Gosto de ti.
Gostas de mim como?
Lá estava ela. A menina. Sempre a correr de um lado para o outro. Não há outra forma de ser criança. Senão essa. Sendo. Sendo-se como se é. Como se o mundo estivesse todo no alcance da vista. Sem limites. Sem limitações. Como se o Universo fosse composto apenas pelas estrelas visíveis no céu e o Sol não fosse estrela, porque brilha de dia. Como se o planeta não girasse verdadeiramente, já que a casa da nossa avó fica sempre do mesmo lado da rua. Lá estava ela. A menina. Essa que eu fui. A correr de um lado para o outro. Pai, dá-me cavalitas.
Era o maior pai do mundo. Exatamente porque era grande e eu não era. Tinha de olhar para cima para lhe ver o rosto. E de esperar que o encadeamento do Sol atrás do seu sorriso me permitisse fixar-lhe o rosto, ainda com o semblante recortado entre o manto de luz que o fazia herói de desenho animado.
Gostas de mim?
Uma pergunta que nenhum pai devia ter de fazer a uma menina.
Gosto.
Uma resposta que não sabia que era preciso acrescentar alguma coisa ao relato do que já era evidente.
Gostas de mim de que tamanho?
Um pensamento rápido. Num segundo. Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole. Acelerado. E já com vontade de que as pernas corressem outra vez.
Do teu tamanho, ora.
Havia, no contorno da sombra, a noite inteira. Mas a noite inteira ficava lá fora. E a criança já não era criança para correr. Embora o ritmo do coração fosse igual.
Ninguém queria saber se havia estrelas no céu, porque definitivamente já não faltava muito para o Sol nascer da insónia. A persiana aberta e o grito da luz amarelada das ruas, esquecido. Corpos meio despidos e almas totalmente nuas. Palavras que não precisavam de ser ditas na voz do toque.
Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole, ainda assim, a falha do silêncio fez-se e desfez-se.
Gosto de ti.
Gostas de mim como?
Em alguns dias, quando ninguém estava lá e eu estava prestes a desistir, tu estavas. Houve barcos a sair de portos e lágrimas dos olhos muitas vezes. Sentidos perdidos no espaço que fica entre livro e livro nas feiras, e sonhos assentes no pó do que ninguém entende.
Braços pequeninos que deste ao mundo e me servem de aconchego no pescoço, fazendo menos frios os invernos da vida. Palavras de companhia na viagem que teima em me amolecer até ao estado de quase-sono, evitando-me a quase-morte. Pedidos sobre a morte ansiada, como se um mundo sem mim não fosse ainda mundo. E brincadeiras subtis, de entendimento unívoco, no seio de multidões alheias.
Partilha do que é privado. Intimidade de um toque que não é, nunca foi nem precisa de ser físico. Ali. Nas paredes e tetos da alma que fica nos 60% invisíveis do Universo. Reservar nesse espaço do incompreensível também a memória. Pousar o copo de vinho e as culpas do passado na mesa arábica do perfume que se fixa no pulso.
As histórias. Repetidas ou não. Espaços de poema que se faz em modo complementar sobre como o amor está gasto nas palavras dos outros. Mas falar-se de amor - sem dizer amor - também nos nossos textos. Não vá alguém ter dúvidas de que há coisas que se dizem, sem dizer! Abismos e vazios. Monstros e feras. Um espaço de escuro que é conforto... e espelho de solidão que ninguém quer ou compreende.
Braços. Dedos. Peças que se encaixam, sem que faça sequer sentido. Vontade e respeito. Entendimento. Um idioma que talvez nenhum povo fale. Que carece de tradução. E ainda bem!
E a menina que fui. Dizendo. Gosto de ti. Do teu tamanho, ora. Mas não haver tamanho. Nem olhar para cima. Nem olhar para baixo. Nem olhar, de todo. Ali ao lado. Coração acelerado. Sem a mínima vontade de que as pernas corram. Querer só ficar. E fugirem as palavras.
Gosto de ti.
Gostas de mim como?
Porra. Sei lá...
Gosto de ti como se tu fosses tu.