Do teu tamanho, ora.

 

 

Havia, no contorno da sombra, a noite inteira. Mas a noite inteira ficava lá fora. E a criança já não era criança para correr. Embora o ritmo do coração fosse igual.

 

Ninguém queria saber se havia estrelas no céu, porque definitivamente já não faltava muito para o Sol nascer da insónia. A persiana aberta e o grito da luz amarelada das ruas, esquecido. Corpos meio despidos e almas totalmente nuas. Palavras que não precisavam de ser ditas na voz do toque.

 

Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole, ainda assim, a falha do silêncio fez-se e desfez-se.

 

Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

Em alguns dias, quando ninguém estava lá e eu estava prestes a desistir, tu estavas. Houve barcos a sair de portos e lágrimas dos olhos muitas vezes. Sentidos perdidos no espaço que fica entre livro e livro nas feiras, e sonhos assentes no pó do que ninguém entende.

 

Braços pequeninos que deste ao mundo e me servem de aconchego no pescoço, fazendo menos frios os invernos da vida. Palavras de companhia na viagem que teima em me amolecer até ao estado de quase-sono, evitando-me a quase-morte. Pedidos sobre a morte ansiada, como se um mundo sem mim não fosse ainda mundo. E brincadeiras subtis, de entendimento unívoco, no seio de multidões alheias.

 

Partilha do que é privado. Intimidade de um toque que não é, nunca foi nem precisa de ser físico. Ali. Nas paredes e tetos da alma que fica nos 60% invisíveis do Universo. Reservar nesse espaço do incompreensível também a memória. Pousar o copo de vinho e as culpas do passado na mesa arábica do perfume que se fixa no pulso.

 

As histórias. Repetidas ou não. Espaços de poema que se faz em modo complementar sobre como o amor está gasto nas palavras dos outros. Mas falar-se de amor - sem dizer amor - também nos nossos textos. Não vá alguém ter dúvidas de que há coisas que se dizem, sem dizer! Abismos e vazios. Monstros e feras. Um espaço de escuro que é conforto... e espelho de solidão que ninguém quer ou compreende.

 

Braços. Dedos. Peças que se encaixam, sem que faça sequer sentido. Vontade e respeito. Entendimento. Um idioma que talvez nenhum povo fale. Que carece de tradução. E ainda bem!

 

E a menina que fui. Dizendo. Gosto de ti. Do teu tamanho, ora. Mas não haver tamanho. Nem olhar para cima. Nem olhar para baixo. Nem olhar, de todo. Ali ao lado. Coração acelerado. Sem a mínima vontade de que as pernas corram. Querer só ficar. E fugirem as palavras.

 

Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

Porra. Sei lá...

 

Gosto de ti como se tu fosses tu.

 

 Marina Ferraz





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terça-feira, 19 de outubro de 2021

Dezoito mais um

 


Para a minha avó, Maria Graciosa
6 de Outubro 1930 - 19 de Outubro 2020



“Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração... É preciso que haja um ritual.”

(in “O Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry)

 

 

 

Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa.

 

 

As tuas mãos enrugadas pousavam-se sobre o colo, em cima do avental de xadrez azul ou verde, na antecipação da hora. Entre elas, o telemóvel. Não eras mulher de tecnologias. Mas importavas-te com isto. Com saberes que o telemóvel tocava. E que, quando tocasse, a voz de alguém estaria do outro lado.

 

As vozes que te chegavam, nesse dispositivo estranho e dantesco, eram quase sempre vozes que te amavam. Mas não as vias como vozes que te amavam. Vias como pedaços de céu, feitos para tu amares e cuidares e honrares, como se o próprio deus-filho, descido da cruz, tivesse recorrido aos meandros tecnológicos, para te falar na voz de seu pai.

 

Expressões tuas, de voz tão alegre quanto alegre uma voz pode ser, ficaram-me gravadas na alma, de uma forma tão intensa que, nem que a doença do esquecimento me assome, continuarei com a sombra cintilante desse trejeito na mente. Atenderes o telemóvel. E dizeres “Oh [e o nome de alguém]”. Caberem todas as coisas nesse nome que dizias. Fosse de quem fosse. E ser, ocasionalmente, alguém que perdeste por culpa minha... e doer-me a mágoa por detrás da tua voz, tão cheia de saudades.

 

Vi-te muitas vezes de mãos pousadas no regaço, esperando o toque do telemóvel. A minha voz era a que chegava às dezoito horas. Porque um dia, em minha casa, me apercebi que o comprimido das seis da tarde era sempre esquecido, e eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse como fosse. Então, estivesse a fazer o que estivesse. Fosse reunião, workshop, entrevista ou banho, eu largava tudo e ia. Às dezoito horas. Ligar-te.

 

Tu, que sempre esquecias o comprimido, nunca te esquecias da chamada. Atendias com uma rapidez clássica, no primeiro toque. E dizias: estava mesmo à espera da tua chamada. Fazias-me questionar as razões pelas quais te esquecias da hora, apenas para o comprimido. Mas, na realidade, o comprimido estava tomado... e só querias aquele minuto ou dois... ou hora ou duas... de me teres do outro lado da linha.

 

Conhecias-me pela voz. Estás triste. E eu deixava cair a lágrima silenciosa, alegrando a voz com todas as mutações teatrais da vida. Não, avó, estou bem. Estou só cansada. E um pequeno silêncio. E a tua. Não, eu conheço-te. Tu estás triste.

 

Devia ter estado sempre feliz, avó. Porque estava a falar contigo. E porque tinhas tido as mãos no regaço, segurando o telemóvel, à espera das dezoito horas.

 

 Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa. Fazia por ligar um pouco antes, quando dava. Nem sempre deu.

 

Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse com a chamada corrente das dezoito horas ou com a das dezoito mais um, que já te preocupava. Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, para haver sempre a tua voz do outro lado da chamada, cuidando das minhas tristezas e alegrias com o mesmo amor.

 

Talvez devesse ter-me apercebido que não era o comprimido mas a chamada que te agarrava à vida. E talvez devesse ter ligado mais vezes às dezoito menos um, para termos mais um minuto para falar.

 

Todos os dias, às dezoito horas, eu ainda olho para o telemóvel. Gesto inadvertido, de relógio biológico incompreensível, de sentido de tarefa, de vontade de ouvir. Esqueço-me que a dezoito (mais um), o dia anoiteceu triste e o planeta te perdeu a voz.

 

 

Ainda tenho o teu contacto nos meus favoritos.

 

 

Se te ligasse e atendesses, talvez dissesses. Estás triste. Conhecias-me pela voz. Estou, avó, estou mesmo. Tenho saudades tuas.


Marina Ferraz





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terça-feira, 12 de outubro de 2021

Em stock

 




Desculpe, o artigo que solicitou não está em stock.

 

Seja condescendência. Paciência extra. Palavras falsas. Amores menores. Jeitinhos sentimentais. Deferência. Mentiras. Desapego. Obediência. Vassalagem. Submissão.

 

Desculpe, o artigo que solicitou não está em stock.

 

Peço desculpa. Estou cansada das dinâmicas do mundo atual. E das pessoas que anuem. E das pessoas que concordam. E das pessoas que aceitam. E das pessoas que puxam a corda até partir, sem pensar em mais do que o próprio umbigo. Estou cansada de quem marca e não aparece. De quem convida com pretextos e segundas intenções. De quem bate na mesma tecla sucessivamente, debitando as frases da TV como se fossem verdades universalmente grandes.

 

Ruas oleadas e nauseabundas, cheirando a motor e subordinação, com dejetos de animais e cartazes políticos servindo o mesmo propósito. Animais e pessoas levados pela trela, com ração doseada, não vá a fome passar e acabar com o desespero.

 

Prefiro sentar-me no chão, ao lado de quem pede esmola, olhando para a lata velha e vazia como o estômago. Não me peçam para descer ao nível de quem comanda a trupe. Lá em cima, nesse buraco de excrementos, quem olha tem também a lata mas com contas offshore.

 

Desculpe, o artigo que solicitou não está em stock.

 

Já não tenho comigo a força de cozinhar banquetes para quem quer fast food. Perdi a paciência de levar o pequeno-almoço à cama de quem quer uma cama diferente todas as noites. E ainda mais de tratar o Amor pelo nome, quando o apelido é Próprio... e não se dá senão ao eu.

 

Cansei-me de me sentar na margem do rio ou à frente do pôr-do-sol com quem se prende apenas no ecrã, insistido em gravar na memória do telemóvel o que jamais ficará na sua. Ou de fazer poemas para quem quer esperar que a história vire filme, para não ter o trabalho da interpretação.

 

Desculpe, o artigo que solicitou não está em stock.

 

Essa pessoa moderadinha e pacata, disposta a ceder e abdicar de pedaços de alma e coração a troco de nada está esgotada na minha loja. Tenho o excesso que sou, com vários condimentos. Sarcasmo, ironia, combatividade. Presença de espírito, análise crítica, discursos politizados e apartidários. Sonhos para ontem, hoje e amanhã. Sexualidade louca sem medos, sem grilhetas sociais ou de género. Disposição para a luta. Anseio pela vida e pela morte, em dose igual.

 

Há muita coisa disponível. Mas, desculpe. A passividade que procura esgotou.

 

O artigo que solicitou não está em stock. Introduza o seu email para receber uma notificação, caso volte a estar disponível. Mas, por favor, não sustenha a respiração enquanto espera... e recomenda-se que espere sentado. Obrigada!


Marina Ferraz





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terça-feira, 5 de outubro de 2021

1 de Outubro

 Fotografia de Analua Zoé


 Para o meu avô


1 de Outubro.

 

Li que hoje é o dia da música, e da água, e do idoso, e do vegetarianismo, e do vendedor, e do café.

 

Parece que todas as coisas se reuniram num só dia. Parece que queriam simplificar a celebração das festas. Ou dividir despesas. Poupar dinheiro no aluguer das roulottes de churros e dos palcos provisórios e dos salões de festas das juntas de freguesia.

 

Devem ter-se entendido bem, já que o café e a água são vegan. Devem ter-se entendido bem, porque sabemos que todo o vendedor gosta de idosos, para lhes impingir as coisas de que não necessitam e receber as suas comissões astronómicas, provenientes da infoexclusão e da solidão calada e da miséria escondida e envergonhada.

 

1 de Outubro.

 

Li que hoje é o dia da música, e da água, e do idoso, e do vegetarianismo, e do vendedor, e do café.

 

Pensei, para comigo, que até gostavas de alguma música e de café. Troçarias provavelmente dos “coelhos” que só comem legumes. Dispensarias a água, em prol de vinho. Acusarias o vendedor de ser “gatuno”. E continuarias, idoso, a sorver o teu cigarro e a ler o teu policial, sem fazer caso da televisão, onde dizias sempre que não havia nada de jeito.

 

Ignorarias formalmente o dia que é hoje. Fosse da música, ou da água, ou do idoso, ou do vegetarianismo, ou do vendedor, ou do café. Dirias só: “agora há dia de tudo!”. Terias razão.

 

1 de Outubro.

 

Correndo o feed surgem notas, aqui e ali, mais ou menos cómicas sobre o dia que é hoje. E vou correndo as publicações, com uma irritação só minha, vendo elogios tecidos a um dia que já odeio há quinze anos.

 

Leio. 1 de Outubro. Hoje é o dia da música, e da água, e do idoso, e do vegetarianismo, e do vendedor, e do café.

 

Mal ouço música. Já bebi água e café hoje. Não sou vegetariana. A única coisa que vendo é um cérebro agitado, para adoção responsável. Sinto-me velha... e rezingona. Neste 1 de Outubro.

 

Não sei, na verdade, que dia é hoje. Quero que se foda o dia que é hoje. É isso que eu quero! Porque corro o feed das redes sociais. Celebram, como se importasse, o dia da música, e da água, e do idoso, e do vegetarianismo, e do vendedor, e do café.

 

Quero que se foda o dia que é hoje. Porque ainda não li em lado nenhum. Mas hoje é o dia em que te perdi. Hoje é o dia em que o mundo ficou mais vazio. Hoje é o dia em que eu fiquei eternamente presa à saudade.

 

Sim. 1 de Outubro é o dia da saudade. Não mundial. Não internacional. Mas da minha.


Marina Ferraz





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